O Senhor dos Anéis: A Irmandade do Anel

A visão musical de Howard Shore - texto de Gonçalo Frota
04 jan 2016

Uma das grandes virtudes da música para cinema é o modo como condiciona, de forma subtil, a leitura que qualquer espectador faz de uma dada cena ou mesmo de um filme por inteiro. As notas musicais carregam consigo uma interpretação das imagens e acentuam, suavizam ou transformam ambientes. E é exatamente devido a essa vastíssima responsabilidade que os conflitos entre realizadores e compositores são frequentes, exigindo uma relação de confiança extrema. Num certo sentido, é esperado do músico que “esgravate” dentro da cabeça do realizador para traduzir com absoluta fidelidade a atmosfera pretendida em cada instante, o que nem sempre é fácil.

No caso de Howard Shore, após a bem-sucedida e oscarizada composição para os três filmes da saga O Senhor dos Anéis, realizada por Peter Jackson, a prova de que nem sempre uma relação profícua significa uma parceria com longevidade apareceu com o filme seguinte de Jackson o rompimento entre os dois deu-se a semanas da estreia de King Kong. Mas, por essa altura, Shore já tinha inscrito o seu nome na história da música para cinema ao superar um dos desafios mais ciclópicos com que um autor de bandas sonoras alguma vez poderia ver-se confrontado. Se a dificuldade de tecer música que interpele situações reais não é despicienda, aquilo que lhe era pedido em O Senhor dos Anéis era algo de colossal: criar música para um dos universos ficcionais mais complexos de sempre, com povos, línguas e culturas próprios, que quase obrigam a uma relação virgem com todos os elementos.

A escolha de Howard Shore para o projeto cinematográfico que marcaria em definitivo a carreira de Peter Jackson resultou da admiração do realizador pela música que Shore compusera, em particular para a filmografia de David Cronenberg. A capacidade de acoplar ideias musicais de uma beleza arredia e misteriosa a filmes como Crash ou Naked Lunch convenceu Jackson de que Shore seria capaz de semelhante feito ao escrever para uma épica história do Bem contra o Mal. E a música de Shore é épica desde o primeiro segundo da narrativa cinematográfica que adapta o tour de force literário de J.R.R. Tolkien que, desde a publicação original em 1954, acumulou centenas de milhões de leitores.

Logo a acompanhar a locução introdutória à saga no grande ecrã, o músico anuncia com pompa a empresa gigantesca que se seguirá, ao seguir cada passo da missão desmedida de Frodo Baggins em digressão pela Terra Média. Não só Peter Jackson ficou obcecado com a trilogia, como se rodeou de uma equipa de figuras-chave disponíveis para lhe emularem o gesto. Shore seguiu-o e passou a viver quase em permanência, durante três anos e oito meses, com a arquitetura musical exigida pelo trabalho. E quando se fala de “arquitetura”, essa terminologia justifica-se pela disposição espacial cartografada pelo compositor hobbits, elfos, humanos, anões, feiticeiros, orcs, etc., a cada grupo corresponde um microuniverso temático musical. “Para tratar a música como espelho deste mundo de fantasia, teria de ter a mesma complexidade”, explicou Shore em entrevista. Essa complexidade teria ainda de obedecer a um intenso trabalho de pesquisa dos aspetos musicais da saga, levado a cabo por Fran Walsh, coprodutora e coargumentista dos filmes, e Philippa Boyens, investigadora da obra de Tolkien.

A experiência de Shore com adaptações de obras literárias (Naked Lunch e Crash, de Cronenberg, partiam de livros homónimos de William S. Burroughs e J. G. Ballard) atalhou a relação com o texto. Para representar devidamente as diferenças entre os vários povos e respetivas culturas com que Tolkien povoa O Senhor dos Anéis, Shore recorreu a todo o tipo de distintas influências – desde a música celta, à música medieval europeia, às tradições orientais, africanas e indianas. Cada um dos microuniversos fantasiosos é, por isso, identificado com um léxico musical específico, desenvolvido pelo compositor para “pintar” um mundo ficcional existente há cinco mil anos.

O facto de Peter Jackson ter desenvolvido originalmente o projeto na Nova Zelândia daria ao compositor canadiano a primeira pista daquilo que poderia seguir musicalmente. Na sua busca por um universo peculiar, o arranque dos trabalhos no país-natal do realizador havia de fornecer o cenário de deslumbrante natureza em que Shore criou o tema “Mines of Moria”, a peça nuclear do primeiro excerto do filme a ser mostrado no Festival de Cannes, em 2001. Para alcançar esse ambiente específico, o compositor juntaria dois mundos musicais que lhe emprestavam duas características basilares: o potencial épico e sinfónico trabalhado com a New Zealand Symphony Orchestra e o deslumbrante exotismo ancestral e intemporal conseguido pela gravação de um coro maori de 60 elementos. Daí que, apesar de respeitar uma forma menos convencional, Howard Shore afirme que a sua partitura para a trilogia é, afinal, “uma partitura de ópera”. O que facilmente se compreende pela necessidade de integrar o derradeiro tom de estranheza que empurra os filmes para terras sulcadas no reino do fantástico: a diversidade de línguas ininteligíveis detalhadas por Tolkien e usadas nos temas cantados. “Poder-se-ia dizer que toda a música para cinema é ópera, mas alguma é muito mais ópera do que outra quando de facto se cria obras operáticas baseadas no conceito do guião e se usa música vocal sob formas muito específicas”, disse o compositor à Soundtrack Magazine. Não por acaso, aliás, Shore reconhece a influência do leitmotif de Wagner sobre as suas opções e a composição de temas ilustrativos (cerca de 50) não apenas de lugares, mas também de personagens e de relações entre elas, que muito devem na sua forma recorrente a O Anel do Nibelungo (Tolkien, confrontado com essa hipótese, frisou que as semelhanças com Wagner se resumiam a um objeto circular chamado anel). As nove horas totais dos três filmes ofereceram depois a Shore a exploração de uma série de possíveis declinações desses temas base, cruzando os temas associados às personagens com as exigências de cada contexto concreto da ação.

A Irmandade do Anel, por definir todas as coordenadas imagéticas e musicais da trilogia, seria vital no trabalho de Shore, deixando claras as fundações para os dois capítulos seguintes. Mais do que um filme, Shore e Jackson acreditavam, por altura da conclusão da primeira parte, que o que tinham criado em conjunto era todo um mundo. Uma Terra Média que se levantava das páginas de Tolkien e tinha uma expressão visual e sonora. Em cada escrupuloso pormenor podia, afinal, dizer-se que existia.

Gonçalo Frota

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