Júlio Pomar

Júlio Pomar (n. 1926). Estudou na Escola de Artes Decorativas de António Arroio e passou pelas Escolas de Belas-Artes de Lisboa e Porto, sem ter frequentado aulas de pintura. Esteve preso, por ser uma figura de contrarregime, tendo tido obras destruídas e apreendidas.
Trabalha diversos meios artísticos – desenho, gravura, escultura, azulejo –, dedicando-se hoje sobretudo à pintura e à escrita. Em 1963 mudou-se para Paris e vinte anos depois voltou a Lisboa, onde se criou um museu monográfico em torno da sua obra, o Atelier-Museu Júlio Pomar.
Expôs individualmente em museus e galerias de Lisboa, Porto, Paris, Bruxelas, São Paulo, Rio de Janeiro, Madrid, Nova Iorque, Macau, Pequim, Istambul;  tem obra realizada para diversos espaços públicos, nomeadamente a estação de metro do Alto dos Moinhos e a estação ferroviária de Corroios.
Embora o primeiro encontro com António Dacosta tenha acontecido por meio de Almada Negreiros (que levou este ao 3.º andar da Rua das Flores, em Lisboa, onde o jovem Pomar fez a sua primeira exposição), foi em Paris que as suas relações se estreitaram, estabelecendo-se entre ambos uma amizade para toda a vida.

António Dacosta volta a pintar

 

Quando António e Mimi Dacosta trocaram a sua chambre de bonne (a dois passos de Saint Germain des Prés e na vizinhança das de René Bertholo e Lourdes Castro) por uma verdadeira casa de habitação na banlieue parisiense, Mimi, com a ajuda amiga de Pedro Morais, agenciara já para António um simulacro de atelier, o qual não teve qualquer ação sobre a proverbial indolência do marido, terno ilhéu castiço.

Aconteceu depois a exposição de pintura portuguesa contemporânea na Royal Academy de Londres, por iniciativa de Helmut Wohl, cidadão americano, professor de história da arte na Universidade de Boston e que havia instalado em Portugal a sua residência de verão. Interessando-se progressivamente pela vida cultural portuguesa, fizera amizade com artistas e escritores locais. A política então mais seguida nas raras exposições semelhantes, prescrevia que não haveria cão nem gato que, tendo parido obra de pintura, não devesse ser representado por quadro avulso, o qual naturalmente se iria perder na quase inevitável cacofonia do conjunto.

Contrariando esta tendência, Helmut Wohl selecionara meia dúzia de artistas, meia dúzia ou coisa assim, começando por Souza-Cardoso e Santa-Rita Pintor e vindo até Paula Rego e Ana Hatherly. Entre os autores que escolhera, figurava António Dacosta, que, como se sabe, partira para Paris com uma bolsa de estudo logo após o fim da Segunda Guerra Mundial. Com o andar dos tempos, acabara por abandonar a prática ativa da pintura. A prática, digo, porque acerca do que se passava nas artes andava sempre curioso e bem informado, como davam conta as breves crónicas que escrevia para o jornal brasileiro O Estado de São Paulo a convite do então diretor deste, Júlio Mesquita, exilado em Paris, que igualmente delegara no português Novais Teixeira a recensão crítica dos festivais europeus de cinema.

Na pequena viatura de Mimi, Tereza e eu acompanhamos o casal Dacosta numa épica viagem a Londres para assistir à inauguração daquela exposição. António vai nervoso, teima em discutir o itinerário e, naturalmente, engana-se sempre; Paula dá-nos abrigo e a curta estadia passa-se na melhor das disposições.

É depois desta viagem que, nas habituais visitas dos domingos, os amigos do casal Dacosta começam a dar conta de pequenas e inesperadas aparições nas paredes da casa. Raramente ultrapassando a dimensão de uma mão-travessa, representações bizarras pousavam sobre os mais variados materiais: tampas de caixas de papelão ou madeira fina, imagens impressas transformadas, etc.. E quando perguntávamos: “Que é isto, António?”, a resposta era a mesma: “Ah! Não é coisa nenhuma, fiz isso para os meninos, foi por brincadeira”.

Tempos depois, o seu amigo José-Augusto França pediu-lhe um quadro, ou coisa do estilo, para ser vendido a favor da campanha de apoio ao candidato da esquerda à Presidência da República Portuguesa. A peça produzida teve uma receção calorosa e depois começou a multiplicar-se, sempre em escala mínima, a aparição de obrinhas testemunhando de uma faculdade de invenção rara – e discreta. Nunca conheci ninguém que, como o António, tivesse assim a pintura na ponta dos dedos, em diálogo constante com um apurado sentido crítico. A subtil inteligência da pintura, servida por uma autoexigência sempre alerta, vinha ao de cima , garantindo-lhe, tal como havia acontecido anteriormente, uma presença ímpar no panorama dos artistas nacionais.

Tornava-se evidente que ele ansiava por voltar a pintar e que, devido ao seu temperamento esquivo, havia que proporcionar-lhe razões e pretextos.

Um amigo comum, o poeta Pedro Tamen, era então um dos administradores da Fundação Gulbenkian: das suas atribuições fazia parte a concessão de bolsas de estudo ou de auxílio à criação artística. Conspirei com ele para que, dentro das suas funções, propusesse ao António uma bolsa que lhe permitisse retomar a prática que, tão evidente como infelizmente, não vive só do espírito. E quando Pedro, falando como coisa sua, tal como havíamos juntos planeado, lhe sugere esta possibilidade, António assusta-se, desconfia, opõe-se: “Mas eu não quero ser obrigado a seja o que for”.

Sossegado o rebelde e concretizada a ideia, Mimi (que vinha todos os dias trabalhar a Paris) encarrega-se da aquisição dos materiais; eu, presunçosa e desnecessariamente, lembro-lhe como se estica a tela numa grade – e nesse domingo, de regresso a casa, à saída do metro na Place de la République, sou apanhado pelo rescaldo de uma manifestação e, atrapalhado com os gases que andavam ainda dispersos pelos ares, a minha falta de vocação para samaritano deve ter provocado a irritação de quem nos céus vela por nós e acabei de óculos partidos.

António recomeça a pintar. A contragosto? Ou outra coisa não querendo? Faz, desfaz e refaz: a via sacra de quem se envolve com imagens, ou com estas coisas de cores e matérias que (às vezes) em imagens se arrumam, ou desarrumam imagens.

O número de meses que poderia durar o modesto financiamento chega entretanto ao fim. Na impossibilidade de prolongá-lo, e já como consequência lógica do trabalho realizado, outro amigo comum, Manuel de Brito, proprietário ativo da Galeria 111, entra na conspiração e propõe-lhe um contrato semelhante ao praticado com os artistas da sua casa. Um ano depois, António Dacosta realizava aí a primeira exposição individual de toda a sua vida.

 

mai 2013

 

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