Concertos do século

25 mar 2017

A residência da estupenda Gustav Mahler Jugendorchester (GMJO) é praticamente o que nos resta do ciclo das ‘Grandes Orquestras’, mas quando é regida por um maestro da craveira de Daniel Harding e traz um solista abençoado pelo génio, como é o caso do barítono Christian Gerhaher, não a troco por mais nenhuma. O formato destes dois concertos foi curioso: uma I parte curta e inusitada, a puxar à inteligência, e uma II parte com uma sinfonia pouco ouvida por cá. Aos 41 anos, Harding é porventura o mais brilhante maestro britânico (sem as pretensões intelectuais de Rattle e muito mais sabedoria no que toca às vozes); o seu apuradíssimo trabalho com a GMJO foi espantoso. Como se sabe, o público responde melhor à grandiloquência sinfónica, amplamente demonstrada na 5ª de Bruckner (1894) no 1º concerto, e 2ª (aliás, 3ª) de Schumann (1846), no 2º concerto. Harding foi magistral a atar as várias pontas da ‘sinfonia fantástica’ de Bruckner (segundo o próprio compositor), culminando naquele que é o “final mais monumental de toda a literatura musical do mundo”, segundo Furtwängler. O Scherzo da 2ª de Schumann é prodigioso; diz-se que foi inspirado pelo virtuosismo de Paganini. A novidade é antecipar o andamento lento — um Adagio pleno de recapitulações emocionais. Dou graças aos meus criadores por ter vivido o suficiente para ouvir Christian Gerhaher. Nos meus tempos de menino e moço havia Maria Callas e o resto era paisagem vocal (às vezes, deslumbrante). Agora temos Gerhaher a ir ao âmago das peças com a sua voz e inteligência gloriosas. Apenas lamento que a escuridão da sala não permitisse seguir os textos. Quem terá notado que o 3º dos “Altenberg Lieder” (1913/53), ‘Para lá dos limites do Universo’, começa num futuro a olhar para o passado (blicktest) para terminar no presente (blickst)? “O tempo presente e o tempo passado/ Estão ambos talvez presentes no tempo futuro,/ E o tempo futuro contido no tempo passado”, como declinou T. S. Eliot em “Four Quartets” (1936- 42). Não só aquele Opus 4 de Alban Berg constituiu a primeira obra orquestral do jovem compositor, como provou a sua emancipação das lições de Arnold Schoenberg (que entretanto se mudara para Berlim). Ouvir as “5 Orchesterstücke” (1912) de Schoenberg superlativamente tocadas no concerto seguinte é entender o universo que gerou a obra berguiana. Chama-se a isto saber programar! Se há cantor capaz de viabilizar as óperas de Franz Schubert, é Gerhaher. Nas duas árias de “Alfonso und Estrella” (1822/54) provou que cantar é conversar (e confessar) através da melodia. Quanto a “Les nuits d’été” (1856) de Hector Berlioz, ouvi-as como se fora a primeira vez: uma revelação absoluta (também pela transparência orquestral conseguida por Harding). Na vocalização de Gerhaher passam por ali os estados de alma da humanidade inteira. Palavras para quê? Concertos destes rebentam a escala classificativa. Para lhes atribuir as cinco estrelas da praxe, teria de correr todos os outros a uma estrela ou mesmo bola preta…

 

Jorge Calado

Expresso – 25 de março 2017

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