Elgar: The Dream of Gerontius

03 jun 2017

Foi um dos highlights da temporada musical lisboeta: nada mais nada menos do que o dificílimo “The Dream of Gerontius” (1900) do católico Edward Elgar (1857-1934), obra cimeira da produção musical inglesa. Não era feito em Lisboa há exatamente 20 anos (maio de 1997, coRichard Hickox)! Desta vez tivemos o regresso do ex-maestro titular da Orquestra Gulbenkian, Paul McCreesh, para uma obra à sua medida. Elgar sabia bem o que criara. Na partitura apôs uma citação do livro clássico de John Ruskin, “Sesame and Lilies” (1865), sobre os deveres de homens e mulheres: “Isto é o melhor de mim.” Com poema do famoso cardeal Newman, “The Dream” é uma mistura de cantata e paixão, um drama musical de contorno operático, uma saga sobre a experiência da morte (sob a perspetiva da alma). A estreia foi um desastre musical (por inadequação dos intérpretes e falta de ensaios), a ponto de Elgar acreditar que “Deus era contra a arte”. No entanto os críticos ouviram logo que se tratava de uma obra-prima. Inspirado na paisagem da sua Worcestershire natal, “The Dream” é simultaneamente íntimo e monumental, mundano e místico — um digno sucessor do “Manfred” (1852) de Schumann ou da “Mors et Vita” (1885) de Gounod, com intimações da pureza abstrata de “Parsifal” (1882). Sir John Barbirolli acreditava que só um coro de católicos poderia compreender o significado transcendente da obra. (Existe, aliás, uma fabulosa gravação dirigida por ele em 1957 com a Orquestra e Coro da RAI de Roma e Jon Vickers no protagonista.) De início, o catolicismo do “Dream” mereceu reparos, e as referências à Virgem e ao Purgatório foram alteradas para poder ser executado nas catedrais a que se destinava (nomeadamente Hereford, Gloucester e Worcester). A realização da Gulbenkian foi a melhor que desde sempre ouvi ao vivo, graças ao trabalho exaltante de McCreesh (e Paulo Lourenço) com a Orquestra e Coro — a primeira, sublime na introdução (memória da alma) à II parte; a segunda, ultrapassando brilhantemente as dificuldades rítmicas e contrapontísticas do famigerado Coro dos Demónios. Quanto aos solistas, tivemos um trio de eleição. Para o velho — como o nome indica — Gerontius, Elgar exigia “não só uma boa voz, mas também uma boa cabeça”. Jeremy Ovenden, um tenor de voz clara, tem a inteligência requerida (e o seu ‘Take me away’ no final, foi inolvidável). A veterana Yvonne Howard mostrou logo a sua grande classe no tremendo solo do Anjo, e Andrew Foster-Williams desdobrou-se, com enorme autoridade vocal, pelo Padre (I parte) e Anjo da Agonia (II parte). Faço votos para que não seja preciso esperar outros 20 anos para novo “Sonho de Gerontius”.

 

Jorge Calado

Expresso – 3 de junho 2017

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