Ruth Rosengarten

Ruth  Rosengarten (n. 1954). Artista, historiadora de arte e investigadora/curadora independente. Nascida em Israel, viveu em Joanesburgo, África do Sul, onde frequentou Belas-Artes, antes de partir para Londres. Obteve os graus de Mestrado e Doutoramento pelo Courtauld Institute of Art, Londres. Viveu em Lisboa durante 20 anos.Vive desde 2001 em Cambridgeshire, Reino Unido.
O enfoque do seu trabalho de atelier é, agora, o desenho e a fotografia. Tem exposto em vários países, e tem publicado extensivamente, geralmente sobre a arte contemporânea e a fotografia. Tendo comissariado várias exposições e lecionado em várias faculdades na Inglaterra, em Portugal e na África do Sul, é atualmente Investigadora Associada (Research Associate) no Research Centre, Visual Identities in Art and Design (VIAD) da Universidade de Joanesburgo.
[www.ruthrosengarten.com]

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Dando Forma ao Prazer. António Dacosta Revisitado

 

O regresso de António Dacosta à pintura no final dos anos de 1970, após um hiato de cerca de trinta anos, tem sido amplamente comentado. Este intervalo veio traçar uma linha entre os dois períodos que, ao separá-los, simultaneamente os ligou. De facto, a noção de hiato ou de intervalo, tal como a de obra, só são definíveis a posteriori, considerando-se retrospetivamente toda a carreira do artista. No início, os críticos referiam-se aos dois períodos como opostos, cada um deles com a sua própria estética. No entanto, a partir da década de 1990, são várias as tentativas – que se provaram mais fecundas – para encontrar, ou mesmo criar, laços entre as duas fases, imprimindo ao arco da carreira do artista um contorno mais orgânico e, contudo, mais uno. De facto, tal como expectável, podem-se constatar nos dois períodos pontos de continuidade e, simultaneamente, de descontinuidade.

Uma das características que distingue o trabalho inicial da obra mais tardia reside na imagética exaltada, que se revela também na marca da pincelada. Mergulhando numa certa angústia tumescente, estes trabalhos transportam uma carga de culpa da qual a obra posterior parece aliviada. Esta, mais simples, mais luminosa e expansiva, assume uma dimensão que se pode genericamente nomear de “mística”. Mas as duas fases encontram-se unidas, como veremos, por um elo contínuo, se não mesmo idêntico, ao espírito do Surrealismo, bem como pela preocupação profunda e generalizada com a relação entre o sagrado e o profano.

Um dos aspetos significantes da cesura existente na obra de Dacosta – uma trajetória que abraçou com uma confessa “preguiça”1 – é incorporar o tema que percorre também a sua obra: o tempo torna-se não só uma preocupação maior, mas surge igualmente, enquanto irrupção e regresso, entretecido na própria malha e substância do trabalho autoral. Ao interromper a sua atividade artística em 1948, Dacosta vai criar as condições para o surgimento de uma nostalgia, que acaba por ser, também, um dos seus temas centrais. (Quase no final da vida, recorda: “Regressei porque senti uma nostalgia pessoal, a letargia em que caíra tornou-me decepcionante aos meus próprios olhos”2) Um hiato feito anteriormente – uma deslocação física – quando saiu da sua terra natal, os Açores, para Lisboa, em 1935, estabelecera esta dimensão da distância que viria a assumir um papel fulcral na sua vida e obra.

Contudo, houve alturas em que Dacosta negou liminarmente a noção de cesura na sua obra, o sentido de um “antes” e de um “depois”, sublinhando a continuidade, a permanência de ser, uma dimensão existencial de que o ato de pintar era apenas uma parte. “Não recomecei, continuei a ser […] Não se interrompe o que se é, não se deixa de ser quem é, não se recomeça, é-se.”3 Ou, um pouco mais tarde: “Não tenho noção nenhuma do tempo, não houve nenhuma descontinuidade no meu viver. Não existe esse abismo da paragem que convém ao marketing. Parar de pintar não teve no meu caso qualquer drama.”4

Nos vários testemunhos que deu, Dacosta recria a ambiência – cultural e psicológica – dos finais da década de 1940, uma atmosfera na qual considerava impossível continuar a pintar. Fala de um mal-estar no mundo da arte, do esgotamento das possibilidades e dos recursos. Numa entrevista publicada em 1990, pouco após a morte do artista, o crítico de arte João Pinharanda perguntava-lhe se a decisão de parar de pintar tinha a ver com o impasse em que se encontrava a figuração nos finais da década de 1940:

Sim, a figuração era já uma simulação. Só tinha sentido se fosse pensada historicamente [..] Senti isso no fundo de mim, como uma espécie de ânsia carregada de urgência. […] qualquer coisa ia acabar, e, antes que acabasse, eu tinha de ser: pintar e acabar de pintar. Senti que havia um desfasamento com o tempo em que vivia […] De facto deixei a pintura porque senti um esgotamento. O surrealismo caía e nada o substituía…5

Por volta da década de 1940, os primeiros surrealistas tinham chegado a um impasse nas suas diferenças políticas e estéticas. O Surrealismo afastara-se do manifesto e do projeto originais. No começo da Segunda Guerra Mundial, a maioria dos surrealistas europeus encontrava-se geograficamente dispersa, fazendo carreiras individuais, já não unidos pela sua adesão a um objetivo comum. É sintomático do atraso cultural de Portugal durante a ditadura salazarista o facto de os principais grupos surrealistas portugueses se constituírem só em 1948. Max Ernst, Salvador Dalí, Yves Tanguy e André Masson tinham-se refugiado nos Estados Unidos durante a guerra, influenciando e fortalecendo os artistas americanos que davam forma a um novo movimento – o Expressionismo Abstrato – o qual partilhava alguns dos pressupostos surrealistas, embora americanizando-os: a escala e o caráter transcendental das obras de Barnett Newman, Clifford Still e Mark Rothko são do Novo Mundo, e o “automatismo puramente psíquico”, nas mãos de Arshile Gorky e de Jackson Pollock, revelava-se tudo menos “puro”, dado que ambos reconheciam um discurso de autoridade prévia, embora Pollock traduzisse na arena da tela o apelo surrealista à revolução. Em 1941, André Breton fugia também para os EUA, e depois, em 1944 para o Quebec, só regressando a Paris depois de terminada a guerra. Enquanto se encontrava nos Estados Unidos, Breton toma o pulso ao Surrealismo num texto publicado em 1941 e que aparece anexado à segunda edição da obra le Surréalisme et la peinture, “Genèse et perspective artistiques du surréalisme”, e, mais tarde, em 1946, em “Prolégomènes a un troisième manifeste du surréalisme ou non”, recorda os princípios do movimento. Mas quando Breton e outros artistas exilados regressam a França, após a libertação, nem a oportunidade, nem o impulso necessário para reagrupar o movimento surgiram. Em 1948, em França, a era das retrospetivas surrealistas já tinha começado. Foi exatamente nessa altura que Dacosta, agora também em Paris, deixa de pintar. O que não pode ser mera coincidência. O vazio deixado pelo Surrealismo num pintor cosmopolita, que por acaso é também português, exatamente no momento em que o Surrealismo se constitui formalmente em Portugal, era paralisante.

Nos finais da década de 1970, quando Dacosta se dedica à pintura de forma mais assídua (durante a longa pausa, tinha havido alguns salpicos ocasionais), o clima cultural era novamente de recetividade à pintura. O próprio Dacosta nega, contudo, qualquer ligação direta entre a sua obra e o regresso à pintura que se observa na primeira metade dos anos de 1980, após o impacto do Minimalismo e após as várias exigências para a demolição dos valores aceites em arte (as diversas versões do Neo-Dadaísmo, do Conceptualismo, da land art e da performance art, todas na primeira linha das vanguardas dos anos de 1960 e 70). A sensibilidade de Dacosta às preocupações artísticas suas contemporâneas é todavia evidente não apenas em toda a sua obra de atelier, como também nas críticas de arte que escreve ao longo dos anos em que não pinta.6

O que Dacosta ganhara entretanto era um sentido agudo da transitoriedade, a noção da sua própria mortalidade. Agora, mais urgente do que o esgotamento da linguagem pictórica, ergue-se dominadora a primordial motivação para o impulso criativo: a necessidade de deixar a sua marca antes do morrer da luz, a vontade de se opor à sua mortalidade. Estava agora nos sessenta. Articula a sensação de estar a esgotar o seu tempo de diversas formas, mas o impulso geral é sempre o mesmo: a pintura – a atividade de pintar, bem como o objeto material que dela resulta – é uma forma de parar o tempo, e mesmo de adiar a própria morte. Nas suas palavras:

A pintura sucede-me outra vez. Porquê? Porque há algo em mim contra o transitório, contra o periclitante do real. Há como que o exorcismo da morte […] a vontade de eternizar o que é passageiro. 7

Ou:

[Regressei] talvez por narcisismo, sei lá […] porque num certo momento achei que já não era a pessoa jovem que tinha sido, e quis inventar qualquer coisa que agradasse ao tal Outro que há em nós. […] O mundo exterior é uma coisa fugaz, sem forma – ninguém sabe onde o real começa – e essa luta contra a morte consiste em dar uma presença mais sólida, mais viva, a essa transitoriedade, dando forma ao prazer.8

Ao interpelar, por outras palavras, a alteridade, pela qual o sujeito se constitui, Dacosta, tal como Matisse, confirma que o prazer é algo de sério e, simultaneamente, uma oportunidade para a transcendência. Talvez não seja uma coincidência podermos reconhecer, nas observações que faz à pintura de Matisse, a direção que o seu trabalho vai posteriormente tomar. Em 1956, dois anos após a morte de Matisse, escreve que reconhece na obra do artista francês a arrebatadora combinação de uma “calma contemplação” e de um “voluptuoso abandono”, observando de forma elíptica que “onde a forma é puro prazer dos sentidos, a substância tem a fecundidade da luz.” A sua descrição da “lúcida expressão de um estilo figurativo decantado em cromatismos luminosos” de Matisse, “que Matisse quis compensadora de todos os desastres da vida”9, podia servir para descrever as obras realizadas por Dacosta na última década da sua vida. Mas mesmo na sua tranquilidade, sensualidade e luminosidade, a obra tardia de Dacosta mantém vestígios da sua antiga angústia, quer na agitação das pinceladas, quer na reiteração dos motivos de crânios humanos e de animais, que traduzem a sua obsessão recorrente com a morte. “Há um certo desejo de perenidade naquilo que eu gostaria que a minha pintura tivesse […] No sentido que ela fosse… não – … me desse a ilusão de não morrer.” 10 Essa “tal coisa permanente” é como o crânio existente sob o couro cabeludo: persiste para lá do tempo de vida do indivíduo.

A preocupação com a (i)mortalidade encontra-se certamente no cerne da obsessão de Dacosta com a assinatura de artistas há muito desaparecidos e já esquecidos, com a ideia paradoxal de um autor anónimo. É óbvio que o artista não é anónimo para si próprio: tal como a ideia de um regresso à pintura, a noção de anonimidade é retrospetiva e extrínseca ao seu autor. Dacosta ficou fascinado com as assinaturas de pintores obscuros do século XV, artistas que a história, por qualquer razão, não tinha elevado ao estatuto de autor reconhecido. Sentia-se atraído pelo conceito de assinatura, não só pela sua força gráfica como pela indexicalidade denotando a presença do autor, o “eu estive aqui” de todos os graffiti, algo implícito em todos os atos em que se assina o próprio nome. Neste sentido, a assinatura representa um corpo: pela sua própria natureza, refere-se a uma fonte, uma origem ausente ou que se virá a tornar ausente. Eu partirei, a minha assinatura ficará; a minha assinatura está onde o meu corpo não está. Neste particular, uma assinatura é como uma fotografia. Ao referir a assinatura como um evento, Jacques Derrida observa que “para que a ligação à fonte se produza, é necessário portanto que se retenha a singularidade absoluta de um acontecimento de assinatura e de uma forma de assinatura: a reprodutibilidade pura de um acontecimento puro”. Enquanto traço deste acontecimento e vestígio da presença viva de quem assina, a assinatura “marca também e retém o seu ter-estado presente num agora passado, que permanecerá um agora futuro portanto […] na forma transcendental da permanência”.11

Ampliadas de forma a preencher toda a tela, estas assinaturas, na sua força, são simulacros de um evento autoral, existem separadas de um corpo vivo e funcionam como signos disponíveis para apropriação. Como fragmentos simulados de altares perdidos, revelam a sua melancolia inerente, conotando a perda de um objecto integral cuja completude não pode voltar a ser reconstituída.

1 “Sou talvez um preguiçoso contrariado”, em António Dacosta, «A minha pintura é uma impureza que tende para a luz», O Primeiro de Janeiro, 25 maio 1988.
2 João Pinharanda, «António Dacosta. Saudades deste sítio», Público (Revista), 9 dezembro 1990.
3 Maria João Avillez, «António Dacosta. O regresso à pintura 35 anos depois», Expresso, 18 junho 1983.
4 Bernardo Pinto de Almeida, «Pintar é uma forma de adiar a morte», O Jornal, 22 julho 1983.
5 Pinharanda, op. cit.
6 Ver António Dacosta, Dacosta em Paris. Lisboa: Assírio & Alvim, 1999.
7 Avillez, op. cit.
8 Almeida, op. cit.
9 António Dacosta, «Flores para Matisse», 14 agosto 1956. In Dacosta, op. cit., p. 207.
10 Avillez, op. cit.
11 Jacques Derrida, «Assinatura, acontecimento, contexto». In Margens da Filosofia. Campinas: Papirus Editora, 1991, p. 371.

Espaço, Tempo e Exílio

A preocupação com a mortalidade, mesmo se uma constante na obra de Dacosta, assume formas diferentes nos primeiros trabalhos e na sua obra mais tardia. Enquanto que, nos primeiros trabalhos, a imagética apocalíptica invoca na sua iconografia pós-lapsariana e escatológica a atitude de correção moral que caracteriza o Surrealismo de André Breton, a obra mais tardia aparece limpa e imersa numa atmosfera de luz e frescura, num simbolismo regenerador de paraíso recordado ou imaginado. Obras como Serenata Açoreana ou Antítese da Calma, ambas de 1940, mergulham numa atmosfera ameaçadora. Pertencem a um universo de culpa e pecado. Aqui o tempo é linear, histórico: há um antes e um depois. No final desse tempo, existe a possibilidade de redenção. A obra tardia oferece uma visão menos teleológica, mais budista, com reiterações de decomposição e regeneração, sugerindo uma conceção circular do tempo, embora nela irrompa frequentemente a ansiedade sobre a morte e a condição da mortalidade.

A mudança surge antecipadamente numa das pinturas da primeira fase, A Festa, de 1942. Apesar da ambiência de doçura lírica próxima do gosto oficial da época, esta pintura pressagia a obra mais tardia de Dacosta quer na sua preocupação com os rituais cíclicos (as Festas do Espírito Santo, nos Açores), quer por se passar de um surrealismo de estranheza para um surrealismo de encantamento. São várias as obras dos anos de 1980 atravessadas por um sentido de mistério, fonte não de angústia mas de delícia e encanto. A mescla de seriedade e humor, as formas simplificadas, a luz difusa, as figuras entretecidas no fundo, as superfícies pinceladas, tudo concorre para criar um sentido palpitante de prazer e de presença.

Nestes trabalhos mais tardios, Dacosta reúne de forma lúdica símbolos religiosos e mitológicos de várias proveniências. Três Estrelas Brancas ou O Bailador, de 1983, incorporam iconografia cristã (a figura cruciforme, as três estrelas, o crânio) e imagens de natureza mitológica genérica (a coluna, a sereia, o próprio bailador). Nestas obras, somos confrontados com um mundo de fluxo, de luminosidade variegada, em que a transcendência confirma e é reforçada pela materialidade. O ato da própria pintura é incitado por um sentido de urgência e de fisicalidade, e é a vida sensorial e sensual do corpo, e a factualidade da sua presença, que transpira no próprio processo do ato de pintar. “É a mão que faz o pintor.” – observa o artista – “Existe, é claro, uma dimensão do subsolo, da congeminação, mas o universo da imagem é feito com as mãos.”12 Ou: “Eu jogo com a morte ironicamente, até com a minha. Metafísica? Não sei o que é. Tudo são relações físicas, mas realmente ao nível da matéria. Realmente há causas estranhas, até a causalidade se põe em causa.”13

Quando substitui o tempo irreversível e linear judaico-cristão pelo cíclico eterno retorno das religiões pagãs, Dacosta está, de facto, a repudiar os efeitos corrosivos e degenerativos do tempo, negando a finalidade da própria morte:

A minha pintura é a procura de um absoluto, de qualquer coisa que escape ao tempo ou que defina o que há de imponderável no tempo. Não tem tempo possível porque não há passado nem futuro, porque só há espaço no mundo. E isso aflige-me, o estar a morrer sem ter tido tempo… apenas a experiência do instante. Mas curo-me dessas ideias negras fazendo encontros com as ejaculantes fontes de Sintra. É uma pintura obcecada. O fim é o casamento, a união, esse amor com a morte. Fazer amor é morrer um pouco.14

A ejaculação aparece como expressão de potência e do seu esvaziamento: é a invocação da velha analogia entre orgasmo e morte. As fontes de vida, morte e renascimento participam num ciclo único e contínuo. O entretecer da aniquilação com a fertilidade e do olvido com a energia libidinal encontra-se tradicionalmente associado a temas como o Batismo ou o Dilúvio. Está presente em Fontes de Sintra, obra especialmente importante para Dacosta por dela emergirem diversas preocupações interligadas: a memória, a regeneração, o poder hierático da simetria, e a capacidade de uma imagem para reificar e representar uma determinada experiência. De facto, estas pinturas podem ser encaradas como a tradução física de um princípio original, o equivalente pictórico de um mito cosmogónico.15 Pode-se dizer que a representação da fonte, simplificada ao ponto de se transformar em emblema, e que migra entre pinturas de meados de 1980, é também algo de profilático, como se a pintura mantivesse a morte afastada.

No cerne da obra de Dacosta, a preocupação com o tempo funde-se com a obsessão com o espaço e o lugar. O intervalo (espacial, temporal) constitui a distância em que o desejo se aloja: haverá algo que o expresse mais claramente do que os deliciosos Queria Este Pato ou Dois Limões em Férias, ambos de 1983? Nos primeiros trabalhos, a relação entre o tempo e o espaço/lugar é, como se poderia esperar, mais linear: a distância que se instala entre a consciência e os seus objetos é simultaneamente espacial e temporal: “nessa altura” é também “nesse lugar”. As obras do primeiro período, pintadas em Lisboa, bebem incessantemente do fundo das memórias de infância, onde um outro tempo equivalia a um outro lugar: os terrores infantis são evocados tendo como pano de fundo as paisagens da ilha. Recordando pinturas como Serenata Açoreana, Cena Aberta, ou O Usurário, Dacosta reflete:

É um olhar interior, que passa em mim pela geografia da ilha, pelo mar, pelo seu silêncio imemorial e os seus românticos acessos de raiva […] e que passa também pela frustração, por um défice de sentido que parece isolar essas coisas num tempo e num espaço enigmáticos.16

Muito mais tarde, a infância passada nos Açores torna-se o tempo privilegiado de recordações mais tranquilas. Na série de trabalhos sobre papel intitulada Memória, de 1982, um triângulo aparentemente abstrato revela-se um símbolo encriptado de uma recordação de infância. “As pirâmides”, escreveu Dacosta a Rui Mário Gonçalves,

são, na realidade, “Memórias”. Não sei se já estiveste na Terceira. Há no alto da cidade uma Memória (ao D. Pedro IV) piramidal onde brinquei em menino. Tinha-a diante dos olhos, pois vivia ao lado. Isto para te dizer que não são coisas puramente abstractas.17

A mudança para Paris, em 1947, trouxe novas saudades, desta vez por Portugal. Como se cada estada só adquirisse a sua verdadeira dimensão de pertença uma vez relegada para o passado. No entanto, embora as recordações apareçam sempre ligadas às suas deslocações físicas, Dacosta permanece ambivalente sobre o conceito de exílio. Questionado sobre se “estar onde não se está” pode ser uma definição de exílio, afirma: “Não gosto da palavra, não gosto porque não chega a haver exílio.”

Na realidade, para o cosmopolita que era, a oposição entre pertença e exílio era algo de capcioso. “Eu sou um provisório”, afirmava. “Um emigrante provisório há quarenta anos. Simultaneamente, eu quero estar aqui e não quero. Talvez o exílio seja isso, estar longe daquilo de que mais se gosta. Uma espécie de amor impossível.”18

É pertinente ouvir o relato do próprio Dacosta sobre a sua mudança para Paris, e a génese, através da deslocação e da saudade, de um sentido de identidade portuguesa:

Quando parti, [com uma bolsa dada pelo governo francês] foi “contre coeur”, nunca pensei que fosse para ficar […] Tive uma tremenda desilusão. Chovia muito, havia racionamento […] foi tudo muito duro. Aí começou o meu exílio que nunca foi exílio, pois recuso a palavra.19

E então, pelo que parece ter sido uma inércia característica, uma propensão para se deixar levar na corrente dos acontecimentos externos, permaneceu. Da perspetiva que a França lhe proporciona, começa a pensar em Portugal como, em Portugal, tinha pensado nos Açores: com um sentido de outrora-pertença. “Comecei a perceber um certo número de coisas que estão em mim e que eu não posso ignorar, que fazem parte da minha identidade. E quanto mais tempo vou passando em França mais essa diferença aparece. É o menino que não morre em nós.”20

A desterritorialização, a noção de que “onde eu pertenço é sempre num outro lugar” é, como o eu alienado de Rimbaud, o je est un autre, uma das características distintivas da sensibilidade do século XX. De facto, há quem tenha encarado o cosmopolitismo itinerante ao qual o modernismo se encontra ligado como algo inerentemente liberatório e revolucionário, uma expressão de resistência à profundamente enraizada noção retórica de nação, de solo e sangue, que caracteriza os regimes autoritários das décadas de 1930 e 40. Dacosta abraça essa postura nómada, mantendo simultaneamente um sentimento de nostalgia por um estado de pertença irrecuperável.

12 Almeida, «Pintar é uma forma de adiar a morte».
13 António de Sousa, «António Dacosta. A pintura no espaço do sagrado», Diário de Notícias, 13 março 1988.
14 Maria de Assis, «Ouvindo atentamente António Dacosta», Gazeta de artes e letras, 15 abril 1988.
15 Para mais informação sobre este ponto, ver Emídio Rosa de Oliveira, «António Dacosta. Itinerário pictórico da saudade», Semanário, 22 outubro 1988.
16 Pinharanda, «António Dacosta. Saudades deste sítio».
17 Carta de António Dacosta a Rui Mário Gonçalves, citada em Rui Mário Gonçalves, António Dacosta. Lisboa: Imprensa Nacional Casa da Moeda, 1984.
18 José Valentim Lemos, «António Dacosta pintor. Emigrante provisório há 40 anos», Diário de Notícias, 16 julho 1983.
19 Avillez, «António Dacosta. O regresso à pintura 35 anos depois».
20 Lemos, op. cit.

O Sagrado e o Profano

Embora haja, em Dacosta, um anseio de dissolução de temporalidades distintas num presente transcendente, coexiste na sua obra a noção de cisão, da fratura que separa o antes do depois. Esta relação contraditória entre duas espécies de tempo – um inconsútil, o outro dividido – corresponde a uma articulação entre sagrado e profano. Por um lado, o tempo histórico; por outro, uma outra modalidade de tempo, ritualizada e repetitiva.

O que acontece com o tempo, acontece com o espaço pictórico. Historicamente, a passagem da pintura medieval à pintura renascentista introduz um deslocamento da natureza hierática do espaço sagrado para a homogeneidade do espaço profano. Ao introduzir um sujeito preciso e soberano como objeto do olhar, a perspetiva geométrica é um dos instrumentos através do qual esta alteração se concretiza. Será que podemos ver a mudança no espaço, profundo e perspético no surrealismo onírico da primeira fase de Dacosta, mais plano posteriormente (as camadas planas de superfícies sobrepostas, as mudanças de escala), como uma tentativa de se apropriar do espaço sagrado da pintura pré-renascentista? Se este é, de facto, o caso, a pintura Melancolia, de 1942, é uma obra-chave não apenas porque incorpora um sentimento subjacente a muitas das obras mais tardias do artista, mas também por materializar a transição entre os dois tipos de espaço. Com um eixo central separando as duas formas de representação (uma naturalista, a outra remetendo para Giorgio de Chirico, irreal) ela dramatiza o tempo rasgado do sagrado.

Na sua exploração da persistência intercultural de determinados tropos mitológicos, Mircea Eliade esclareceu as diferenças entre a duração sagrada e a profana. Se o tempo profano é simultaneamente homogéneo e linear (não-reversível, histórico), sempre igual a si mesmo, o tempo sagrado é cíclico (reversível) e diviso (hierárquico): nada o evidencia mais do que os dias festivos periódicos que pontuam os calendários religiosos, perfurando o curso do tempo ao mesmo tempo que reencenam ciclicamente o mito cosmogónico.21 Aliás, o elo entre dias festivos e o decorrer do tempo é a base da sua definição: Mikhail Bakhtin assinala que os dias festivos estão relacionados “ou com a recorrência de um acontecimento no ciclo natural (cósmico), ou com ocorrências biológicas ou históricas” e que, para além do mais, “através de todos os estádios do desenvolvimento histórico, as festas sempre estiveram ligadas a momentos de crise, a momentos de rutura no ciclo da natureza ou na vida das sociedades e do homem. Momentos de morte e de renascimento sempre levaram a uma perceção festiva do mundo.”22 A permanente obsessão do artista com as Festas do Espírito Santo, celebradas anualmente nos Açores, reitera a sedução pelo sagrado, ao mesmo tempo que revela a sua apreensão por assim o referir. O jogo entre o sagrado e o profano – o que foi extraído do quotidiano e a continuidade temporal do corriqueiro – é como Dacosta recorda a celebração dessa festa durante a sua infância. Recorda que vivia como sagrados alguns dias de festa, enquanto outros, como os do Espírito Santo, eram dias de pura alegria tendendo para o profano. “Essa mistura de coisas marcaram-me em menino.”23

As alusões às Festas do Espírito Santo aparecem em algumas das primeiras obras, por exemplo em A Festa. Mais tarde, nas pinturas intituladas Em louvor de… (1984-6) vê-se uma cabeça ou crânio de touro, uma alusão às cerimónias festivas das largadas de touro, que acabavam com a imolação do animal. Esta parte do dia “em louvor do Divino Espírito Santo”, é o momento do sacrifício ritual que serve de pedra angular de qualquer ritual sagrado. A Menina da Bandeira, de 1984, também alude diretamente às festividades, desta vez aos estandartes que abrem a procissão dominical; enquanto que A Mulher e o Folião, de 1983, nos dá a ver um dos três bobos da corte a bater num tamborim o ritmo da procissão. São várias as outras obras que, com o seu ar festivo, aludem a estas festas ritualizadas.

A elaboração da relação entre o sagrado e o profano ocorre em obras que não abordam tão diretamente temas religiosos, mas através das quais somos interpelados a inferir uma preocupação com questões das nossas origens. É o que acontece claramente com o macaco de aparições maliciosas em várias obras de meados da década de 1980. Numa pintura sem título de 1984, um macaco sorridente, banhado numa luz rosa, aparece sentado ao lado de uma figura cristomórfica, protegido pela sombra de uma árvore. Excitável, brejeiro, fisicamente obsceno, o macaco é seguramente não apenas um bufão satírico, um lembrete da loucura humana, como também a imagem das origens da humanidade.

A questão das origens – o “no começo” das cosmogonias – separa o tempo do cosmos do informe fluxo que o precede. Isto significa que para cada sistema de crença não existe um mundo para lá de “este mundo”, ou do “nosso mundo”.24 O acontecimento divisório é invariavelmente um acontecimento sagrado. De facto, para Mircea Eliade, mesmo o mais secular dos sistemas de crença tem as marcas – ou uma nostalgia – da crença na natureza sagrada do cosmos e da sua origem. Referindo-se em 1983 a algumas colagens feitas nos finais dos anos de 1970, mais tarde destruídas, Dacosta faz a seguinte reflexão: “essas coisas eram o produto de uma crise de diversas ordens, uma ideia de acabar, de não haver outra saída senão acabar. Isso vem de mim ou vem dos outros, ou vem da falta de Deus, não sei…”.25 Aqui verifica-se não apenas o tão familiar sentido escatológico do fim iminente, como o paradoxo do sentir-se sem Deus num mundo sagrado. Isto demonstra o que considero ser a condição fundamental da obra de Dacosta: a nostalgia pelo sagrado.

Num artigo obituário, o seu amigo Júlio Pomar observa: “Não me lembro se o António usava ou não a palavra sagrado, creio que não. Mas no que pintava ou nos seus raros escritos, no acto de pintar ou de escrever, na grande relutância que nisso tinha – indolência de ilhéu, eco dorido duma distância por vencer – havia como um temor da profanação”. E Pomar conclui com toda a justeza, “ora o acto profanatório tem tanto da recusa como da inevitável dependência do jugo do sagrado.26

Esta dialética do sagrado e do profano expressa um misticismo que mantém as contradições em equilíbrio. A harmonia dos opostos revela-se na obsessão de Dacosta pelo Altar de Colmar de Mathias Grünewald, obra realizada para o Mosteiro Antonino de Isenheim, pintada entre 1512 e 1516. Dacosta tinha visitado Colmar propositadamente para ver esta obra. Que ele se sentia extraordinariamente envolvido pela história do seu santo onomástico é evidente nas várias versões do tema da tentação de Santo António que pinta em 1984. Ora, a iconografia da tentação encontra-se intimamente ligada à do sacrifício na mitologia do ritual sagrado. O princípio do ascetismo distancia os santos da vida corpórea, da vida dos homens e mulheres comuns, levando-os para mais perto dos deuses que, por suspeitarem neles um rival, espalham tentações no seu caminho. Este é um tema constantemente presente nas várias mitologias, seja na cristã, seja nas outras.27

Aparecendo num dos painéis laterais do altar de Grünewald, a Tentação de Santo António era, certamente, uma das suas atrações para Dacosta. O espírito gótico do altar, o esplendor acídico, a justaposição da sanidade e da doença tão dramaticamente encenadas, a evocação terrível do transcendental e do físico, tudo isso era essencialmente fascinante para Dacosta. No entanto, este deixa um texto, mais tarde transcrito por Bernardo Pinto de Almeida, no qual um outro aspeto deste fascínio é revelado. O Altar de Isenheim desempenhava um papel importante no trabalho de assistência médica dos religiosos antoninos: os doentes e os aleijados eram frequentemente levados a vê-lo como parte do tratamento.

A Ordem Antonina foi fundada em França no século XI, com o propósito de tratar dos que sofriam do chamado Fogo de Santo António (que se manifestava através convulsões e gangrenas). Num texto baseado numa pesquisa feita por Joris-Karl Huysman28, Dacosta observa que “a vocação principal dos frades da Irmandade era a prática da medicina”, cuidavam das vítimas da peste, da sífilis e da epilepsia (doenças abertamente retratadas na pintura de Grünewald). Mas o afluxo de peregrinos obriga os antoninos a procurar fontes de rendimento, e passam a dedicar-se à criação de porcos. “Estes eram marcados com o TAU, signo com a forma da letra T”, que os religiosos também cosiam nos seus hábitos.

A conjunção do sublime e do telúrico – os porcos e a ressurreição de Cristo, a marca nas coxas dos porcos e o bordado nas vestes dos religiosos – deve ter divertido Dacosta. Enquanto exemplo de acasalamento de opostos, a marca simples do “T” torna-se para ele uma obsessão, uma representação sucinta da totalidade da narrativa. Um desenho preparatório do Tau foi exposto numa retrospetiva da obra de Dacosta comissariada por Bernardo Pinto de Almeida na Casa de Serralves no Porto, em 1990, com uma instalação incorporando o Tau e um grupo de seis porcos azuis e brancos, postumamente feitos de acordo com um projeto que Dacosta não completara em vida.

Vimos como, para Dacosta, a expressão do sentimento religioso desperta uma sensação de inquietação associada à sua infância nos Açores. Contudo, pouco se verifica no conjunto da sua obra que sugira uma relação entre o seu sentido do sagrado e a religião católica predominante nos Açores, ou quaisquer outros sistemas religiosos. Pelo contrário, a palavra “paganismo” aparece frequentemente no seu discurso. “Ah sim”, reflete,

sou marcado por um certo tipo de ressaca marítima, pela distância, pelo paganismo. O meu paganismo é uma forma de olhar para o mundo e procurar uma relação feliz com aquilo que se diz ser transcendente. Os gregos divertiam-se com os deuses que tinham. Gosto deste tu-cá-tu-lá com o Céu e a Terra. Gosto disto misticamente claro… ser pagão é arredar de si certo número de tabus culturais que nos afastam do gosto de viver e sentir.29

Os prazeres de “viver e sentir” ocupam um lugar de destaque nas obras da sua última década. Fala dos seus trabalhos posteriores como “de respiração muito mais livre, há uma nova maneira de revelar aquele antigo paganismo, uma claridade, um desejo de ser, um visível prazer. Para entender isto, também é preciso morrer antes de ter morrido”.30 O paganismo é, pois, para Dacosta uma espécie de jouissance, um prazer que é, também, uma morte. Ser-se pagão é colocar-se fora da lei que que nos foi legada pelo monoteísmo. É escapar à interpelação censória que assombra as suas primeiras obras. Dacosta, ressuscitando depois de três décadas de silêncio, após “ter morrido antes de ter morrido”, introduz-nos agora num reino de prazer em que essa mesma morte aparece como um pré-requisito. É, pois, a experiência de uma morte mais recordada do que anunciada que imprime à obra a sua dimensão sagrada. Se não é paganismo propriamente dito, é, pelo menos, uma nostalgia pelo sagrado na sua heterogeneidade, um sentimento de pesar pelo desencontro com o transcendente.

Há, todavia, uma outra formulação do paganismo mais inesperada: “A minha pintura é pagã nesse sentido em que é a pintura de contaminação: em que as palavras e as imagens se contaminam entre si, uma vez mais ao contrário do que queria o Senhor Greenberg.”31 Refere-se a Clement Greenberg, o célebre defensor e fervoroso polemista do modernismo, cuja fé no valor intrínseco do medium de cada arte determinaria o caminho e a forma como esta se viria a desenvolver. Para Dacosta, como para a maior parte dos artistas da sua geração, o modernismo encontrava-se vinculado ao formalismo de Greenberg. Este defendia que a pintura devia explorar as suas qualidades enquanto medium, num imperativo de autorreferencialidade crítica, de forma a que todos os elementos alheios – toda a alusão ao mundo fenomenológico, à narrativa, símbolo ou texto – fossem expurgados. Harold Rosenberg, crítico de arte contemporâneo de Greenberg mas de pensamento oposto, observa que no mundo segundo Greenberg, os artistas desaparecem e as obras surgem desencarnadas e descontextualizadas umas das outras, sendo a trajetória do artista subordinada ao “drama popular do avanço tecnológico”. Quão responsável seria, da parte do “jovem académico, ou do velho vendedor, pensar na pintura ‘enquanto pintura,’ em vez de pensar nela enquanto política, sociologia, psicologia, ou metafísica”, resultando num “profissionalismo árido”.32 Segundo Greenberg, para o modernismo qualquer elemento exterior que distraia o observador do meramente ótico, ou que aluda a algo para além da planitude da superfície pictórica, contamina a pureza e a autonomia desse medium artístico. Como é óbvio, desprezava o Surrealismo. A pintura de Dacosta é pagã na medida em que não segue a ortodoxia modernista – a religião contemporânea – permanecendo fiel ao espírito, se não à letra, do Surrealismo.

21 Mircea Eliade, Le Mythe de l’Éternel Retour. Paris: Éditions Gallimard, 1969.
22 Mikhail Bakhtin, Rabelais and his World. Trad. Helene Iswolsky. Bloomington: Indiana University Press, 1984, p. 9.
23 Sousa, «António Dacosta. A pintura no espaço do sagrado».
24 Ver Mircea Eliade, Le Sacré et le profane. Paris: Gallimard, 1987; Roger Calliois, L’Homme et le Sacré. Paris: Gallimard, 1950.
25 Lemos, «António Dacosta pintor. Emigrante provisório há 40 anos».
26 Júlio Pomar, «António Dacosta. Em louvor de…», Expresso, 8 dezembro 1990.
27 See Roger Callois, op. cit., p. 28.
28 Cf. Joris-Karl Hysmans, Les Grünewald du Musée de Colmar. Paris: Éditions Hermann, 1988.
29 Avillez, «António Dacosta. O regresso à pintura 35 anos depois».
30 Pinharanda, «António Dacosta. Saudades deste sítio».
31 Avillez, op. cit.
32 Harold Rosenberg, “Action Painting. Crisis and Distortion”. In The Anxious Object: Art Today and its Audience. New York: Collier Books, 1964, pp. 42-43.

O Surrealismo para Dacosta

Foi o Surrealismo que forneceu a Dacosta uma linguagem fora da abstração, a corrente dominante derivada do Cubismo, já distante de um modernismo que, nos finais de 1940, estava ultrapassado. O que seduzia Dacosta era a ênfase dada pelo Surrealismo ao símbolo e aos seus sentidos “contaminados”: a ascendência revivificada do significado sobre o significante. Ele via o Surrealismo como elo de ligação a outras tradições que valorizavam o simbólico, o mítico, o alegórico. Tal como André Breton e os franceses seus contemporâneos, Dacosta desprezava o racionalismo, diretamente responsável, segundo alguns, pela catástrofe das duas guerras. Dacosta procura, antes, “outros desejos, outros lugares. Para além de…? Talvez da Europa”: a arte do México, e a pintura romântica e simbolista do século XIX, “de novo Delacroix, ou de novo Gauguin”.33 De diferentes modos, tanto para Delacroix como para Gauguin, o Outro exótico era não só uma ideia construída e romantizada, como o pretexto para a exploração da alteridade que habita a própria psique. Gauguin, especialmente, teria legitimizado para Dacosta uma forma de pintura não subordinada aos mandatos da perspetiva: um cromatismo e uma luminosidade ligadas a uma certa candura e simplicidade que proporcionavam uma via de saída para o Surrealismo onírico, sem que tivesse de sacrificar a rêverie que o caracterizava.

Quando Dacosta deixa Lisboa e vai para Paris em 1947, o Grupo Surrealista de Lisboa de que foi membro não tinha sido ainda formalmente constituído (o que viria a acontecer em 1948). Contudo, muito antes disso, já ele se sentia fascinado pelos precursores poéticos do Surrealismo, por Baudelaire e Apollinaire. O poema que cedo escreve, “O trabalho das nossas mãos”, e os poemas esboçados mais tarde revelam o seu fascínio por Paul Éluard e Robert Desnos. As primeiras obras do pintor revelam que o primeiro efeito produzido pelo Surrealismo era bastante literal. No entanto, Dacosta censura o autoritarismo da linha oficial do Surrealismo francês. “Os raros contactos que tive com o surrealismo oficial não foram muito simpáticos”, disse a Bernardo Pinto de Almeida em 1983.34 Contudo, é mais no espírito do que à letra que o Surrealismo permeia as obras tardias de Dacosta. Se, como observou Rui Mário Gonçalves, Dacosta pertence àquela categoria de artistas para quem a pintura é uma cosa mentale, isso seguramente revela como permaneceu fiel ao Surrealismo, cativado na sua dedicação ao inconsciente e na “graça verdadeiramente insolente que veio permitir ao espírito… ocupar-se com a sua própria vida.“35  Talvez seja assim que devamos olhar para uma das últimas obras, a sombria A flor, a máscara, e eu adolescente, de 1987: a projeção de fragmentos de pensamento numa tela, tão lúgubre e informe como o próprio inconsciente.

Isto conduz à obra emblemática As Três Opiniões do Mestre Ferreiro, de 1984. A alusão imediata é a Vulcano, deus romano do fogo (Hefesto, na mitologia grega). Na figura feminina nua que surge em contraposto à direita, em primeiro plano, com a árvore por detrás, encontramos reunidas a iconografia da mulher infiel de Vulcano, Vénus, e a de Eva. O que aponta para a misoginia surrealista: para Breton e para os seus seguidores, a Mulher é a incarnação, idealizada, mitologizada e quase desincorporada do maravilhoso, colocada no point sublime em que as contradições se dissolvem; ou, então, seria a prostituta mortífera, descendente da femme fatale do século XIX. É o próprio Dacosta que revela uma afinidade com esta estirpe de cariz conservador do Surrealismo: “Há um tipo de mulher para mim que é especial, com um lado putain. É um tipo de mulher vagamente obsessiva, que é sagrada. […] O que me interessa é essa sacralização da mulher: é a mulher vista por dentro, não a forma exterior.36 Este posicionamento da mulher enquanto fantasia (pois obviamente as mulheres não se veem por dentro como sendo “um bocadinho sagradas e um bocadinho putas”) releva de uma economia escópica que sustenta um modo específico (idealizado e completamente sufocante) de reconhecimento sexual.

Junto de Vénus/Eva, mulher sagrada e prostituta, o ferreiro aparece numa auréola dourada, empunhando o martelo do seu ofício. Com o poder de controlar o fogo, Vulcano forjou as armas dos deuses e heróis da antiguidade tendo, nessa qualidade, sido também o educador do homem arcaico. A arte do ferreiro é um mister que o alquimista também domina: ambos transformam a matéria com o poder do fogo. Os alquimistas consideram, todavia, que as transformações materiais nada mais são do que transformações mentais. Para Jung, “os alquimistas mais sérios compreenderam que o objectivo final do seu trabalho era não a transformação de metais pobres em ouro… mas sim a produção de uma aurum philosophicum (ouro filosófico).” 37 A alquimia é, por outras palavras, uma metáfora do espiritual, ou dos processos psicológicos da formação do sujeito e da sua individualização.

Em As Três Opiniões do Mestre Ferreiro, o ferreiro/alquimista consegue essa feitiçaria prodigiosa de transformar o espírito em matéria. Ele é a incarnação do artista. Esta pintura homenageia não somente os surrealistas – que se viam a si próprios como os modernos alquimistas –, como dá forma à crença de Dacosta na pintura como ato transformador. É aqui visível a profunda confiança do artista no poder, nos prazeres que continuamente proporciona, na força encantatória e transformadora da arte.

33 Pinharanda, «António Dacosta. Saudades deste sítio».
34 Almeida, «Pintar é uma forma de adiar a morte».
35 André Breton, Qu’est ce que c’est le surréalisme? Paris: Éditions Gallimard, 1935
36 Dacosta, «A minha pintura é uma impureza que tende para a luz».
37 C.G. Jung, Memórias, Sonhos, Reflexões. Trad. Dora Ferreira da Silva. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 1986. Jung tinha “visto muito cedo que a psicoligia analítica co-incidia, de forma bastante curiosa, com a alquimia…Tinha tropeçado na contrapartida histórica da minha psicologia do inconsciente”. Quando em Les pas perdus, (Paris: Nouvelle Revue Française,1924) André Breton afirma que “il n’est pas de la lecture après laquelle on ne puisse continuer à chercher la pierre philosophale”, está a referir-se à pedra filosofal como chave do processo da transformação psíquica.

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