The Soul Expanding Ocean #4. Diana Policarpo, «Ciguatera»

Ciclo «The Soul Expanding Ocean»

A exposição individual de Diana Policarpo resultou de uma coprodução entre o Centro de Arte Moderna da Fundação Calouste Gulbenkian e a TBA21-Academy, em parceria com o Instituto Gulbenkian Ciência. Apresentada em Veneza, entre 9 de abril e 2 de outubro de 2022, no âmbito da Bienal de Veneza do mesmo ano, esta iniciativa fez parte de um ciclo de exposições de dois anos intitulado «The Soul Expanding Ocean», comissariado por Chus Martínez para o Ocean Space, em Veneza.

A exposição individual da artista portuguesa Diana Policarpo «Ciguatera. The Soul Expanding Ocean #4» resultou de uma coprodução entre o Centro de Arte Moderna da Fundação Calouste Gulbenkian (CAM) e a TBA21-Academy, em parceria com o Instituto Gulbenkian Ciência. Apresentada em Veneza, entre 9 de abril e 2 de outubro de 2022, no âmbito da Bienal de Veneza do mesmo ano, esta iniciativa fez parte de um ciclo de exposições de dois anos, intitulado «The Soul Expanding Ocean», comissariado por Chus Martínez para o Ocean Space, em Veneza.

Em 2002, o Museu Nacional Thyssen-Bornemisza criou a TBA21 Thyssen-Bornemisza Art Contemporary, uma Fundação internacional sediada em Madrid, responsável pela gestão da coleção de arte contemporânea do Museu e pelas atividades complementares adjacentes à sua divulgação e programação diversa. A TBA21-Academy é o centro de investigação da Fundação e desenvolve a sua esfera de atividade em torno do estudo transversal sobre o oceano e outras massas de água do planeta Terra, funcionando como um núcleo promotor de investigação colaborativa, produção artística e defesa da conservação ecológica, através do cruzamento das disciplinas da arte, da ciência e da política na forma de bolsas de estudo e programas de residência, bem como na apresentação de um programa cultural diversificado, assente na ideia de que a arte e a cultura são agentes comprometidos na transformação social e ambiental. Um dos núcleos de trabalho da TBA21-Academy é, desde 2018/19, a gestão da programação multidisciplinar anual do Ocean Space, localizado na Igreja de San Lorenzo, em Veneza.

Foi neste contexto que teve lugar o ciclo de exposições «The Soul Expanding the Ocean», o segundo programa de exposições do Ocean Space, ficando a curadoria a cargo de Chus Martínez, diretora do Instituto de Arte da Academia de Arte e Design de Basileia, na Suíça – o ciclo precedente intitulava-se «Oceans in Transformation» e contou com a curadoria de Daniela Zyman.

Com este ciclo de exposições, Chus Martínez procurou apresentar o trabalho de artistas que, de algum modo, pressentiu serem capazes de refletir, transformar e recolocar nas suas obras diferentes formas de relação com o oceano e os seus ecossistemas como território temático, sensorial, emocional e político, servindo assim a linha de discurso curatorial que havia desenhado: «These works are brought together in order to provide a powerful expression of a new life. Joy, kinship, and trust in life’s diversity, in the many non-linguistic, and yet fertile ways of transmission are the center of a new pedagogy through art. A pedagogy that strives for equality and future forms of organizing survival that respects all that is alive.» («“I am an evening cloud too”, said the Ocean», 2022, p. 2)

Constituindo o quarto e último capítulo de «The Soul Expanding the Ocean», a instalação multimédia Ciguatera, de Diana Policarpo, foi apresentada numa linha de continuidade com as exposições anteriores, concebidas e encomendadas a diferentes artistas para o Ocean Space: Taloi Havini concebeu uma peça sonora intitulada Answer to the Call; Isabel Lewis introduziu a ideia de coreografia e movimento através da exposição-performance O.C.E.A.N.I.C.A. (Occasions Creating Ecologically Attuned Narratives in Collective Action); e Dineo Seshee Bopape criou a instalação Ocean! What if no change is your desperate mission?, que refletia sobre o imaginário místico. Ainda que mostradas em simultâneo e de modo inter-relacionável no espaço da Igreja de San Lorenzo, as exposições da sul-africana Dineo Seshee Bopape e de Diana Policarpo coexistiam de modo autónomo, separadas pelo altar duplo da igreja. A curadora afirma no texto que acompanha as exposições: «Both installations turn into storytellers, guiding an experience that asks us to break off the taxonomic separation that disjoins nature and culture, culture and myth, science and belief. To refuse this modern rationale demands a remedy, a different trust in the elements that compose our reality and refuses a single narrative. It is important to bear in mind that the scientific data collected and the spiritual encounters embedded in these works are simultaneously oriented toward poetically grasping the Ocean as a presence of nature while enhancing a view of science and technology that is inseparable from emotional experiences and vernacular beliefs.» (Ibid., p. 1)

Diana Policarpo, que reside entre Lisboa e Londres, é uma artista visual e compositora que tem desenvolvido o seu trabalho de pesquisa artística em campos de grande amplitude temática, como a cultura popular, a saúde, a economia, a política de género, a ciência e as relações interespécies, materializando as suas pesquisas em obras que concentram um considerável domínio de diferentes media e dispositivos tecnológicos, como o desenho, a escultura, o vídeo, a composição sonora e a performance. O seu trabalho tem vindo a ser reconhecido como um dos mais interessantes entre os artistas da sua geração, sendo exemplo disso a atribuição do Prémio Novos Artistas Fundação EDP em 2019, com a instalação multimédia Death Grip, sobre a qual foram referidos pelo júri aspetos que se prendem com a «coerência da pesquisa e do discurso» de Policarpo, traduzidos na sua eficácia entre o plano discursivo e a concretização formal (Fundação EDP \ «Diana Policarpo vence Prémio Novos Artistas Fundação EDP», 2019).

A instalação multimédia Ciguatera, criada e pensada especificamente para o espaço da Igreja de San Lorenzo, foi a maior instalação concebida pela artista até à data. A exposição teve como ponto de partida uma viagem que Diana Policarpo fez às ilhas Selvagens, no norte do oceano Atlântico, um subarquipélago da Madeira arrebatadoramente inóspito, praticamente sem habitantes, palco de ensaios para potenciais viagens espaciais a Marte, e um riquíssimo território de biodiversidade, à primeira vista intocado pela presença humana. Nesta viagem, Policarpo pôde aprofundar temáticas pelas quais já se vinha interessando há algum tempo – a ecologia, a ciência e a arte num registo de contaminação mutualista –, o que implicou o contacto com biólogos e cientistas do IPMA e com a própria matéria natural das ilhas Selvagens.

Numa entrevista que Policarpo e Chus Martínez concederam à revista Contemporânea, podemos aferir o modo como essas impressões se inscreveram no processo de trabalho da artista: «São a erosão e a transformação que estão na base deste processo. E é uma questão de olhar para uma rocha ou para uma ilha como uma totalidade, juntamente com tudo o que a rodeia e a gera. Foi interessante produzir algo de uma ordem escultórica a partir dessa observação do tempo profundo e da geologia; é como se estivéssemos no oceano quando andamos à volta da instalação. Para mim, também foi significativa a experiência do cartografar, bem como a experiência de observar o que ali se passava, quem ali habitava, que género de vida ali existia. O facto de esta vida tão antiga se encontrar preservada naquele lugar foi algo que me impressionou sobremaneira. É preciso passar algum tempo a tentar compreender que tipos de histórias as ilhas contêm. Materialmente, os fósseis que lá se encontram, e por exemplo novos tipos de bactérias que hoje se descobrem conservadas no sal. E também há a questão de ser um território análogo a Marte e, portanto, um território de particular interesse para investigar, para gastar tempo a filmar, a gravar, à espera, para satisfazer a minha vontade de saber mais sobre estas analogias, e sobre estas formas de observar o oceano a partir do espaço, e sobre escalabilidade, e sobre estas coincidências que agora começamos lentamente a desvendar.» (Herrera, Contemporânea, ed. 04-05-06, 2022)

Policarpo observou, estudou e registou uma grande quantidade de informação que viria a ser transformada e integrada na sua instalação. O próprio termo que dá o título à obra, ciguatera, designa um tipo de intoxicação alimentar causada pela ingestão de peixe contaminado por certos tipos de microalgas marinhas que contenham a toxina, e surge na sua maioria em regiões subtropicais e tropicais. Muito incidente nas ilhas Selvagens, a ciguatera afeta milhares de pessoas por ano. Entre os sintomas, algumas vezes de longa duração, contam-se náuseas, vómitos, diarreia e alucinações.

A instalação multimédia de Policarpo era composta por duas esculturas de grande escala que simulavam superfícies rochosas, porventura a própria paisagem das ilhas Selvagens depositada no particular edifício do Ocean Space, para as quais, aliás, se remetia o papel de espectador, as rochas como protagonistas milenares observadoras de si próprias, deste território e das alterações que ele tem vindo a sofrer. Produzidas em madeira, gesso, terra, pigmentos e água salgada, nestas duas rochas descobriam-se ecrãs habilmente incrustados que mostravam vídeos que funcionavam como desdobramentos narrativos desta mesma matéria corpórea. Chuz Martínez esclarece: «Policarpo uses film and audio to enhance a sense of presence while capturing her research process. With their technological lenses, cameras can see layers of life activity that human eyes cannot. Later, embedded in the very substance of the installations, these films become another sculptural material and, as such, they have the same function: to create a dramaturgy where we understand that science is implicated in colonial processes and entangled in power relations.» («“I am an evening cloud too”, said the Ocean», 2022, p. 1)

Nestes ecrãs podiam descobrir-se imagens e narrativas que, conjugadas com eficácia formal e depositadas numa desejável unidade, brincavam com aspetos muito curiosos e díspares, nomeadamente: a escala e o redimensionamento do corpo humano provocados pelas imagens captadas pela artista – como assinala Isabel Salema no seu texto no Público (1 mai. 2022, p. 25), ao referir que «mergulhamos no ambiente marinho à escala das outras espécies, das anémonas e dos peixes que se escondem nas rochas» –; a própria história das ilhas Selvagens e os interesses diversos que a mesma absorveu através do tempo, em vídeos realizados pela artista e narrados pela própria ou por artistas convidados; produtos de ficção científica, um dos campos de interesse de Policarpo, como no caso da curta-metragem The Fourth Door, que narra a história de uma astrobióloga que está a passar pelas alucinações provocadas pela intoxicação ciguatera e cuja cura é encontrada «através de uns seres híbridos, espécie de bruxas do mar inspiradas no livro A Door into Ocean (1986), de Joan Slonczewski, um romance de ficção científica feminista.» (Ibid.)

Por último, aos referidos vídeos, intitulados Microcosms I-VII, When the Sea Swallows, The Fourth Door e Toxic Blooms, acrescentava-se a composição sonora de dez canais, feita em colaboração com Odete, intitulada Breath Movements, que contribuía para uma experiência sensorial imersiva do visitante, ainda que sempre ligada a um cenário visual e discursivo bastante proeminente.

Como escreve Ana Salazar Herrera na Contemporânea, a «atenção à biodiversidade natural e o relato de histórias centradas na ciguatera criam uma cartografia de histórias coloniais na qual o storytelling meandra pelos sintomas e pelos factos – por exemplo, o pioneirismo dos irmãos Pizzigani, oriundos de Veneza, na documentação e no mapeamento das Selvagens, ou a forma como a ciguatera fazia os colonizadores sofrer. Uma das vozes, como tal, é a da ilha, que assim fala por si mesma.» (Herrera, Contemporânea, ed. 04-05-06, 2022)

A curadora Chus Martínez mostrou-se particularmente feliz com a exposição, afirmando que, na sua opinião, Diana Policarpo é uma das mais eficazes artistas da atualidade a quebrar organizações de divisão de categorias do pensamento e de pendor estético tendencialmente mais estanques. A fluidez e a materialização do pensamento formal e político em repositórios multidisciplinares e tecnológicos marcam a sua prática artística: «[…] a Diana está efetivamente a conseguir tocar no assunto, porque o que ela faz tem tudo que ver com a produção de experiências reais e com a fusão possível de todas estas dimensões, ao invés de separar, ou de fazer peças, ou de fazer subtrações, ou de fazer correlações – antes, efetivamente, pretende misturar e combinar, bem como entender, tudo e qualquer coisa como material para uma prática artística. […] A Diana verteu tudo isto para a colaboração científica, mas, de seguida, transportou esta colaboração para as rochas, integrando-a numa forma plástica. E isto leva-nos aos anos oitenta, época em que o plástico era de uma importância impressiva: o tátil, o visual, a questão da forma, a composição, a questão das linguagens que se usam numa prática artística. Nesse sentido, acaba por rematar excecionalmente tudo o resto.» (Ibid.)

A exposição teve uma inscrição mediática muito considerável, destacando-se para a relevância deste facto os já citados artigos «Ir às ilhas Selvagens com Diana Policarpo», de Isabel Salema, e «Entrevista a Diana Policarpo e Chus Martínez», de Ana Salazar Herrera, publicados respetivamente no jornal Público e na revista Contemporânea. No site do programa do Ocean Space é também possível consultar um vídeo com uma curta entrevista a Diana Policarpo, no qual se poderá ter uma breve ideia do processo que envolveu a criação da instalação Ciguatera.

Na sequência desta coprodução, a instalação Ciguatera será apresentada no Espaço Projeto do renovado edifício do CAM, aquando da sua abertura (prevista para 2024), estando também a preparar-se a entrada de Diana Policarpo para a coleção do CAM, através da incorporação das quatro obras audiovisuais que integram a obra.

Nesse sentido, o CAM cumpriu uma vez mais a premissa de apoiar artistas portugueses contemporâneos em diferentes estádios dos seus percursos, parecendo ser inegável que o trabalho de Diana Policarpo, já reconhecido antes desta exposição, pôde, nesta circunstância, desenvolver-se com recurso a meios que permitiram a sua boa concretização, bem como ser observado e experienciado por um grande número de visitantes, especialistas e não especialistas em arte contemporânea, uma vez que a exposição fez parte, ainda que em circuito paralelo, da 59.ª Edição da Bienal de Veneza, na qual se destacaram também as participações dos portugueses Pedro Neves Marques, em representação oficial nacional, Pedro Cabrita Reis, Mónica de Miranda e Paula Rego.

Vera Barreto, 2023


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