A viola de arco e o trompete na ribalta das Ruínas do Carmo
Foi no belíssimo cenário das Ruínas da Igreja do Carmo que se deu início, anteontem, ao Festival Cantabile, organizado pelo Goethe-Institut e contando com a direcção artística da violetista alemã Diemut Poppen. As relações da música com o sagrado, num sentido lato, servem de fio condutor a esta 7.ª edição, cujo programa de abertura combinou a música barroca de Vivaldi, Telemann, Handel e Bach com incursões nos séculos XX e XXI através de Paths, para trompete solo, de Takemitsu, e da estreia mundial do Concerto para viola e orquestra, de António Pinho Vargas, uma encomenda de Diemut Poppen, que foi também solista nesta obra marcada por uma intensa expressividade e inquietude.
O que se ganhou em termos de ambiente visual com o mágico espaço das Ruínas do Carmo perdeu-se em condições de audição e de concentração para os músicos e o público. Outras músicas que chegavam dos bares e esplanadas exteriores, bem como o bulício da cidade numa data que coincidiu com a Vogue Fashion’s Night, bem podiam servir de matéria para os chamados Soundscape Studies e a ecologia acústica do espaço urbano, mas neste caso concreto contribuíram para uma certa dispersão e para que se perdessem várias subtilezas das partituras interpretadas.
Com algumas passagens no limiar do silêncio ou formadas por texturas delicadas e sons etéreos, como os que decorrem dos harmónicos do instrumento solista, o Concerto para viola de arco, de Pinho Vargas, ressentiu-se com os planos sonoros intrusivos. Espera-se que seja possível reouvir em breve esta obra noutro local, até porque, não obstante as contingências, ficou claro que tem fortes possibilidades de entrar para o repertório dos violetistas pela forma como tira partido dos múltiplos recursos expressivos e de colorido tímbrico do instrumento.
Emerge a “voz” de uma viola de arco que canta em tom de lamento ou meditação introspectiva através de maleáveis linhas melódicas, mas que assume também momentos de interrogação e fúria através de elementos rítmicos incisivos e outros efeitos sonoros num balanço bem conseguido com a orquestra, na qual o naipe da percussão tem um relevante papel.
Com o título O Livro de Job: Leituras, a composição subdivide-se em quatro andamentos (Abertura: Fé, Dúvidas, Lamento, Dúvidas e fúrias) que pretendem ser meras metáforas e não descrições programáticas, mas que exercem forte poder sugestivo no ouvinte. Com um domínio técnico e artístico de primeiro nível, Diemut Poppen defendeu a obra com brio, parecendo identificar-se de perto com a sua estética e linguagem, acompanhada de forma consistente pela Orquestra Gulbenkian, dirigida por Jan Wierzba.
O programa do concerto contou ainda com intervenções de outras destacadas solistas, nomeadamente a notável trompetista Laura Vukobratovic e a contralto Gerhild Romberger, detentora de um apelativo timbre e de uma apreciável arte de frasear que colocou ao serviço de páginas tão belas como o Stabat Mater, de Vivaldi, as árias Eternal source of light divine HWV 74, de Handel, e Ach est bleibt in meiner Liebe BWV 77, de Bach (nas quais brilharam os solos de trompete), e do Agnus Dei da Missa em Si menor, de Bach.
Apostando na versatilidade de Laura Vukobratovic, o programa dava especial protagonismo ao trompete, incluindo a Conclusion TWV 50:9 (da Tafelmusik), de Telemann; Paths — in memorian Witold Lutoslawski, de Toru Takemitsu (1930-96), uma exigente meditação a solo com amplo uso da surdina Harmon, e o Concerto Brandeburguês n.º 2, de Bach, no qual se distinguiu também a violinista Christel Lee.
Vukobratovic tem experiência também em instrumentos de época e a sua acuidade de estilo transparece nas suas interpretações, mesmo quando usa trompetes modernos. Problemas acústicos do espaço das Ruínas do Carmo afectaram porém por vezes o equilíbrio do restante conjunto instrumental. Se as cordas graves forneciam um suporte bastante nítido, um instrumento como o cravo quase não se ouvia.
O Festival Cantabile continua hoje, amanhã e no dia 20 (respectivamente no Museu do Dinheiro, no Palácio de Queluz e na Gulbenkian), contando com a participação de músicos como os violoncelistas Ivan Monighetti e Paulo Gaio Lima e as violinistas Isabelle Faust e Christei Lee.
Cristina Fernandes
Público – 17 setembro 2016