A viola de arco e o trompete na ribalta das Ruínas do Carmo

17 set 2016

Foi no belíssimo cenário das Ruínas da Igreja do Carmo que se deu início, anteontem, ao Festival Cantabile, organizado pelo Goethe-Institut e contando com a direcção artística da violetista alemã Diemut Poppen. As relações da música com o sagrado, num sentido lato, servem de fio condutor a esta 7.ª edição, cujo programa de  abertura  combinou a música barroca de Vivaldi, Telemann, Handel e Bach com incursões nos séculos XX e XXI através de Paths, para trompete solo, de Takemitsu, e da estreia mundial do Concerto para viola e orquestra, de António Pinho Vargas, uma encomenda de Diemut Poppen, que foi também solista nesta obra marcada por uma intensa expressividade e inquietude.

O que se ganhou em termos de ambiente visual com o mágico espaço das Ruínas do Carmo perdeu-se em condições de audição e de concentração para os músicos e o público. Outras músicas que chegavam dos bares e esplanadas exteriores, bem como o bulício da cidade numa data que coincidiu com a Vogue Fashion’s Night, bem podiam servir de matéria para os chamados Soundscape Studies e a ecologia acústica do espaço urbano, mas neste caso concreto contribuíram para uma certa dispersão e para que se perdessem várias subtilezas das partituras  interpretadas.

Com algumas passagens no limiar do silêncio ou formadas por texturas delicadas e sons etéreos, como os que decorrem dos harmónicos do instrumento solista, o Concerto para viola de arco, de Pinho Vargas, ressentiu-se com os planos sonoros intrusivos. Espera-se que seja possível reouvir em breve esta obra noutro local, até porque, não obstante as contingências, ficou claro que tem fortes possibilidades de entrar para o repertório dos violetistas pela forma como tira partido dos múltiplos recursos expressivos e de colorido tímbrico do instrumento.

Emerge a “voz” de uma viola de arco que canta em tom de lamento ou meditação introspectiva através de maleáveis linhas melódicas, mas que assume também momentos de interrogação e fúria através de elementos rítmicos incisivos e outros efeitos sonoros num balanço bem conseguido com a orquestra, na qual o naipe da percussão tem um relevante papel.

Com o título O Livro de Job: Leituras, a composição subdivide-se em quatro andamentos (Abertura: Fé, Dúvidas, Lamento, Dúvidas e fúrias) que pretendem ser meras metáforas e não descrições programáticas, mas que exercem forte poder sugestivo no ouvinte. Com um domínio técnico e artístico de primeiro nível, Diemut Poppen defendeu a obra com brio, parecendo identificar-se de perto com a sua estética e linguagem, acompanhada de forma consistente pela Orquestra Gulbenkian, dirigida por Jan Wierzba.

O programa do concerto contou ainda com intervenções de outras destacadas solistas, nomeadamente a notável trompetista Laura Vukobratovic e a contralto Gerhild Romberger, detentora de um apelativo timbre e de uma apreciável arte de frasear que colocou ao serviço de páginas tão belas como o Stabat Mater, de Vivaldi, as árias Eternal source of light divine HWV 74, de Handel, e Ach est bleibt in meiner Liebe BWV 77, de Bach (nas quais brilharam os solos de trompete), e do Agnus Dei da Missa em Si menor, de Bach.

Apostando na versatilidade de Laura Vukobratovic, o programa dava especial protagonismo ao trompete, incluindo a Conclusion TWV 50:9 (da Tafelmusik), de Telemann; Paths — in memorian Witold Lutoslawski, de Toru Takemitsu (1930-96), uma exigente meditação a solo com amplo uso da surdina Harmon, e o Concerto Brandeburguês n.º 2, de Bach, no qual se distinguiu também a violinista Christel Lee.

Vukobratovic tem experiência também em instrumentos de época e a sua acuidade de estilo transparece nas suas interpretações, mesmo quando usa trompetes modernos. Problemas acústicos do espaço das Ruínas do Carmo afectaram porém por vezes o equilíbrio do restante conjunto instrumental. Se as cordas graves forneciam um suporte bastante nítido, um instrumento como o cravo quase não se ouvia.

O Festival Cantabile continua hoje, amanhã e no dia 20 (respectivamente no Museu do Dinheiro, no Palácio de Queluz e na Gulbenkian), contando com a participação de músicos como os violoncelistas Ivan Monighetti e Paulo Gaio Lima e as violinistas Isabelle Faust e Christei Lee.

 

Cristina Fernandes

Público – 17 setembro 2016

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