Mahler: Sinfonia n.º 1

Orquestra Gulbenkian / Giancarlo Guerrero

Sob a direção de Giancarlo Guerrero, a Orquestra Gulbenkian interpreta a Sinfonia n.º 1 de Gustav Mahler.
Bernardo Mariano 08 mar 2024 95 min

Nascido no seio de uma família judaica de língua e cultura alemã, no sul da Morávia (atual Chéquia), Gustav Mahler fez os seus estudos musicais no Conservatório de Viena, onde conviveu, por exemplo, com Anton Bruckner (36 anos mais velho) e foi colega de, entre outros, Hugo Wolf e Hans Rott. Após as primeiras experiências na composição, com Lieder, música de câmara (um interessante Quarteto com Piano) e a cantata Das klagende Lied, Mahler encetou o género que mais o atraía – a sinfonia – numa altura em que Brahms estreara muito recentemente a sua Quarta (Outubro de 1885; seria a sua última sinfonia), e Bruckner a sua Sétima, no final de 1884 (e terminaria a versão original da Oitava em julho de 1887). Isto, se nos cingirmos a Viena. Na vizinha Alemanha, afirmava-se então um jovem Richard Strauss (quatro anos mais novo que Mahler). Se à época ambos singravam já como maestros (os dois conheceram-se, aliás, em Leipzig, no outono de 1887, quando Mahler ali exercia funções de diretor da Ópera), Strauss estava já na dianteira enquanto compositor, tendo estreado Da Itália em março desse ano, em Munique, a que se seguiriam, no espaço de um ano (novembro de 1889 a outubro de 1890), as estreias de Don Juan, Morte e Transfiguração, Burleske para piano e orquestra e Macbeth, que o confirmaram como o novo grande valor da música orquestral alemã. A tudo isto deveremos ainda acrescentar o ambiente cultural da época, impregnado do wagnerismo (Wagner falecera em 1883), a par do eco que tinham já então as ideias e as obras de Nietzsche (e de Schopenhauer), figuras que influenciaram, seja Strauss, seja Mahler.

A nosso ver, é desadequado tentar encaixar a Sinfonia n.º 1 em moldes tradicionais, ligados ao emprego da forma-sonata como esqueleto formal, designadamente para os andamentos extremos. Na verdade, ela acusa conscientemente as suas premissas enquanto poema sinfónico e isso espelha-se em todos os andamentos, exceto no Scherzo (o 2.º). Afigura-se-nos, por isso, mais consequente ler os processos sinfónicos de Mahler como obedecendo a narrativas afins da música programática, mesmo que eles incluam elementos tradicionais.

Assim, o 1.º andamento apresenta como primeiro material misteriosos “sons da Natureza”, como o faria um poema sinfónico: é a Natureza capturada desde o momento da alba que aqui se evoca. A este material será justaposta uma citação direta do 2.º Lied da coleção Lieder eines fahrenden Gesellen, na qual se fala justamente da beleza e do contentamento de sair para o campo pela manhã. Temos portanto dois elementos díspares, mas unidos sob o signo da Natureza como locus amoenus [lugar ameno]. Na segunda parte do andamento, eles serão progressivamente combinados, até se verem fundidos, celebrando o sol radioso que faz a sua aparição, não sem que certos motivos/intervalos anunciem o tema do Scherzo e o do Finale.

O Scherzo (forma ABA, com regresso abreviado de A) usa como base única declinações, mais vigorosas (em A) ou mais delicadas (em B), do Ländler austríaco, dança campesina ternária que chegaria (transformada) aos salões vienenses sob o nome de valsa. Apresenta parecenças inegáveis com o Scherzo da Sinfonia em Mi maior (1878-80) de Hans Rott, antigo colega de Mahler no Conservatório de Viena. Rott sucumbiu à demência e faleceu de tuberculose em junho de 1884, aos 25 anos, tendo Mahler assistido ao funeral. Datando os primeiros esboços da Sinfonia desse mesmo ano, quem sabe se não foi uma homenagem ao seu colega? Tal como no 1.º andamento fora prefigurado o tema do Scherzo, aqui dá-se a simétrica: o regresso dos “sons da Natureza” no Trio.

O 3.º andamento é, sem dúvida, o maior “achado” desta obra. Mahler pega na melodia popular do Frère Jacques (o que já de si é inusitado no “sacrossanto” género da sinfonia germânica), passa-a para o modo menor (no Ré menor dos Requiem…) e confere ao todo um caráter bizarro e grotesco por via da orquestração que escolhe para esse cânone, tratado como se fosse uma marcha fúnebre. A título de exemplo, a entrada sucessiva das vozes instrumentais faz-se assim: timbales (com a “batida”), contrabaixo com surdina com o tema, depois fagote, violoncelo com surdina, tuba-baixo, clarinete (nos graves) e violas. A modernidade estava realmente a chegar!

Uma segunda secção apresenta uma não menor ousadia: a importação, como paródia, de música típica das bandas itinerantes de músicos judeus que andavam pelas terras de província do Império Austríaco. Conferindo contraste, nova citação das Gesellen-Lieder, agora da última secção da quarta canção, na qual (sob o mesmo ritmo fúnebre) o Eu poético faz do repouso à sombra de uma tília uma alegoria da sua sepultura… e da sua paz.

O Finale é um mundo em si próprio e surge como algo de descomunal no contexto da música que o precede. Configura-se como um vasto poema sinfónico e apresenta o típico (em Mahler) contraste cavado de materiais: uma secção inicial tempestuosa e revoltada (que recorrerá evolutivamente ao longo do andamento) e um tema muito lírico, em tempo lento, que prefigura os Adagio das Sinfonias 3 e 4. O andamento como um todo efetua um percurso per aspera ad astra [por (caminhos) ásperos até aos astros], como na 5.ª Sinfonia, com o tema luminoso e grandioso vindo a brotar dos interstícios em “devir” da segunda parte do material “tempestuoso”: gera-se um conflito com um motivo de três notas (no modo menor), que simboliza a morte, até que, à terceira enunciação, o tema heroico é enfim triunfal e conduz a Sinfonia ao seu termo.

A Sinfonia n.º 1 teve uma gestação e “primeira infância” muito atribuladas, já que só passados oito anos ela adquiriu a sua forma definitiva atual, que se veria confirmada com a 1.ª edição da obra, em fevereiro de 1899. Foi escrita como poema sinfónico entre o final de 1887 e março de 1888, quando Mahler estava na Ópera de Leipzig, essa versão estreando em novembro de 1889, quando Mahler já era diretor da Ópera de Budapeste. Uma versão revista estrearia em outubro de 1893, em Hamburgo (com Mahler diretor da Ópera Municipal). Nova revisão, mas apenas na instrumentação, foi ouvida pela primeira vez em junho de 1894, em Weimar. Só com a última revisão, mais extensa (1893-96), a obra se transformou numa sinfonia em quatro andamentos (“caiu” a breve Blumine, que era o 2.º andamento) e sem referências programáticas (nem sequer o epíteto Titan, que vem da tradição interpretativa). Essa versão estreou a 16 de março de 1896, em Berlim, com Mahler a dirigir a Filarmónica da cidade, num concerto onde também teve estreia a versão orquestral de Lieder eines fahrenden Gesellen. Essa versão ver-se-ia confirmada com a 1.ª edição da obra, em fevereiro de 1899, por Weininger/Viena.


Intérpretes

  • Maestro

Programa

Gustav Mahler

Sinfonia n.º 1, em Ré maior
Langsam, schleppend (Lento, arrastado)
Kräftig bewegt, doch nicht zu schnell (Andamento poderoso, mas moderado)
Feierlich und gemessen, ohne zu schleppen (Solene e mensurado, sem arrastar)
Stürmisch bewegt – Energisch (Tempestuoso – Enérgico)

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