Tchaikovsky, Piotr Ilitch
Romeu e Julieta. O Lago dos Cisnes, Suite Op.20a. O Quebra Nozes, Suite Op.71a.
O primeiro disco de Joana Carneiro é uma surpresa. Em primeiro lugar porque é um disco dedicado inteiramente a Tchaikovsky, num momento em que ela anda a dirigir e a programar muita música contemporânea na Sinfónica de Berkeley. Mas há neste disco uma sensibilidade contemporânea na forma de abordar estas peças arquifamosas de Tchaikovsky. Joana conhece bem os bailados de Stravinsky, e quando volta a Tchaikovsky já não esquece o legado modernista.
Depois da experiência na Filarmónica de Los Angeles com o maestro finlandês Esa-Pekka Salonen, parece ter um à-vontade enorme com qualquer música. A segunda surpresa é que uma maestrina de 33 anos consegue fazer de repertório bem conhecido uma interpretação de uma maturidade e profundidade invulgares. Em «Romeu e Julieta» (Abertura-Fantasia), consegue tecer todo o drama Shakespeariano (numa visão romântica, é claro) com opções simples. É isso que este disco tem de especial. A novidade da visão de Tchaikovksy não está no aspecto exterior mais superficial, nem em grandes alaridos vazios, nem em acrescentar sentimentalismo ao compositor russo. Joana Carneiro procura dentro da música, dentro das melodias conhecidas, não com mais espalhafatos, mas faz um intenso trabalho no interior do som.
Extraordinária noção dos tempos e das respirações, sempre espantosamente correctos, elevada capacidade de ligar as vozes e torná-las claras, articulações precisas e eloquentes, um trabalho rigoroso sobre a «espacialidade» (de onde vem o som, coisa que um disco permite trabalhar em detalhe). Percorre o disco uma energia contagiante e uma viva noção da necessidade de pôr em evidência os contrastes da música do compositor russo (em especial nos nove números da suite de O Lago dos Cisnes). E a dança, é claro.
Joana Carneiro põe a dançar a Orquestra Gulbenkian, que parece estar a tocar música que lhe assenta às mil maravilhas. Cada instrumento solista brilha nesta gravação (vejam-se por exemplo os belos solos das cordas em «Pas Daction» de O Lago dos Cisnes), e suspeito que não é só pela grande qualidade dos músicos da Gulbenkian, mas porque Joana Carneiro trouxe uma visão fresca e rigorosamente estudada destas peças de Tchaikowsky e as soube passar à Orquestra.
Um disco destes é também uma tentativa comercial (em tempo de dúvidas e dificuldades para o formato cd) que não é disparatada. Música conhecida, é certo, mas com uma jovem maestrina de grande talento e ideias fortes, capaz de fazer ouvir coisas novas em obras antigas. Quem ouvir este disco não deixará de se espantar com o que ainda não sabia de Tchaikowsky, cujos «melos» não têm de ser meloso. O brilho de uma música com século e meio tem de ser reavivado por gente como Joana Carneiro, que lhe tira o pó e descobre o que está vivo na música de outros tempos. Não se trata de «actualizar» Tchaikowsky à força – é algo de mais simples e mais exigente: descobrir nas qualidades da própria música as possibilidades de a tornar actual. O amor e as danças de Tchaikowsky têm ainda essas possibilidades. Como se vê neste disco, no tempo certo.
Pedro Boléo
Público, 4 Dez 2009
Intérpretes:
- Joana Carneiro (Direcção)
- Orquestra Gulbenkian