Após mais de duas intensíssimas horas de interpretação pianística do mais alto nível, András Schiff parecia ‘fresco que nem uma alface’ no primeiro ‘extra’ do seu recital, ao atacar com energia transbordante as notas iniciais do “Concerto Italiano, BWV 971”, de J.S. Bach. Foi um espetáculo de invulgares confrontos estéticos, em que se entrecruzaram peças do século XVIII (as 15 Sinfonias BWV 787-801 de Bach) com composições do século XX (duas Suites de Bartók, opus 14 e “Ao ar livre”, Sz. 81) e ainda com uma segunda parte preenchida por um par de obras igualmente em contenda, desta feita uma guerra sonatística através de Janacék (a Sonata nº 1.X. 1905) e de Schumann (a Sonata em Fá sustenido menor, opus 11), esta última de forte traço improvisatório e carácter orquestral, a deliciarem a assistência que esgotou o recinto. Num dos ensaios coligidos em “On Music”, Alfred Brendel destacou como Bartók, um mestre meticuloso de notação, comparecia nos estúdios de gravação com o metrónomo em punho, enquanto que, em gravações comerciais da Suite opus 14, a interpretou com tempos muito mais rápidos do que aqueles que tinha minuciosamente indicado aos seus intérpretes. Sem que Schiff perdesse dinâmica, cor e clareza, a sua sonoridade viva maravilhou na polifonia de Bach e nas Suites de Bartók, executadas com tempos muito rápidos. Um estudioso das partituras originais, o pianista húngaro sabe bem que não existem interpreta- ções definitivas e que executar os tempos ‘certos’, fixados nos documentos, dificilmente constitui a chave de um recital de sucesso. Os tempos adequados são o resultado da combinação de vários fatores, entre os quais os atributos formais e emocionais das composições, a articulação das obras, a sua dinâmica, carácter e atmosfera, a que deve acrescentar-se ainda a técnica genial do intérprete e o necessário grau de clareza e de transparência acústica do auditório.

 

Ana Rocha

Expresso – 18 de fevereiro 2017