CD-Nona-Sinfonia-Beethoven

Beethoven, Ludwig van

Sinfonia nº9, Op.125, «Coral»

O processo de composição da Nona Sinfonia de Beethoven foi longo a conturbado, arrastando se por mais de vinte anos a acompanhando assim a própria evolução estilística do seu autor no decurso desse período. Pode dizer se que remonta já a 1793, quando o compositor considerou pela primeira vez a possibilidade de pôr em Música a Ode à Alegria, de que tomara conhecimento ainda antes da sua partida de Bonn para Viena, no ano anterior. O poema fora publicado em 1785 e o seu autor era Friedrich Schiller (1759 1805), um dos pais do Romantismo literário alemão a um poeta cujos versos influenciaram decisivamente a personalidade artística de Beethoven desde a sua juventude.

Uma versão próxima do tema melódico do que viria a ser o último andamento da Nona surge já em 1808 na Fantasia Coral, Op. 70, estreada a 22 de Dezembro desse ano no Theater an der Wien, juntamente com a Quinta e a Sexta Sinfonia a com o Quarto Concerto para Piano. Em 1811 o projecto inicial tinha evoluído para a ideia de compor sobre a Ode de Schiller uma cantata para solistas, coro a orquestra, a subsistem ainda hoje alguns esboços musicais nesse sentido. Em 181819 a sinfonia começava a configurar se já numa forma próxima da final, mas o último andamento estava então pensado para uma formação puramente instrumental, pelo que se conclui que estava ainda fora da intenção de Beethoven utilizar nesta obra em concreto os versos de Schiller. Até muito tarde o compositor alimentou, de facto, o projecto de compor uma Nona Sinfonia exclusivamente instrumental e de reservar o uso das vozes bem como o do texto da Ode à Alegria para uma Décima Sinfonia a compor mais tarde. Aparentemente, só já na fase de escrita de 1822 23 a opção por um final coral no quadro da própria Nona se tornou clara na mente do compositor. O andamento instrumental de encerramento originalmente composto viria assim a ser transformado no final do Quarteto de Cordas em Lá menor, Op. 32, depois publicado em 1826. Pelo testemunho do seu secretário e futuro biógrafo, Anton Felix Schindler (17951864), sabemos como em Outubro de 1823 Beethoven terá entrado de rompante no quarto deste para lhe mostrar uma linha melódica acabada de anotar no seu livro de esboços, exclamando em voz alta: «Consegui! Aqui a tenho! Vamos cantara canção do imortal Schiller!».

Beethoven estava agora com cinquenta e poucos anos e a sua saúde era muito frágil. Estava já completamente surdo e o seu processo de composição dependia, por conseguinte, do registo escrito como suporte de uma assombrosa memória auditiva interior, o que explica a abundãncia de esboços manuscritos decorrentes do trabalho de gestação escrita de cada uma das obras dos seus últimos anos. As suas condições financeiras eram, além disso, sempre instáveis, dado o seu estatuto de compositor freelancer que sempre recusara qualquer cargo profissional estável. Era, pois, do seu maior interesse dar a público logo que possível uma nova grande obra, que prosseguisse o ciclo das suas oito sinfonias anteriores e consolidasse o seu prestígio na vida musical germãnica. Diversas instituições musicais alemãs e internacionais manifestavam se interessadas em apresentar a primeira audição da nova sinfonia. O Conde Brühl, célebre empresário musical berlinense, terá abordado nesse sentido o compositor, e um conjunto de trinta personalidades destacadas da vida musical de Viena enviou lhe uma carta solicitando lhe a apresentação logo que possível da nova partitura: «Não se afaste por mais tempo do júbilo popular, não prive por mais tempo os oprimidos da apreciação daquilo que há de maisgrandioso e mais perfeito». Contudo, o compositor vi ria a aceitar, em vez disso, um convite idêntico da Philharmonic Society de Londres, que em 1822 lhe pagou antecipadamente 50 libras pela encomenda, muito embora a peça estivesse ainda longe de estar concluída.

Apesar do compromisso assumido com aquela instituição britânica, a estreia acabaria por ter lugar em Viena, no Teatro imperial da Corte (também conhecido, pela sua localização junto de uma das entradas do centro da cidade, por Karthnerthortheater), a 7 de Maio de 1824, sendo o concerto repetido na mesma sala a 23 desse mês. Do programa constavam igualmente, além da Nona, a abertura Die Weihe des Hauses (A Consagração da Casa) e três andamentos (Kyrie, Gloria e Credo) da Missa solemnis. Nominalmente a direcção musical era do próprio compositor, e Beethoven subiu de facto ao pódio e marcou até o compasso ao longo de toda a peça, mas tratava se de um trágico simulacro, uma vez que nesta fase da sua vida já não conseguia sequer ouvira orquestra. Ao seu lado no pódio, o director musical do teatro, Ignaz Uhland, regeu na prática todo o concerto, tendo previamente avisado os músicos de que seguissem as suas indicações e não os gestos imprecisos do autor. A orquestra era excelente e tinha como concertino o célebre violinista vienense Ignaz Schuppanzig (1776 1830), o mesmo que encabeçava um notável quarteto de cordas responsável pela estreia das principais obras de Beethoven e de Schubert neste género. Segundo a maioria dos relatos da época, a qualidade da execução terá sido de muito bom nível, sendo saudada por uma longa ovação de pé por parte do público, e Schindler relataria mais tarde: «no que diz respeito ao sucesso deste sarau memorável, não perdeu pela comparação com qualquer outro alcançado neste venerando teatro». Mas Beethoven, incapaz de ouvir tanto os aplausos como anteriormente a orquestra, terá permanecido durante largos minutos de costas para o público que o aplaudia, até que a primeira viola da orquestra, Caroline Ungher, se levantou e o virou para a plateia. Como ela própria descreveria, anos mais tarde, ao musicólogo inglês George Grove: «Quando ele permaneceu de costas e toda a gente se apercebeu de que o fizera porque não conseguia ouvir o que se passava foi como se uma corrente eléctrica tivesse atingido todos os presentes, provocando uma explosão de simpatia e de admiração».

O sucesso artístico da estreia e da segunda récita, embora esta não tenha enchido a sala, não se traduziu em resultados financeiros especialmente compensadores. Dada a dimensão fora do comum dos recursos interpretativos exigidos pela obra, os custos da remuneração da orquestra, dos solistas e do coro foram tão elevados que o saldo final dos dois concertos foi apenas de 42 libras. Decepcionado com este resultado, Beethoven acusou Schindler de o ter defraudado nas contas finais da operação e cortou relações com o secretário durante um ano até por fim compreender que aquele não tivera qualquer responsabilidade no fracasso comercial do evento. Melhor sucedida foi a terceira apresentação pública da obra, agora em Londres, a 21 de Março de 1825, sob a regência de Sir George Smart, um dos fundadores da Philharmonic Society, a qual viu por fim deste modo cumprido o seu contrato de encomenda, atribuindo agora ao autor uma remuneração suplementar de 100 libras. A edição da partitura pela casa Schott, de Mainz, em Agosto de 1826, foi dedicada a Frederico Guilherme III, Rei da Prússia, mas nem o esperado patrocínio régio nem as vendas ao público da obra acarretaram ganhos adicionais significativos no breve período que antecedeu a morte do autor no ano seguinte.

A recepção da obra depressa entraria, contudo, num crescendo imparável, muito para lá do desaparecimento do seu criador. Numa recensão profética publicada logo após a estreia na mais importante revista musical alemã da época, o Allgemeine musikalische Zeitung, dizia um crítico: «Onde poderei encontrar palavras para descrever esta obra colossal? A execução, em especial no que toca ao canto, não foi de modo algum perfeita… No entanto, o efeito foi indescritivelmente grandioso e glorioso, e a ovação oferecida ao eminente compositor foi de um entusiasmo de todo o coração. O seu génio inesgotável abriu nos um novo mundo, revelando nos maravilhas nunca ouvidas e nunca sonhadas desta arte sagrada.»

Composta ao longo de vinte anos, a obra era difícil de classificar no quadro da evolução estilística do autor. Por um lado utilizava materiais compostos naquilo que se convencionou designar por Primeiro e Segundo Períodos da sua carreira criativa, ou seja, remetia se, quando necessário, para os códigos de composição clássica herdados do Haydn e do Mozart finais. Por outro lado, no entanto, rompia em numerosos aspectos com esses mesmos códigos, evidenciando uma visão de futuro da composição de toda a Música erudita ocidental, e nesse plano irmanava com as ousadias arrojadas da Missa solemnis e dos últimos quartetos de cordas e sonatas para piano do compositor.

É interessante constatar como as sucessivas leituras posteriores da Nona, ao longo do século XIX, se foram associando preferencialmente a uma ou outra destas componentes. Brahms, que se via a si mesmo como uma espécie de herdeiro da tradição beethoveniana no que respeita à preservação e ao desenvolvimento da escrita instrumental pura, e em particular da sinfonia, sublinhava sobretudo na obra a sua profunda coerência estrutural interna e a sua solidez formal, por detrás de uma aparente sucessão em catadupa de materiais temáticos contrastantes. Seriam precisamente essa veneração pela mestria de construção da Nona e uma convicção profunda da sua responsabilidade histórica pessoal de assegurar a continuidade das vias abertas por Beethoven que levariam o jovem compositor a adiar sucessivamente até aos 43 anos a apresentação pública da sua primeira sinfonia, considerando só então ter atingido um grau de maturidade suficiente para cumprir esta missão a que se propusera.

Já Berlioz preferia sublinhar os traços evolutivos essenciais da partitura, em particular a inclusão, pela primeira vez, das vozes solísticas e corais num género até então puramente instrumental. Ele próprio proporia obras marcantes desta nova linguagem sinfónica, como a Sinfonia Fantástica, o melodrama Lélio, a sinfonia dramática Romeu e Julieta ou o ciclo de canções com orquestra Les Nuits d’Été. Nas suas palavras: «Beethoven já tinha escrito oito sinfonias antes desta. De que meios podia ele assim dispor agora dentro dos recursos limitados da instrumentação para ir mais além do ponto a que já tinha chegado? Da junção dos efectivos vocais aos instrumentais.» Para Schumann e Liszt, por sua vez, a dupla lição da Nona era óbvia: por um lado no que respeita a um alargamento da forma sonata, com recurso a uma abundãncia de material temático inusitada e a uma liberdade de transformação e desenvolvimento desse material igualmente sem precedente; por outro lado, no estreitamento da ligação da música à palavra, quer por via do texto cantado, quer através de uma poética musical de nítida referência literária, mesmo na composição puramente instrumental, criando assim a possibilidade de uma escrita sinfónica programática que encontraria a sua concretização ideal no poema sinfónico.

Nesta última corrente se viria igualmente a inscrever Richard Wagner, também ele disputando para si a herança mais legítima de Beethoven e em particular da Nona Sinfonia que a seu ver continha já em embrião os fundamentos essenciais dos conceitos wagnerianos de «drama musical» e de «obra de arte total». Por suas palavras: «É admirável a maneira como o Mestre prepara o caminho para a voz e a palavra humanas, como absolutamente necessárias, por meio deste todo poderoso recitativo das cordas graves, que, ultrapassando quase os limites da música absoluta, avança e se destaca, como que a induzir os outros em estreita comunicação.» Para bom entendedor meia palavra basta, e o autor do Tristão desenhava assim uma clara estratégia de auto legitimação em que uma genealogia histórica evolutiva não poderia deixar de conduzir directa e inelutavelmente às suas próprias concepções inovadoras da ópera e do Teatro Musical, encarados como formas superiores de fusão da linguagem orquestral com a expressão poética e dramática verbal.

Obra duplamente «aberta», a Nona Sinfonia continua a evidenciar, quase dois séculos após a sua estreia, uma espantosa capacidade de incorporar uma multiplicidade de leituras estéticas, analíticas e interpretativas muitas vezes contraditórias entre si. Os grandes herdeiros da tradição sinfónica ultra romântica, como Furtwängler ou Klemperer, quiseram na monumental, esmagadora, transcendente, sintetizando como que o sentido total da vida e da humanidade. Os adeptos de uma abordagem mais próxima da sua realidade histórico estilística original hoje ainda susceptível de reconstituição no plano da instrumentação, do equilíbrio tímbrico interno da orquestra ou da gramática expressiva do Primeiro Romantismo, como Brüggen ou Harnoncourt, preferem texturas mais transparentes, jogos de timbre mais subtis, andamentos menos pesados. Lawrence Foster propõe nos aqui uma versão de algum modo intermédia, pondo em evidência com uma paixão serena o equilíbrio delicado entre tradição clássica e espírito romântico que perpassa toda a obra.

A melodia principal do andamento coral da Nona adquiriu na cultura do nosso tempo um simbolismo libertário e humanístico incomparável. Em 1945 a melodia do andamento coral tornou se ainda que apenas a título oficioso no hino das recém fundadas Nações Unidas. Sob a batuta do próprio Furtwängler a Sinfonia protagonizou a reabertura «purificadora» do Festival de Bayreuth na era pós nazi, em 1951. Regida por Leonard Bernstein consagrou o marco democrático da queda do Muro de Berlim, em 1989, substituindo se para essa ocasião no texto da Ode final a palavra «Freude» («Alegria») por «Freiheit» («Liberdade»). Multiplicam se do mesmo modo a ritmo regular as leituras simbólicas mais inesperadas, por vezes mesmo apaixonadamente excessivas, desde a do musicólogo Maynard Solomon, que vê a obra como um verdadeiro auto retrato psicanalítico catastrófico do próprio Beethoven, à socióloga feminista Susan McClary, que nela se propõe detectar sinais tremendos de um chauvinismo masculino opressivo. Entretanto, a Nona consagrou se igualmente por um consenso popular alargado que a tornou numa referência musical familiar e verdadeiramente transcultural. Na sua versão original, com melhores ou piores resultados artísticos, tocam na as Filarmónicas de Viena e de Berlim, mas também os músicos judeus e árabes da West Eastem Divan Orchestra de Daniel Baremboim, as sinfónicas de todos os continentes, os adolescentes das orquestras de jovens dos bairros pobres da Venezuela ou as crianças das aldeias índias da Amazónia boliviana. A sua presença na cultura popular urbana irradiou para as esferas do jazz e do pop rock e a sua Ode é certamente uma das melodias mais universalmente reconhecidas do nosso tempo. Talvez tenha sido precisamente com esta dinâmica universal que Beethoven sonhou ao pôr em música as palavras proféticas de Schiller: «Seid umschlungen, Millionen! Diesen Ku der ganzen Welt!».

Rui Vieira Nery

Intérpretes:
  • Coro Gulbenkian
  • Lawrence Foster (Direcção)
  • Orquestra Gulbenkian
Atualização em 18 setembro 2018

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