A máquina de emoções

18 fev 2017

Arte é contraste e a música toca-se como se estivesse a ser criada. É isto que o barroco nos ensina, diz Leonardo García Alarcón, que vem dirigir Handel à Gulbenkian

Leonardo García Alarcon veio de longe. Nasceu em La Plata, na Argentina, e desse lado do Atlântico conheceu J. S. Bach e o cravo, por meio de uma coleção de discos-pirata que a avó costumava comprar-lhe. Soube logo, do alto dos seus nove anos, que era “música excecional”. E nunca mais a deixou. No Conservatório de Genebra formou-se cravista e nessa cidade, onde ainda vive e trabalha — e onde fundou o agrupamento Capella Mediterranea — se fez ‘maestro al cembalo’, alguém que dirige desde o cravo e desde o som, como era comum aos mestres antigos. Depois de há três anos ter dirigido “Elena”, de Francesco Cavalli, na Gulbenkian, García Alarcón regressa agora ao mesmo palco para abordar “Acis and Galateia”, de Handel, a ópera que não é uma ópera, e que já foi das obras mais tocadas na Europa do século XVIII. A ele vão juntar-se nomes como Ana Quintans e Marco Alves dos Santos, além da Orquestra e do Coro Gulbenkian, com um único objetivo: que o que nasceu para estar vivo não se confunda com uma peça de museu.

 

Dirigiu “Acis and Galatea” há seis anos, em Aix-en-Provence, e volta a fazê-lo agora na Gulbenkian. Como a descreve?
O ato de recriar uma obra musical, sobretudo se comporta representação, é equivalente a ressuscitar a alma de um compositor. É o maior milagre da humanidade — poder viajar no tempo e atualizar sentimentos e pensamentos graças à música. Não creio que exista nada igual nas nossas vidas. Neste caso, voltar a fazer “Acis and Galatea” é conectar-me com Handel e com a sua chegada à Inglaterra. Ele está a despedir-se da sua estada italiana e a compor uma obra ao estilo dos ingleses que é a sua carta de apresentação no país onde mais tarde virá a tornar-se o compositor nacional. Para mim, é indispensável recriar esse ambiente de reuniões privadas na corte, onde as obras se faziam ao ar livre — al fresco — e tinham de ser curtas e de temática pastoral.

 

Essa atitude de Handel pode ser lida como um ato de humildade?
Eu diria que é um ato de sobrevivência. Uma forma de que continuem a gostar dele e a encomendar a sua música. Este tipo de situação vem descrita nas cartas de Mozart: da primeira vez que ele foi a Paris sem o pai, em 1778, este aconselhou o filho a adaptar-se ao estilo do país que o recebia. Era uma regra de ouro para se ser aceite. Os compositores sempre se adaptaram. E fizeram-no por necessidade, para sobreviver.

 

Fala de Mozart. Não fez ele também uma versão de “Acis and Galatea”?
Em 1786, Mozart fez uma versão com orquestração moderna — até incluiu clarinete, que Handel desconhecia — e em língua alemã, a pedido do barão van Swieten. E fê-lo porque, ao lado do “Messias”, esta ópera era a obra mais tocada na Europa.

 

Como maestro, o que descobriu dela desta vez?
Quando a dirigi pela primeira vez, eu ainda não era pai. Agora tenho um filho de três anos. Isso quer dizer que os eventos pessoais da vida de um intérprete fazem-nos olhar para as obras de outro ponto de vista. Também conta o amadurecimento, a evolução. E hoje, para mim, esta obra tem sobretudo de parecer escrita no exato momento em que a estamos a tocar. Não tem de soar a música antiga. Handel compô-la para ser amada imediatamente.

 

E como é que isso se consegue?
Tem muito que ver com o espírito, com o que posso transmitir à orquestra, ao coro e aos solistas. Para isso, eu canto muito, toco muito, tento que o ritmo seja vivo, atual; que as cores e a dinâmica musical sejam tão intensas que a música pareça estar a ser improvisada no momento. Senão, geramos uma peça de museu. E não me interessa criar uma peça de museu, pois isso vai contra aquilo que os compositores quiseram.

 

Além dos que já referiu, que outros desafios esconde esta ópera?
Como não é realmente uma ópera — é mais uma serenata —, o importante é manter uma trama que dramaticamente funcione do princípio ao fim. O que me provoca mais ansiedade é conseguir que esta obra cative a atenção do público. Porque, além da beleza da música, a sua ação é fraca. Para melhorar esse aspeto, a produção da Gulbenkian conta com um encenador.

 

Já declarou que sem Bach não teria sido músico. Porquê?
Não sei. Ainda hoje toquei-o o dia todo. Ouvi-o pela primeira vez aos 9 anos, na Argentina, e soube logo que era a música de que mais gostava, a mais excecional do mundo. Bach condensa tudo o que existe antes e depois dele e é capaz de gerar em qualquer músico a maior das admirações, tanto no campo técnico como humano. Sabe-se pouco dele, há poucos documentos que refiram o seu feitio, mas imagino que tivesse o temperamento forte dos alemães dessa época e que, com tantos filhos, prezasse a organização. Os filhos seguiram-lhe os passos e alguns foram admirados por Mozart e por Beethoven. E acabou a vida ao lado da mulher que amava, que lhe copiava as partituras — as caligrafias de ambos eram tão idênticas que se confundiam. Digamos que teve uma vida normal, o que é raro encontrar nos músicos. Hoje, continuo a pensar que sem a força nuclear de Bach, eu seria advogado…ou político [risos].

 

Também vem de uma família onde a arte é importante.
A minha irmã é bailarina na Alemanha, a minha mãe pinta e o meu pai canta. E eu comecei a aprender piano aos seis anos.

 

Como transitou para o cravo?
Devo-o às gravações de Gustav Leonhardt e de Christiane Jaccottet — mais tarde a minha professora em Genebra —, que ouvi numa coleção-pirata da obra completa de Bach que a minha avó costumava comprar-me. Ali conheci o instrumento para o qual essa obra foi concebida. Desde então que o cravo me acompanha. É um instrumento com o qual podemos dirigir, porque é quase de percussão. Antigamente, isto chamava-se ‘maestro al cembalo’.

 

Precisamente a disciplina que leciona em Genebra.
Sim, e a única que existe em todo o mundo. Acredito que um maestro dirige melhor música barroca a partir do cravo, porque este permite transmitir todas as intenções sem ter de levantar as mãos, apenas com as notas, a velocidade e o tempo. É uma direção a partir do som e não tanto do gesto, que era prática normal dos compositores barrocos e clássicos.

 

Em 1997, foi estudar para Genebra. Porque se especializou em música barroca?
Graças a Bach mas não só: sempre quis estudar a música vocal do século XVII e a música polifónica do século XVI. Na América Latina, de onde venho, não houve romantismo e há uma espécie de pós-barroco perpétuo. E mesmo os instrumentos — harpa, cravo, guitarra, charango (que é uma vihuela antiga) — e o modo de acompanhar são semelhantes aos do barroco.

 

O que é que esta música nos ensina hoje?
Que o importante na arte é o contraste. No barroco, passa-se de um lamento terrível a algo cómico. Cada elemento é destruído pelo seu oposto. É uma dialética, uma luta sem fim contra o aborrecimento e para captar a atenção do público. O barroco é a época da criação da ópera e do teatro, a máquina das emoções.

 

Emoções que estão mais perto de nós devido ao movimento de reconstrução histórica.
É extraordinário o que se fez no século XX em relação aos instrumentos originais. Admiro imenso pessoas como Gustav Leonhardt e Nicholaus Harnoncourt, assim como admiro a construção de instrumentos, o restauro, a leitura dos tratados. Mas isso não é suficiente. No barroco italiano e no inglês, a maioria das coisas não estão escritas. Um tratado permite ver apenas uns 5% do que musicalmente se fazia. A reconstrução de uma obra do passado exige descobrir o resto, e isso não se esgota no uso de instrumentos originais. O instrumento é só um instrumento. Para tocar as obras tem de se recuar à composição, à retórica, ao discurso. Às origens dessa linguagem.

 

Que mecanismo histórico faz com que alguns compositores sejam lembrados e outros não?
Na realidade, o século XX foi o primeiro a querer tocar a música do passado. O normal era que os novos compositores esquecessem o que existia antes deles. No século XX, começámos a recuperar obras de todas as épocas, num movimento de tipo enciclopedista que é fantástico mas inédito, porque ao longo da História da Música o mais comum era deixar as obras para trás e substituí-las por novas.

 

Luciana Leiderfarb

Expresso – 18 de fevereiro 2017

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