Luís Fagundes Duarte

Luís Fagundes Duarte (Angra do Heroísmo, 1954) é Professor da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa. Filólogo de formação, iniciou a sua atividade de investigação em Linguística Portuguesa Histórica (grau de Mestre, 1986), evoluindo posteriormente para a Crítica Textual (Doutor, 1990), tendo-se ocupado do estudo e edição crítica de manuscritos autógrafos de Eça de Queiroz, Fernando Pessoa e Vitorino Nemésio, entre outros. Publicou mais de cem trabalhos científicos na área da Filologia e da Crítica Textual, e colaborou com diversas universidades portuguesas e de outros países. Foi Diretor Regional da Cultura (1996-1999) e Secretário Regional da Educação, Ciência e Cultura (2012-2014) no Governo dos Açores, e Deputado à Assembleia da República (1999-2011), onde presidiu à Comissão de Educação e Ciência. Por sua iniciativa, foi publicada a obra Dacosta em Paris (Assírio & Alvim, 1999) e criado o Prémio de Pintura António Dacosta (2014), ambos patrocinados pelo Governo dos Açores.

E o Poeta se fez Pintor

Comecemos pelo óbvio: António Dacosta é um dos nomes importantes do movimento surrealista português. Mercê da sua história pessoal, também se moveu muito à vontade no surrealismo europeu e, particularmente, francês – tendo sido próximo de André Breton, com quem assinou (com outros) o manifesto Rupture inaugurale (1947). Mais do que qualquer outro movimento artístico da história cultural europeia, o surrealismo assumiu como sua missão histórica promover a expressão humana sob todas as suas formas (André Breton, Segundo Manifesto do Surrealismo, 1930), sendo que essa expres­são era, no começo de tudo, a linguagem: “Não é de admirar ver o surrealismo situar-se em primeiro lugar quase unicamente no plano da linguagem, e, menos ainda, vê-lo, ao regressar de qualquer incursão, voltar lá como que pelo prazer de ali proceder como em terra conquistada”. Assim escreveu Breton, e assim fez Dacosta.

Dacosta foi um poeta que usava as telas, e as tintas, e os pincéis, e os lápis, e os papéis para construir formas de expressão da sua humanidade, mas foi também um pintor que usava esses mesmos papéis, talvez os mesmos lápis, e de certeza as pala­vras, e as frases e a língua de todos nós para construir de outra maneira as mesmas formas de expressão da sua humanidade.

Dacosta foi um poeta que foi pintor – ou um pintor que foi poeta – ou um poeta e pintor que também foi cronista e crítico de arte, tanto faz: só se pode falar em surrealismo se não perdermos de vista a relação absolutamente indispensável que os seus mentores e actores desde sempre estabeleceram entre literatura (em todas as suas formas e géneros, e sem distinção entre ficção, poemas ou crónicas) e artes plásticas. É a histó­ria que no-lo confirma: o surrealismo em geral teve as suas manifestações públicas mais consistentes em exposições e em galerias de arte, onde se misturavam os cheiros das tintas de imprimir e das tintas de pintar, onde os livros integravam representações das artes plásticas e gráficas e os quadros suportavam poemas e cadavres exquis.

Confirmam-no também aqueles que deram corpo ao surrealismo português: tal como António Dacosta, também António Pedro, Moniz Pereira, Cruzeiro Seixas, Mário Cesariny, Marcelino Vespeira, Fernando Lemos, Isabel Mey­relles ou Ana Hatherly, são pintores (ou escultores, no caso de Isabel Meyrelles) e poetas. E se os houve que foram essencialmente poetas – como Mário Henrique Leiria, Alexandre O’Neill, Pedro Oom, António Maria Lisboa, Herberto Hélder, José Sebag, António Barahona –, a verdade é que, de uma maneira ou de outra, integra­ram grupos cuja forma de manifestação mais frequente ou mais marcante foram exposições, sendo que algumas delas fizeram história, como aconteceu com o Grupo Surrealista Dissidente, animado por Mário Cesariny, com as suas duas grandes exposições (em 1949 e 1950), onde também participaram Cruzeiro Sei­xas, Mário Henrique Leiria, Carlos Calvet ou António Maria Lisboa.

Aquela que é geralmente considerada como a primeira exposição surrealista (ou pelo menos surrealizante) em Portugal, na Casa Repe (no Chiado), em 1940, foi obra de um trio de artistas multifacetados: o poeta, dramaturgo e pintor António Pedro, a escultora inglesa Pamela Boden e o nosso poeta e pintor António Dacosta.

Mas não foi para contar a história das ideias, das obras e dos seus autores, surrealistas, que para aqui me chamaram: já muito se escreveu e publicou sobre surrealismo e existe já uma boa bibliografia sobre Dacosta pintor. Também não me chamaram para fazer um ensaio formal sobre Dacosta poeta surrealista: isso implicaria fazer definições, classificações, arrumações, erudições – e para os surrealistas tudo o que seja definir uma coisa significa limitá-la; tudo o que seja classificar é falsear; tudo o que seja arrumar é deixar que a razão abafe a imaginação; tudo o que seja erudição é deixar de sentir.

* * * 

Mas, afinal, de que falamos quando falamos de Dacosta escritor se tão pouco é, em quantidade, aquilo que da sua escrita nos chegou? Fazendo bem as contas, de tudo quanto escreveu em poesia e em prosa, teremos, editados, um poema solto, dos anos de 1940 – “O Trabalho das Nossas Mãos” –, e duas antologias póstumas – uma de poesia, A Cal dos Muros 1, e outra de crónicas, Dacosta em Paris2. De acordo com Bernardo Pinto de Almeida, “pouco antes da sua morte, o António recomeçara a escrever. Tal como, alguns anos antes, recomeçara a pintar […] Os poemas antigos, ainda dos inícios dos anos quarenta portugueses e dos vinte e poucos da sua vida nómada, tinham-se perdido, e só se conservara aquele que tinha sido publicado no seu tempo, O Trabalho das Nossas Mãos, que depois foi retomado no catálogo da sua retrospectiva”, e sonhava “em editar uma recolha de poemas para a qual tinha já um título: A Cal dos Muros.”3 O editor confessa que este livro não contém todos os poemas sobreviventes de Dacosta – de facto, refere-se à sua “difícil decisão sobre as versões incluídas e os poemas escolhidos” –, pelo que um filólogo ainda poderá ter a esperança de vir a encontrar aqueles que pelo editor foram negligenciados, ou ainda, eventualmente, outros que dele seriam desconhecidos à hora da feitura da antologia. A verdade é que Bernardo Pinto de Almeida afirma que “se perderam a maior parte dos admiráveis textos que sobre arte [Dacosta] escreveu, em jeito de ganhar a vida, publicados em jornais portugueses, ou mais tarde, e já a partir de Paris, num jornal do Brasil”4, e no entanto, anos mais tarde, Miriam Dacosta viria a apresentar-me um considerável amontoado de recortes de jornais – Diário Popular e Revista Panorama, de Lisboa, e O Estado de São Paulo –, que por anos e anos tivera guardados e que, por minha iniciativa, viriam a originar Dacosta em Paris – que contém mais de quatrocentos textos de crítica de arte (e não só)… Já agora, seria interessante trazer-se a público as “várias versões” de poemas a que se refere o editor de A Cal dos Muros, permitindo-se assim ao leitor fazer o seu próprio juízo acerca do interesse (que, conhecendo-se Dacosta, não seria desprezível) das respectivas lições e, por arrastamento, tomar as suas próprias opções quanto à lectio melior que poderá, eventualmente, ser diferente da do editor (nunca é por acaso que um autor deixa versões diferentes, quando o faz, de uma mesma obra: ele próprio não terá sido capaz de optar definitivamente por aquela que consideraria a versão ne varietur).

Mas pronto: é isto que temos, é disto que dispomos, pelo que aquilo que por agora poderei dizer sobre a obra literária de António Dacosta a isto se cingirá.

1 António Dacosta, A Cal dos Muros. Lisboa: Assírio & Alvim, 1994.
2 António Dacosta, Dacosta em Paris. Lisboa: Assírio & Alvim, 1999.
3 Bernardo Pinto de Almeida, «António, um rosto». In Dacosta, A Cal dos Muros, op. cit., p. 9, 11. Veja-se, a propósito, Rui Mário Gonçalves. In António Dacosta: Retrospectiva 1939-1948. Lisboa: Galeria Buchholz, 1969.
4 Ibid.

* * * 

Comecemos então pelo grande poema de feição surrealista “O Trabalho das Nossas Mãos”, a propósito do qual se poderia dizer, à guisa do melhor surrealismo, que as palavras têm uma vida emocional própria: elas escorrem ora harmoniosas, ora abruptas; desfazem-se, originando outras, com novos sentidos, mas sem nunca perderem o seu sentido original –

Eu era novo e tu simulavas
tardes imóveis à porta do nosso medo nas mais
difíceis em que te
ocupavas com gestos e uma invencível entrega te

fazia invejar as cha-
minés e os seus fumos.

– numa prova de que a linguagem pode ser utilizada de uma maneira totalmente diferente da do uso habitual, sem se submeter (como escreveu alguém que agora não recordo) à lógica ou às necessidades da comunicação convencional ou, ainda, às convenções de versificação, mesmo usando as formas e as estruturas tradicionais só que subvertendo-as: que outra coisa se poderá dizer da sequência “uma invencível entrega te | fazia” (em que a colocação em fim de verso do pronome “te” torna ambíguos os valores morfológicos de “invencível” – substantivo ou adjectivo? – e “entrega” – substantivo ou verbo?), ou de “as cha-|minés” (palavra que, mercê da divisão abrupta e aparentemente desnecessária, sai do seu papel meramente referencial para se transformar em objecto estético), tal como aqui nos são dadas?

E disto?:

Eu simulava ver um barco incendiado, um mar de
lixívia a arder e as ren-
das da noite crepitando. Ouves ainda o rumor das
estrelas de que, nos
declives, dependiam nossos passos? Um pedestal de
ócio sustinha as es-
tátuas do vale, inertes de desterro, todas de rosto
semelhante, existin-
do de ausência erguida.

Esta visão de um “mar de lixívia a arder”, das “ren-|das da noite crepitando”, reforçada pela insinuação do tempo subjacente à construção das rendas (também, é claro, “um trabalho das nossas mãos”), gráfica e prosodicamente representada pelo corte suspensivo em “ren-|das”, o que do ponto de vista da versificação seria inútil, mas que aqui não pode ser desligado da nova imagem gráfica que ganhou e que, por si só, deixou de ser mera forma para se transformar em substância poética – é surrealismo, não é?

Não conhecemos outros poemas de Dacosta na sua fase surrealista – porque, afinal, Dacosta foi muito mais do que um criador surrealista, e esta exposição dará bem conta disso. Tal como viria a acontecer com a sua pintura, à qual voltaria a partir dos anos de 1970, depois de uma longa interrupção, o poeta-pintor regressou à escrita de poesia (isto tendo em conta os textos que são conhecidos, ou que se terão salvado), a qual, uma vez mais, não poderá ser desligada da pintura. Não conhecendo os manuscritos originais, que poderão eventualmente conter informações que permitam datar os textos, não poderei situar no tempo a trilogia de pequenos poemas “A Ilha com a Ilha Novamente” onde, no primeiro poema, encontramos esta forte referência ao regresso à ilha:

De súbito
Estas flores o cheiro a pedra queimada

Poderíamos dizer que temos aqui a chave para entender não só a poesia como, sobretudo, a pintura de Dacosta dos seus derradeiros anos de vida: mesmo em Paris, a ilha a que “de súbito” regressa (e o advérbio “novamente” do título desta trilogia para tal aponta) está tão presente nesta poesia como o está na pintura da mesma época, na qual Dacosta trabalha, repetidamente mas sempre em novas gramáticas e conjunções, os símbolos identitários mais fortes da sua natal ilha Terceira: o culto paraclético do Espírito Santo – com especial incidência nos seus ícones mais representativos: a pomba, a coroa com o seu ceptro, e a bandeira –, e o Toiro – um e outro com fortes reminiscências de um paganismo ancestral que os rituais cristãos não conseguiram apagar e que, ao invés, o isolamento ilhéu veio reforçar e avivar. E aqui aproveito para citar Vitorino Nemésio, no seu clássico “Açorianidade” (de 1932):

Mas a vida açoriana não data espiritualmente da colonização das ilhas: antes se projecta num passado telúrico que os geólogos redu­zirão a tempo, se quiserem… Como homens, estamos sol­dados historicamente ao povo de onde viemos e enraizados pelo habitat a uns montes de lava que soltam da própria entranha uma substância que nos penetra.

Não sei se Dacosta terá lido este texto, mas qualquer açoriano que medite nas suas circunstâncias chegará muito facilmente ao cerne do conceito nemesiano de açorianidade – e assim aconteceu com o nosso “pintor europeu das ilhas”, como tão bem o definiu, já em 1942, o próprio Nemésio5. Vemo-lo na pintura dos últimos anos, e verificamo-lo na poesia que, como sombra acompanhando o corpo que a projecta, entretanto foi compondo, como neste poema que tão bem representa a açorianidade de Dacosta e que poderia ser cotejado com o citado texto de Nemésio:

Ilha de ser e pedras
Anel e eco de mim
És o vulto e és o véu
Do nada que deténs
Ponho a mão no teu seio
Ouço o fogo em que ardes
As asas com que te escondes
A evidência em que te consomes

Dacosta viveu e morreu, pintou e poetou, trazendo a ilha às costas, seja ela metáfora, no seguimento dos mitos das ilhas afortunadas que nos chegam desde o Hesíodo de Os Trabalhos e os Dias (em que estas ilhas são o locus amœnus onde, depois de morrerem, os heróis são recebidos pelos deuses) até ao Fernando Pessoa da Mensagem (“São ilhas afortunadas, | São terras sem ter lugar, | Onde o Rei mora esperando”), seja a própria Ilha Terceira que Dacosta aqui evoca como o vulto e o véu “do nada que deténs” – num eco genial do “terras sem ter lugar” de Fernando Pessoa –, um vulcão activo (“Ouço o fogo em que ardes”) onde a par de bosques verdejantes há “pedra queimada” e um “rei” que espera:

Deuses que habitais os bosques
Vinde às águas deste porto
Assisti aquele por que esperamos
Protegei o barco que o traz
Acariciando os cães e os filhos
Que nas mãos lhe seguram a coroa
A ele o queremos rei

A este rei, cuja coroa é segurada pelos filhos – da ilha? Dos navegantes que a ela arribam? –, se chama, nos Açores e com mais força telúrica na Ilha Terceira, o Senhor Espírito Santo, que nestas ilhas é, na verdade –  e numa inversão que não desdenhariam os mais puros surrealistas na medida em que denota um espírito liberto das aparências impostas pela cultura assente e dogmatizada –, a primeira pessoa da Santíssima Trindade…

5 Vitorino Nemésio, «António Dacosta, pintor europeu das ilhas», Variante, n.º 1, 1942, p. 48-51.

* * * 

Um leitor atento da poesia de Dacosta perguntar-se-á até onde o levaria ele e as suas tão poucas, mas tão fortes e verdadeiras, poesias… Deixar-se-á deslizar pelas curtas linhas dos seus poemas, pelas leves palavras que nelas pintou – como notas de música suspensas nas pautas –, pelas breves suspensões de pasmo, lembrando haikais, como nesta em que Dacosta tão bem espelha o seu testamento de um poeta que foi pintor – ou de um pintor que foi poeta – ou de um poeta e pintor que tão bem soube dar conta de si e de cada um de nós, filhos, como ele, da mesma ilha – seja isso o que for – e da língua pela qual a pronunciamos:

As palavras que digo
Os sinais que faço
Preservam o tempo
O eco e a memória
Por isso a ti recorro
E à terra peço folhas e raízes

Não sei se Dacosta terá privado com Paul Éluard. Se não, não faz mal, esqueça-se!, porque o Dacosta que nos chegou vai muito para além do surrealismo. Mas conheceria de certeza o texto em que Éluard conclui que é a poesia que faz o poeta, e não o contrário. Ora, conhecendo-se a poesia e a pintura de Dacosta, e as delicadas sinapses que entre ambas se dão, poder-se-á concluir que, tendo encontrado a poesia, Dacosta se fez poeta, e de poeta se fez pintor.

Biscoitos, Terceira
Vila do Porto, Santa Maria
30 de Abril – 1 de Maio, 2014

Por decisão pessoal o autor do texto não escreve segundo o novo Acordo Ortográfico.

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