- Ensaios e Depoimentos
- Ensaio
Fernando Rosa Dias
Fernando Paulo Leitão Simões Rosa Dias (Caldas da Rainha, 1964). Licenciado em Design de Comunicação pela Faculdade de Belas-Artes da Universidade de Lisboa (FBAUL). Mestre em História da Arte Contemporânea pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa com o tema Ecos Expressionistas na Pintura Portuguesa (1910-1940), tese editada em 2010. Doutorado em Ciências da Arte pela FBAUL com o tema A Nova-Figuração nas Artes Plásticas em Portugal (1958-1975).
Professor Auxiliar da Área de Ciências da Arte e do Património na FBAUL. Foi Assistente Convidado (entre 1998-2003) na FCSH-UNL. Membro do Centro de Investigação e de Estudos em Belas-Artes (CIEBA), onde coordena atualmente a Secção de Ciências da Arte e do Património – Francisco de Holanda. Neste âmbito, tem organizado conferências e outros eventos, e publicado livros. Colaborou na coordenação de exposições de arte moderna e contemporânea em Portugal, de gravura e arte pública. Fez parte da equipa de investigação do catálogo KWY, Paris 1958-1968 (1998-2001) e coordena a investigação do catálogo raisonné de António Dacosta (2009-2014). Tem investigado sobre arte portuguesa moderna e contemporânea e temas em torno das relações entre as artes, as novas tecnologias e a arte, ou ainda sobre o cinema experimental, a imagem e a investigação em arte. Sobre estas questões tem publicado textos em catálogos e em diferentes revistas da especialidade e apresentado conferências em diversas instituições.
António Dacosta. A Tentação Mítica
«Não se pinta para o passado nem para o futuro, menos ainda para a eternidade; pinta-se por uma imperiosa necessidade de presente.»
(António Dacosta, 1943 )1
«Um quadro tem os seus meandros
Ir além da periferia que o fecha é quase um acto ritual
Nada de equívocos. É preciso olhar, esquecer e esperar.»
(António Dacosta, 1943)2
António Dacosta apresenta o caso particular de uma obra decidida em dois grandes ciclos, cada qual com as suas fases e desenvolvimentos próprios – e entre eles um interregno, uma longa e mitificada fase de silêncio onde produziu pouco e irregularmente. Isto distingue-o dos seus amigos Almada Negreiros e Júlio Pomar, dois dos mais impressionantes casos de continuada durée da arte portuguesa. Distinto desta continuidade sempre presente, Dacosta fascina pelo impacto das suas duas assomadas criativas entre um longo tempo de parca produção original. Não a força em estar sempre presente, mas de aparecer.
Em 1940, Dacosta era praticamente desconhecido da cena artística portuguesa, mas a exposição desse ano com António Pedro e Pamela Boden, a primeira relevante aparição pública da sua obra, foi o suficiente para um destaque na arte portuguesa da qual não mais saiu. Outra curiosidade para o enquadramento deste primeiro ciclo de Dacosta é o seu lugar relativamente às gerações que se estimaram para a arte portuguesa. Dacosta nascera em meados da segunda década do século XX, já tarde para pertencer ao segundo modernismo, mas cedo demais para a geração seguinte, nascida já nos anos de 1920 e que assinalaria nos anos de 1940 o neorrealismo, o surrealismo e a abstração. Deste modo, podemos observar nele uma figura de mediação entre a clivagem geracional (a mais sublinhada no interior da história da arte moderna portuguesa).3
O segundo grande ciclo dá-se com a sua reaparição com obras originais em 1983-1984. Dacosta surgia com o peso histórico de um consagrado vindo de outra geração que reaparecia numa emersão descontínua. Se no ciclo anterior estava entre gerações, agora surgia completamente fora da sua.
A sua obra manifestou-se em dois ápices, concisos e quase lacónicos. Em 1940 era o surrealismo. Nos anos de 1980, e em aceção genérica, era o regresso à pintura desta década. Dacosta não marcou esses tempos artísticos por perseverança ou amanhada estratégia, mas por um desprendimento que as tornava precisas e acertadas marcas irrevogáveis na história da arte portuguesa. E os tempos dessas duas aparições, eram já política e culturalmente muito diferentes. Ele próprio, desconhecido na primeira, era já figura histórica na segunda.
Os dois momentos ampliam-se pelo intervalo de suspensão da pintura, chamado tempo do silêncio ou dos pincéis secos. Mas uma interrupção não total, preenchida com produções momentâneas, atravessada por uma produção íntima4 feita na ausência de ateliê, na carência de um espaço próprio que sustentasse um tempo persistente da prática de pintura. E por uma atividade crítica que fazia com que a arte estivesse sempre próxima.
- A genealogia de um pintor
«É o menino que não morre em nós. Quando ele morre acabou tudo.»
(António Dacosta)5
Os primeiros trabalhos conhecidos de António Dacosta sucederam-se em 1928, tendo António Dacosta apenas 14 anos, e em 1934. Esta produção terá sido concitada pelo seu professor de desenho na Escola, o pintor Álvaro Castro de Meneses (1876-1967) e consiste, sobretudo, em paisagens de Angra do Heroísmo (e alguns desenhos a retrato em 1934), executadas a óleo sobre pequenas tabuinhas que teriam sido preparadas pelo pai marceneiro. Algumas obras foram apresentadas em 1934 numa Grande Exposição de Pintura, Desenho e Fotografia inserida no Torneio Literário e Artístico Açoreano, no Palácio do Governo Civil de Angra do Heroísmo.
Ao habitar da ilha sobrepunha-se o seu pintar, numa insistência da circunscrição, trabalhando a consciência de um olhar interno a um lugar delimitado através do exercício de pintar a ilha por dentro, sempre com o mar para lá, cercando a geografia nessa sensação de horizonte circundante – o mar por onde se abre o espaço do horizonte é aquele que restringe e estreita a terra. Uma consciência única de contrastes e paradoxos se provocava, entre a abertura que o olhar do motivo natural e o seu horizonte assentiam, e o fechamento que a ilha estabelecia ao aberto.
Outro núcleo de produção inicial foram os retratos, certamente iniciado com um Auto-retrato (c.1934), de onde se destacam ainda os retratos a carvão da Tia Isabelinha ou do Tio Carlos (1934), definindo um conjunto de exercícios que se entendem como preparação para se candidatar às Belas-Artes.
A primeira grande saída de Dacosta dos Açores dá-se em 1935, ano em que conseguia vir para Lisboa com o intento de frequentar a Escola de Belas-Artes. Nos primeiros tempos do curso nota-se uma apetência pelo retrato. São exemplos dois retratos a desenho, de Francisco Borges e de Maduro Dias, certamente feitos no verão de 1936, nas primeiras férias da Escola de Belas-Artes. Aí ficou o Auto-retrato com Cigarro na Boca, de c. 1936. O rigor formal, de síntese polida da mancha estruturadora dos volumes, vai ao encontro do modernismo moderado do tempo, não longe do que se verificava nos salões do SPN e que a Escola ainda aceitava. Será da mesma época, e com a mesma mancha estruturada, um Retrato de Jovem, que corresponderá a Pedro Moutinho, filho do primo Francisco Abel Moutinho, administrador do Diário de Notícias de Lisboa, cuja casa Dacosta frequentou.
A Escola de Belas-Artes não foi academismo artístico, nem trunfo profissional, mas uma assimilação de competências que, aceitando um relativo cumprimento escolar, se disponibilizava para outras transmutações. Nos finais da década de 1930 observa-se que António Dacosta se afasta gradualmente da frequência da Escola. Este afastamento deveu-se a novos círculos de amizades, em tertúlias pelos cafés do Chiado, com artistas, editores e jornalistas que o ligariam à colaboração em vários periódicos. Entre os finais da década de 1930 e a seguinte, conhecia Carlos Lepierre Tinoco, António Lepierre Tinoco, Barradas de Oliveira, Rui Cinatti, Novais Teixeira, Casais Monteiro, Dutra Faria, Ramiro Valadão6, ou artistas como Almada Negreiros7 e António Pedro (que se sabe ter conhecido em 1938 na Brasileira do Chiado).
António Pedro começara na altura a experimentar a pintura e convida António Dacosta a pintar com ele, apresentando-lhe a ideia da exposição de 1940, com Pamela Boden, escultora inglesa de passagem por Lisboa.8 O surrealismo surgiu-lhe como nova situação estética, formal e mitográfica, que superava os ditames da Escola. O seu afastamento, mais do que uma rutura, era um afastamento por desnecessidade da formação académica.
Esta transição seria plasticamente expressa na pintura O Passarinheiro (c.1937) – embora se possa juntar, com outras razões, uma pintura sem título [Menina da Bicicleta] de 1942 – , que desencobria nesta fase de formação um estremecimento de mancha perante a anterior necessidade de construção. Embora menos intenso do que hoje é possível observar, porque seria retocado mais tarde,9 o quadro, no conteúdo e na forma, escapava ao modernismo moderado da escola, superando-o pela matriz expressionista de gosto matérico10 que com maior ou menor lirismo atravessaria a sua obra, e pelo prenúncio surrealista descortinável. O quadro deixa a nota de que parece ser sido uma tentação expressionista a abrir a disposição para a metamorfose surrealista, sendo por arrastamento do movimento gestual do fazer pictórico que se agiliza a deriva da imagem para o imaginário. A comparação deste quadro com o seu Auto-retrato com um Cigarro, de afirmativo e construtivo modernismo escolar, sublinha a irreverência ou ruptura no campo de um percurso pessoal.
«Quem quer fazer de novo não pode fazer perfeito.»
(António Dacosta)11
1 António Dacosta, «Um tríptico de Lázaro Lozano», Diário Popular, 2 março 1943. In António Dacosta, Dacosta em Paris. Lisboa: Assírio & Alvim, 1999, pp. 24-25.
2 António Dacosta, «O pintor Mário Eloy», Panorama, n.º 17, outubro 1943. In Dacosta, op. cit., pp. 141-142.
3 Nas divisões propostas por José-Augusto França, a década de 1940 protagonizava uma «terceira geração» modernista com o neorrealismo, o surrealismo e a abstracão, que definia, no interior do modernismo, «fazendo propostas de ruptura e pondo problemas inteiramente diferentes». José-Augusto França, A Arte em Portugal no Século XX (1911-1961). Lisboa: Bertrand Editora, 1991 (3.ª edição acrescentada), p. 13.
4 Esta poiesis íntima foi sublinhada nas exposições António Dacosta. «O Trabalho das Nossas Mãos» (Fundação Cupertino de Miranda, Vila Nova de Famalicão, 1999), António Dacosta (Museu de Serralves, Porto, 2006) ou, sobretudo, Exposição António Dacosta. «Trabalhos Íntimos» (Galeria Ratton, Lisboa, 2006). Na exposição de Serralves, através de obras mais intimistas, explorava-se a ideia de que Dacosta nunca interrompera totalmente a atividade. Para nós estas obras são um excelente instrumento para perceber genealogias de obras, e sobretudo séries, e esse exercício plástico do pensar artístico pelo fazer que consideramos típico do último grande ciclo de produção de António Dacosta. Ainda sobre a exposição de Serralves, afirmou o crítico José-Luís Porfírio: «Esta exposição demonstra que há uma obra paralela à obra, bem como à não obra dos anos 50 e 60, que ela vem de trás e continua até ao fim (…)». José-Luís Porfírio, «Exposições. Íntimos e clandestinos. Obras pouco conhecidas de um grande pintor surrealista português e esculturas de um artista português pouco conhecido», Expresso (Actual), 22 abril 2006, p. 46.
5 António Dacosta em entrevista. In José Valentim Lemos, «António Dacosta, pintor. Emigrante provisório há 40 anos», Diário de Notícias (Sábado), 16 julho 1983, pp. 22-23.
6 Há um círculo de amizades de Dacosta que circulava entre periódicos em que viria a colaborar como o jornal Accão, a revista Variante, com algumas ligações ao SPN e às edições Panorama e Atlântico, sendo vários destes nomes criadores e colaboradores do jornal vespertino Diário Popular. António Valdemar referiu a importância das amizades com Dutra Faria, Ramiro Valadão ou António Tinoco, fazendo com que António Dacosta fosse quase um dos fundadores do Diário Popular. Cf. António Valdemar, «António Dacosta. Um açoriano em Paris», A União, 13 março 1987, p. 1, p. 5.
7 Como diria Dacosta desta «formação intelectual» e de amizades: «tive a impressão de que conheci toda a gente». António Dacosta em entrevista. In Maria João Avillez, «António Dacosta. O regresso à pintura 25 anos depois», Expresso (Revista), 18 junho 1983, pp. 31R-33R.
8 «Aliás fora pela Aninhas de Conta Colaço, amiga de D. Olga, que o António e o Pedro tinham conhecido a sua companheira de exposição da Repe, Pamela Boden, em Lisboa de passagem», José-Augusto França, texto inédito para exposição não realizada de António Dacosta no Centro de Arte Moderna da Fundação Calouste Gulbenkian (documentação do CAM).
9 O quadro estava nas mão do crítico de arte José-Augusto França que o ofereceu a António Dacosta em 1969 por altura do nascimento do seu primeiro filho. Pouco depois o pintor retocaria o quadro, no que se pode também considerar um dos momentos do processo de retoma da prática artística.
10 Esta via expressionista foi tese defendida, sobretudo, por Rui Mário Gonçalves: «(…) o seu surrealismo, logo na primeira fase, tanto assumia o silêncio da pintura metafísica como o grito do expressionismo». Rui Mário Gonçalves, «António Dacosta. Uma interpretação mítica do mundo». Artes Plásticas, n.º 7, janeiro 1991, pp. 6-12 [p. 6]. Ou ainda, cf. Rui Mário Gonçalves, António Dacosta. Lisboa: Imprensa Nacional Casa da Moeda, 1984. O próprio Dacosta reconhecia esta marca na sua pintura «Depois há uma carga expressionista, mais que surrealista, nessas coisas que eu fiz e isso devido em parte ao clima que se viveu nessa época, que era a guerra de Espanha, uma perturbação muito grande». António Dacosta. Entrevista in Tolentino de Nóbrega, «António Dacosta. Do risco se faz arte», Diário de Notícias (Madeira), suplemento «Domingo», 10 janeiro 1988, p. 9.
11 António Dacosta, «O salão de primavera inaugurou-se hoje na S.N. de Belas-Artes», Diário Popular, 7 abril 1945. In Dacosta, op. cit., p. 70.
2. O Tempo Surrealista – o teatro da agressão
«O surrealismo é o que cada um dos surrealistas foi.»
(António Dacosta)12
A exposição de 1940 de António Pedro e António Dacosta, em conjunto com a escultora inglesa Pamela Boden foi o primeiro conjunto expositivo de clara matriz surrealista a ser apresentado, quase dez anos antes do surrealismo português possuir dimensão de grupo. Dos dez quadros de Dacosta elencados em catálogo (números 7 a 16) metade terão desaparecido (no caso, os títulos: Depois da Aventura; O Heresiarca; Miragem Atlântica; Poente imaginadono incêndio que um cigarro seu despoletaria no ateliê de António Pedro, que partilhava. É a partir dos quadros sobreviventes (O Gasogénio; «Canto Hondo» / Quermesse Espanhola; Cena Aberta; Antítese da Calma; Diálogo; Serenata Açoreana, Sonolência Desfeita) que se pode entender o mais marcante corpus surrealista na obra de Dacosta.
Entre 1939 e 1942, Dacosta desenvolve um ciclo de obras de teor surrealista, com oscilações metafísicas numa segunda fase. Consideramos existirem três momentos sequentes, mas articulados, neste ciclo: um primeiro, centrado numa figura antropomórfica em primeiro plano, a partir da qual se desdobra uma série de estranhos elementos por metamorfose e conjugação, solicitando formatos verticais (casos do óleo Gasogénio e do desenho Portugal Insular, c.1939); um segundo em que as figuras, ainda de tendência antropomórfica, se multiplicam expondo uma interação tensa que ocupa o primeiro plano, requerendo formatos mais horizontais (Diálogo, 1939; para se acentuar nas obras de 1940 tendo, portanto, o seu centro no núcleo da exposição com António Pedro e Pamela Boden: Cena Aberta, Antítese da Calma, Sonolência Desfeita, «Canto Hondo»). Nestes dois momentos o espaço é aberto, apenas para ser imediatamente obstruído pelas figuras, no primeiro caso pelos elementos e metamorfoses desdobradas de uma figura, no segundo pela proximidade e interação entre várias figuras. No terceiro momento, com Serenata Açoreana (1940) a fazer de mediação, impõe-se um ambiente metafísico. Verifica-se um recuo das figuras, cada vez mais humanizadas, para dentro do espaço que as acolhe e assim as pode espraiar. As ações da figuração ficam mais lentas e distantes entre si, ampliando uma dimensão metafísica que antes se invalidava.
As obras de entre 1939-1940 definem a fase mais claramente surrealista de Dacosta. As que parecem pertencer ao início centram-se numa figura central dominante. O desenho Portugal Insular (c.1939), recusado no âmbito das Comemorações do Duplo Centenário (1940), apresenta uma figura antropomórfica semelhante a um minotauro, que está ancorada na sua ação por vários elementos, entrelaçados e confundidos entre si, como uma assemblage figurativa. A matriz classicista da figura, da irrealidade algo alegórica, será possível imagem do país ou de uma nau, algo imprecisamente descortinável na especulação gráfica e alguns elementos que envolvem a figura. O desenho assemelha-se ao óleo O Gasogénio (c.1939-1940), também desenvolvido em torno de uma sólida figura central, mas que logo se ultrapassa no desenvolvimento orgânico que a envolve e dela se espalha, e a partir da qual vários elementos se conjugam numa mistura entre devir e metamorfose, de modo que a dinâmica dos elementos que rodeiam a figura são também processos de transformação.
As obras seguintes, que dominaram a exposição de 1940, passam a ser compostas por várias figuras, fazendo do surrealismo uma estratégia para um diálogo com a irracionalidade da História coeva, numa forte relação dos elementos, em associações densas, contudo travadas num limiar que evita o seu paroxismo. Certos elementos plásticos agem para o constrangimento do ambiente. Rui Mário Gonçalves referia como «as linhas animam a composição» numa ondulação lassa, seguindo contornos que «passam de corpo a corpo»13, aproximando as figuras num frémito contíguo, ao mesmo tempo que reduzem a abertura do campo de visão posterior. Destacam-se os funcionamentos das linhas ondulantes dos cães de Diálogo, os ritmos dos membros dos corpos em Serenata Açoreana, o cromatismo dos corpos em «Canto Hondo» e Sonolência Desfeita, ou as relações através das deformações, extensões e toques dos corpos, que ultrapassam as suas próprias distâncias sobrepostas em Antítese da Calma ou nas figuras em primeiro plano de Cena Aberta.
Se a espacialidade se afunda, logo se fecha com a interposição das figuras na proximidade do primeiro plano. Estas desfilam como um reposteiro, na sua estranha inter-ação, obrigando a pintura a decidir-se nos espaços imediatos, com destaque para esse primeiro plano de olhar onde a encenação figurativa se dispõe como um ritual. A proximidade entre as figuras comprime o esforço de abertura e extensão do espaço de fundo. É neste sentido que entendemos a referência de Vitorino Nemésio sobre «aquelas cores de cripta, aquela penumbra baixa que em tudo abre a intimidade de um reflexo».14 A atmosfera e o cromatismo «de cripta», trabalham sobre cores frias acres, entre azuis e violetas, deixando-nos perante um ambiente que pesa sobre a cena. A luz e a cor também participam, tanto na opressão do ambiente como na sua estranheza. A cenografia é de terra escura e queimada, com inóspita índole apocalíptica e feição vulcânica.
O quadro aperta as figuras, e esta encobre o espaço. O efeito é uma claustrofobia da cena numa acão sem respiração nem proxémica, acometida a uma condensação que hiperboliza cada gesto encenado. As figuras não respiram a sua pose nem muito menos o seu gesto no espaço, obrigadas a uma interacão apertada e oprimida. A gaiola (Diálogo), a caverna (O Usurário, Cena Aberta, Serenata Açoreana) ou a ilha (Serenata Açoreana) são elementos dessa limitação espacial que resvala do aconchego para o sufoco. Cena Aberta, a maior tela pintada por Dacosta é, paradoxalmente, uma das suas imagens mais claustrofóbicas. O próprio Dacosta falou em «caverna» e «teatrozinho», uma «iconografia íntima e de alguns fantasmas […]. Tudo isto deriva de uma compressão que no interior da ilha é terrível, cósmica, de meter medo». Os próprios «monstros exóticos» em Cena Aberta resultavam do espírito do tempo e da «possibilidade de serem figurados».15
O transitório dá-se pela densidade das presenças em ação e esta suspende-se simultaneamente no choque entre si e no vazio da intenção da ação. O gesto inicial da ação figurada domina o primeiro plano numa inacão que rouba tanto a profundidade do espaço, coberto pelas figuras, como a do tempo, paralisado na tensão entre as ações. No paroxismo, os gestos hipertrofiam-se uns aos outros. O espaço de serena ameaça é antecipado nesse contraste duma ação em pathos trémulo, sem mergulhar ainda em pleno paroxismo, mas inquietando a cena. É esta presença ritualizada das figuras em torpor alomórfico que alimenta uma disponibilidade hermenêutica cifrada e sem código certo. No jogo entre espaço e ações, o que destacamos é essa tensão entre as figuras. Elas não são meras presenças, mas ações em antagonismo entre si. A encenação em primeiro plano move-se com a matriz de agon (do grego: contenda, disputa, confronto) como absurdo.
Nesta fase, a figuração assume modos híbridos que não percebemos como algo pré-composto, mas como emergência da conceção pictórica. Rui Mário Gonçalves esclarece-nos este processo: «A pintura surrealista de António Dacosta aparece-nos como mistura do que existe com o inexistente. Dacosta incorpora, nos seus quadros de figuração onírica, o que nunca fora visto antes. Enquanto executa os seus quadros, Dacosta altera os seus projectos. A imagem que o quadro vai oferecendo adquire uma tal força própria, na sua coerência estética, na sua riqueza psíquica, que abandona os pontos de partida, ou altera-os pela força da paixão desencadeada. E logo uma imagem nova se enclavinha numa imagem anterior».16
José-Augusto França falou de um «fingimento de uma acção», de uma «história que se esconde e continuará ignorada».17 O próprio Dacosta deixou várias vezes o perigo da decifração restrita e da sua separação dos elementos formais: «Mas a voz é anterior ao eco; confundir a pintura com o que ela suscita em quem a vê é entrar perigosamente na fantasia de cada um».18
12 Bernardo Pinto de Almeida, «António Dacosta. A minha pintura é uma impureza que tende para a luz», O Primeiro de Janeiro, 25 maio 1988, p. IV.
13 Gonçalves, António Dacosta, p. 40.
14 Cf. Vitorino Nemésio, «António Dacosta. Pintor europeu das ilhas», Variante, n.º 1, primavera 1943, pp. 48-51.
15 António Dacosta em entrevista. In João Pinharanda, «António Dacosta. Saudades deste sítio», Público (Magazine), n.º 280, 9 dezembro 1990, p. 24.
16 Gonçalves, op. cit., p. 33.
17 José-Augusto França, Da Poesia Plástica. Notas sobre a pintura de António Pedro, António Dacosta, Fernando Azevedo, Vespeira, Fernando Lemos e Vieira da Silva. Lisboa: [s.n.], separata de «Cadernos de Poesia», n.º 12, dezembro 1951, pp. 10-12.
18 António Dacosta, «Vieira da Silva», O Estado de São Paulo, 20 dezembro 1955. In Dacosta, Dacosta em Paris, p. 154.
A situação histórica, entre a Guerra Civil de Espanha e a Segunda Guerra Mundial, fornece aos quadros desta fase um enquadramento significativo próprio, em que é o absurdo da história que fornece razão e sentido às estranhas presenças e ações da pintura. Sabe-se que Dacosta passou o verão de 1940 em casa de António Pedro em Moledo do Minho, uma praia perto da fronteira espanhola, tendo ficado impressionado com o contacto com foragidos do regime de Franco na Guerra Civil de Espanha. Mas as pinturas não manipulam diretamente esses concernentes históricos, não ilustrando essas tragédias, nem sequer as simbolizando. Preferindo glosar a história de modo oblíquo, o que permite maior acerto surrealista, tais pinturas exploram situações de absurdo, não tanto pela contradição ou paradoxo, não pela ausência de sentido nem pelo mistério do que se esconde, mas pelo enigma, pelo que não se esclarece apesar de exposto. Não há nada a mais ou a menos, sendo a partir da estranheza do que se apresenta na ordem da pintura, que se espelha essa inquietação reveladora da dramática história coeva. Os momentos de referência ao quadro Guernica, que Picasso apresentara em 1937 no Pavilhão Espanhol da Exposição de Paris e ícone universal da Guerra Civil de Espanha, apontam esse modo indireto de se mencionarem os dramas da história. Os ecos de Guernica não tinham então razões formais, mas dimensão histórica e dramática. Neste sentido, o surrealismo não foi para Dacosta apenas um esforço de atualização estética, mas um modo particular de lidar com a atualidade histórica. É neste cativação aberta de sentidos, que se recusam a fechar na coação de qualquer interpretação presente, que propomos a descrição e leitura das obras de Dacosta.
Quermesse Espanhola (1939-1940) e Sonolência Desfeita (1939-1940) exibem figuras antropomórficas irreais, seres híbridos que interagem com alguma acumulação. Em Quermesse Espanhola uma figura sobre um cavalo de cabeça picassiana espeta uma lança noutra. Uma cabeça de touro conjuga-se com o cavalo numa referência a Guernica. Em Diálogo (1939), surge ao centro uma particular alusão aos cães de Rufino Tamayo (1899-1991), enquanto as figuras do lado direito aludem à Guernica de Picasso. As figuras do casal de cães apresentam-se esventradas, numa ostentação da crueldade, segurando estranhos elementos, como aves e manuscritos. Das entranhas da cadela cai uma mão que segura um indecifrável elemento. A figura feminina segura uma lanterna de gás e uma gaiola que parece conter um réptil.
Em Antítese da Calma (1940), uma figura nua atravessa obliquamente o quadro resvalando para a esquerda, para perto de uma serpente, segurando uma granada numa das mãos, enquanto a outra mão acaricia um touro suspenso atrás de si. À sua frente uma figura feminina, de costas para o observador, contorce-se. À direita exibe-se uma esquálida figura feminina com a nudez de carnes esverdeadas. A paisagem de ruínas, rochas e uma árvore fossilizada ao centro, com um obstruído mar verde-escuro ao fundo e sob um céu azul de trevas, tem sabor apocalíptico. Em baixo à esquerda, espreitando a parir de uma cova, uma figura arregala aos olhos como voyeur incrédulo. O absurdo decide-se neste olhar estrangulado, que sugere um autorretrato do pintor19. O próprio sentido do real lhe escapa, explanando-se perante si como absurdo.
Em Cena Aberta (1940), um desfile em primeiro plano, de um cão sobre uma criança em aflição que tenta agarrar uma figura feminina, explora uma articulação tensa e sequencial entre as figuras. A figura feminina alimenta com a palma da mão uma ave que se sustenta na sua cabeça. No interior de uma caixa-de-ponto de teatro (ou um teatro de fantoches), duas figuras espreitam esta primeira cena, a feminina com um pássaro na cabeça. Ainda atrás, uma rocha com uma cabeça espetada com uma seta e uma árvore fossilizada animam-se numa hibridez e antropomorfização do inorgânico, contempladas por uma imóvel figura feminina do lado esquerdo. Os olhares são vagos e sem comunicação, alheados e sem participação, observadores que não compreendem e impotentes perante a sua própria cena.
A descrição destes elementos revela uma inicial perturbação de conexão referencial, mas esta amplia-se ainda mais com a relação entre os elementos, cuja conjugação subtrai as frágeis espectativas iniciais. Entre a presença e a atitude relacional acentua-se um constante abismo da forma significante particular, num processo incessante de busca aberta de sentido, que escapa enquanto se amplia o absurdo.
Interessa posicionar, nacional e internacionalmente, o lugar do surrealismo de António Dacosta. Comecemos por diferenciar a sua obra plástica da desenvolvida por António Pedro. O próprio Dacosta afirmaria: «Os fantasmas de António Pedro tinham um conteúdo físico quase imediato para além dos disfarces líricos em que os envolvia e era isso que me surpreendia, por se opor à minha própria experiência mais enigmática, no contexto de uma memória mais remota em que me embaraçava»20. Ao contrário da dimensão mais literária deste, António Dacosta consegue transformar a figuração ao longo da pintura, sendo a sua figuração híbrida não atinente a uma composição prévia, mas o resultado de uma metamorfose durante o ato de pintar: «Começa por pintar uma coisa e acaba por pintar outra»21.
Se em António Pedro o gesto faz a metamorfose ainda em busca da figura, no esforço de uma plenitude desta que compensasse a sua carência de domínio técnico, em António Dacosta o gesto já está em ultrapassagem, para além da consumação e domínio da figura. O próprio António Dacosta falaria dessa «expressão» de «clareza um tanto inocente» da pintura de António Pedro, assente numa «espécie de “bricolage” de amador» de «aspecto aparentemente inábil» com que cria um «mundo de delícias»22. Em António Pedro o surrealismo fazia-se no interior de um esforço de construção de uma técnica; em Dacosta servia para superar a formação técnica escolar que ainda ia frequentando. Afinal António Pedro era um surrealista que pintava, enquanto Dacosta era o pintor que passava por uma importante fase surrealista.
Procuremos também definir a posição estética da pintura surrealista de Dacosta perante as grandes linhas internacionais deste movimento. No Primeiro Manifesto de 1924, Breton definia o automatismo psíquico como algo que se expressava «soit verbalement, soit par écrit, soit de toute autre manière, le fonctionement réel de la pensée. Dictée de la pensée, en l’absence de toute contrôle exercé par la raison, en dehors de toute préoccupation esthétique ou morale»23. O mesmo Breton reconheceria, anos depois, que esta via era mais ajustada à escrita e que nas artes visuais o automatismo era relativo, tendo que ter um certo grau de controlo – alteração que se deve ao fascínio exercido pela metafísica chiriquiana nos primeiros pintores marcantes do surrealismo internacional. Breton resolvia a questão diferenciando um automatismo gráfico que se colocava no gesto e no ato de conceção das formas pelo desenho ou cores, de um automatismo imaginativo ou visionário, em que a produção da imagem procurava representar de modo mais consciente e controlado visões de imaginário e fantasia.
Entre 1939 e 1940, Dacosta estava claramente nesta segunda via, que se pode considerar mais ortodoxa. Mas destaquemos algumas particularidades, diferenciando de Salvador Dali (1904-1989), o grande mestre desta via mais ortodoxa. Em Dali o choque está mais entre as figuras e o espaço, enquanto em Dacosta se prefere a interação entre as figuras que se sobrepõem ao espaço. O efeito associativo e relacional das figuras, menos posicional que em Dali, faz atuar uma teatralidade interna, o tempo de uma mise en scène própria.
Quando inaugurou em 1940 a exposição de António Dacosta com António Pedro e Pamela Boden na Casa Repe, ainda estava a decorrer a grande Exposição Comemorativa do Duplo Centenário, a famosa Exposição do Mundo Português, que dominara todo esse ano. Contudo, esta sincronia não procurava consumar qualquer oposição ao Estado Novo nem à Exposição do Mundo Português, tal como se tem insinuado em vária historiografia da arte moderna portuguesa. O próprio Dacosta afirmaria: «A exposição de 1940 não a fizemos como resposta a nada. Vivíamos de costas voltadas para o regime»24. Não era oposição, mas outra coisa, algo fora da história por estar nos limites do espaço artístico da arte moderna portuguesa e do Secretariado de Propaganda Nacional (SPN), como que não ajustado. Ao contrário do Grupo Surrealista de Lisboa, criado em Outubro de 1947, era um surrealismo ainda sem grupo. A consciência da sua tendência estética não a impedia de se integrar no SPN, mesmo que extremando internamente o diapasão estético das suas exposições de arte moderna.
Por outro lado não vamos encontrar nas relações de António Dacosta até à sua partida para Paris, qualquer dissidência com as forças do Estado Novo. Colabora em periódicos afetos ao regime (Accão, Panorama, Atlântico), nas Exposições de Arte Moderna (estando regularmente desde a 6.ª exposição em Novembro de 1941 até à 9.ª, em Janeiro de 1945) e seria prémio Amadeo de Souza-Cardoso em 1942. Os seus círculos de amizade não revelam o que na altura pudesse significar oposição. Sabemos que lhe tinha sido encomendada uma proposta para a Exposição do Mundo Português, tendo Dacosta apresentado o desenho Portugal Insular (c.1939). Embora não aceite por não se ajustar ao espírito do certame, revela que os círculos de Dacosta não eram ainda de oposição.
Saint-Exupéry, que passara por Lisboa na altura da Exposição em passagem para os Estados Unidos, deixou-nos, na sua famosa Lettre à un Otage, uma poética e certeira imagem de Portugal e da Exposição do Mundo Português, apresentado naquela que era simultaneamente a mais bela e mais triste exposição do mundo, um irreal paraíso que, a partir da sua vulnerabilidade, parecia desafiar a Europa em Guerra, uma Disneylândia comemorativa fora da história real. Pelo seu absurdo de sabor surrealista, as obras apresentadas por António Pedro e, sobretudo, António Dacosta, expressavam melhor a situação real do mundo, como seu sintoma. Se a exposição histórica do Mundo Português estava fora da História, a exposição anistórica na Casa Repe, querendo estar alheia da História cultivou um imaginário absurdo que foi o seu melhor sintoma. Foi esta força mitográfica denunciadora da história que António Dacosta soube desarraigar do surrealismo ortodoxo fazendo dele um caso de exceção.
Logo após a exposição conjunta na Casa Repe, António Pedro partira durante cerca de um ano para o Brasil, onde realizara várias exposições. Mal regressara, partira para Londres, para ser locutor de língua portuguesa em tempos de Guerra na BBC. Durante este tempo, Dacosta habitaria na casa de António Pedro.
No âmbito destes círculos, também sociais, verifica-se uma breve retoma de Dacosta ao retrato, que nos serve de mitigação do surrealismo enquanto opera uma transição para uma situação pictórica mais metafísica. Desses retratos, destacam-se os óleos onde figuram Tomaz de Figueiredo e Ariane Pulver (este último exposto na 6.ª Exposição de Arte Moderna do SPN, naquela que era a sua primeira presença nestes certames) ou o desenho de retrato de António Ferro25.
19 José-Luis Porfírio, na exposição Scène Ouverte interessou-se pelas autorrepresentações de Dacosta, com destaque para a desta obra. Cf. António Dacosta. Scène Ouverte. Paris: Centre Culturel Calouste Gulbenkian, 2007.
20 António Dacosta, depoimento (17 maio 1979). In António Pedro. 1909-1966. Caminha: Câmara Municipal de Caminha; Porto: Centro de Arte Contemporânea; Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1979, p. 46.
21 Rui Mário Gonçalves, «Interrogação do destino na obra de António Dacosta», Colóquio Artes, n.º 49, junho 1981, pp. 13.
22 Dacosta, depoimento (17 maio 1979). In António Pedro. 1909-1966, op. cit.
23 André Breton, «Manifeste du surréalisme». In Œuvres Complètes. Paris: Éditions Gallimard, 1987, p. 138.
24 Pinharanda, «António Dacosta. Saudades deste sítio», pp. 23-24, 26-27.
25 Tendo chegado apenas um estudo até nós, o desenho final só se conhece por uma reprodução. In «António Ferro numa interpretação de António Dacosta», Diário da Manhã, 18 novembro 1959, p. 3.
3. O Espaço Metafísico – a «melancólica interrogação do real»
«Ora a arte parece pretender negar a realidade, ora afirmá-la violentamente» (António Dacosta, 1946)26
Após a marcante exposição na Casa Repe, verifica-se um esforço de Dacosta por encontrar uma situação menos densa e dramática, com os intentos de lançar um peso menor sobre a responsabilidade figurativa. O próprio pintor assumiria um «esgotamento» e afirmaria: «O surrealismo caia e nada o substituía para além de um lirismo que não me interessava»27. Entre 1941 e 1942 verificou-se uma marcação metafísica que oscila a matriz surrealista, tendo a pintura Melancolia (1942) como centro, e que se deslocaria logo de seguida para outro lirismo que fechava este ciclo de modo especial com uma obra única: A Festa (1942).
A pintura Serenata Açoreana (1940), uma das obras mais significativas expostas em 1940, e provavelmente a última das expostas a ser pintada, surge-nos como a primeira obra, ainda de domínio surrealista, a manifestar sinais de oscilação para a situação metafísica. Duas figuras nuas em primeiro plano, embora na continuidade de pinturas anteriores (Antítese da Calma) não impedem, como na produção surrealista anterior, uma abertura à extensão do espaço de fundo, onde avança um barco com uma figura feminina e onde se estende outra margem com um casario. Entre a gruta e a muralha de uma fortificação que delimita a cena de primeiro plano, e um casario tradicional ao fundo que limita o aprofundamento da paisagem, definem-se dois limites de espaço, o do plano enquadrado e o da perspetiva espacial. A figura deitada e agrilhoada é de um rosa encarniçado, com uma pena no peito e uma maçã na mão. Sendo normalmente vista como Eva (ou um «Prometeu Agrilhoado» em aproveitamento da sua hibridez de género28), esta figura relaciona-se com a que está em pé à direita oferecendo-lhe um pássaro morto. Entre as pernas desta, um felino espreita com expressão antropomórfica. Por detrás, espreitando a cena, aproxima-se uma figura num barco. Uma das marcas desta fase da pintura é a entrada de elementos açorianos. Ao fundo, o casario é um dos primeiros casos, depois das paisagens iniciais de Angra, que nos permite efetuar tais reportações – daí ser possível associar essa convocação dos Açores a um desejo de aliviar o peso anterior dos signos através de elementos vindos da memória da infância. O fragmento do forte militar, com a sua marca de solidez e de resistência física e temporal, poderá remeter tanto para o forte oriental de Angra (Forte de São Sebastião ou Castelinho) ou para o de Ínsua de Santo Isidro em Moledo do Minho na zona de Caminha (Forte da Ínsua), considerando que Dacosta terá pintado a obra numa casa de António Pedro naquela região, no verão de 1940.
Após ter sido exposta em 1940, a pintura foi retocada pelo pintor, como se não estivesse resolvida ou fechada. Rui Mário Gonçalves diagnosticou essas mudanças29, de que sublinhamos o envelhecimento do casario ao fundo, a abertura das nuvens que a envolvem, ou a atenuação da expressão de esgar da figura deitada em primeiro plano, trocada por uma de dormência, onde o que se destaca é a espessura matéria que se acentua após essa camada.
Além da referida abertura da espacialidade ao fundo, esta acentuação matéria (que terá sido ampliada com a segunda camada) é outra marca da pintura que sinaliza a transição de 1941. Assim, no interior do aparato de uma figuração surrealista mais ortodoxa, próxima de Salvador Dalí ou Óscar Domínguez, brotaria uma gestualidade algo expressionista, na mancha áspera de efeito textural, ao mesmo tempo que a pintura se dispunha a uma dimensão metafísica na espacialidade aberta. O percurso de Dacosta parecia inverter aquele que fora o da história da pintura surrealista internacional. Se os primeiros grandes projetos pictóricos do surrealismo se fizeram na segunda metade dos anos de 1920, por inspiração da fase metafísica de De Chirico30 da década anterior, Dacosta passava de uma situação surrealista para uma marcação metafísica. Se a pintura metafísica inspirara a pintura surrealista, em Dacosta a metafísica emergia desdobrada e para descompressão do seu surrealismo.
O espaço representado abria-se cada vez mais, afundando-se para distanciar e integrar a figuração, abandonando-a nesse espaço mais aberto. Se antes dominava a horizontalidade e a cena era ocupada por figuras em friso que faziam de cortina ao espaço, agora havia um maior interesse por campos visuais verticais, apertando lateralmente o espaço para o afundar numa perspetiva em que se comede o tempo lento desse mergulho no espaço. Contudo, a figuração, cada vez menos híbrida, age sobretudo no vazio, com menos choque entre si e sem direta interpelação. Mas com isso, os gestos e as poses das figuras são menos tensas e sufocantes, saindo da proximidade do primeiro plano para se espraiarem no espaço, passando assim de uma ambiguidade tensa para uma desolação mais inativa e apática. Rui Mário Gonçalves referiu a solidão de cada ser, sem «reciprocidade de atitudes», que se alienam entre si, criando uma «solenidade cercada de ameaças»31. As primeiras participações nas exposições de arte moderna do SPN coincidem com essa tal redução da concentração e aperto das figuras em primeiro plano, ao mesmo tempo que o espaço de fundo se abre em profundidade, a cor se aclara e a matéria se acentua, estas atuando numa menor necessidade de solidificação modelada das figuras. A apatia e indiferença das figuras substituem a anterior tensão e pathos. Usando expressões da crítica, Dacosta passava de uma «melancolia desesperada»32 para uma «melancólica interrogação do surreal» e que «parece consolar»33. Sobre esta transição, Rui Mário Gonçalves diria ainda que a «figuração surrealista depura-se numa cada vez mais melancólica interrogação do real»34.
É unânime considerar Melancolia (1942) a obra mais significativa desta marcação metafísica. Neste quadro de profundidade intimista a espacialidade afunda-se contrapondo-se ao seu pequeno tamanho. Também aqui, a proximidade que a pintura requere ao olhar antagoniza com a lonjura do seu espaço interno. A perspetiva bipolariza-se em duas fugas divididas pelo corte de um muro, onde estranhamente se instala uma tomada elétrica cuja forma circular nos suspende o olhar, numa fixação acentuada pelos orifícios que nos fixam como olhos – Rui Mário Gonçalves chamou-lhe «zona hipnótica»35. Além da diferente caraterização de cada espaço, sendo o da esquerda mais irreal e o da direita mais natural, os horizontes ao fundo não coincidem, como se fossem dois topos diferentes ou dois observadores diferentes. No lado esquerdo, um gato em primeiro plano faz abrupto contraste de profundidade com uma figura feminina ao fundo. A fragmentação e aperto vertical dos espaços não remetem para a sua exterioridade, antes sublinham esse constrangimento e as desconexões internas. O efeito é que a aderência inicial de um primeiro olhar se transforma em algo cada vez mais estranho na continuidade dessa mesma perceção, como uma estranheza que se infiltra. Quanto mais se olha a imagem, mais esquiva ela se manifesta.
Em Episódio com um Cão ou Um Cão e outras coisas (1941, apresentada com A Festa na 7.ª Exposição de Arte Moderna do SPN em dezembro de 1942), o cão surge imponente ao centro numa estranha anatomia constituída por três esferas que envolvem a cabeça num fechamento do corpo, com uma polidez de porcelana. O espaço abre-se para cá e para lá deste centro, numa profundidade de estrutura tripla. Em movimento contrário, a acentuada verticalidade do quadro estrangula essa extensão, empolgando a profundidade ao mesmo tempo que acentua o seu aperto. É na extensão e na paradoxal abertura apertada que surgem as estranhezas da combinação dos elementos. Em contraposição à sonolência do cão, que o escorrer da água faz perdurar como constância de um escoar do tempo, estranha-se a presença de uma vela com um (ou dois?) híbrido pássaro-peixe no lugar da chama. No segmento de espaço para lá, em profundidade e que constitui a parte superior do quadro, um duelo de espadachins com máscara estão suspensos no momento dramático da estocada. As associações bizarras, agora mais presenças do que ações, continuam, para agirem agora num espaço mais estendido em profundidade e menos amplo na longitude do horizonte.
26 António Dacosta, «O tempo da arte», Diário Popular, 15 maio 1946. In Dacosta, Dacosta em Paris, p. 93.
27 Pinharanda, «António Dacosta. Saudades deste sítio», p. 26.
28 Maria João Fernandes, «Dacosta Revisitado», Jornal de Letras, Artes e Ideias, 12 abril 1988, p. 24.
29 Cf. Gonçalves, António Dacosta, pp. 34-35.
30 Dacosta chegaria a escrever sobre de Chirico nas suas crónicas, manifestando claro apreço: «O surrealismo teve aqui o seu ponto de partida e também uma das suas expressões mais inspiradas». Cf. António Dacosta, «Meio século de pintura italiana em Paris», Diário Popular, 19 junho 1950. In Dacosta, Dacosta em Paris, p. 135.
31 Cf. Gonçalves, op. cit., p. 45.
32 Fernandes, op. cit., p. 25.
33 Gonçalves, «Interrogação do destino na obra de António Dacosta», p. 10.
34 Gonçalves, António Dacosta, p. 39.
35 Gonçalves, op. cit., p. 48.
- A Festa – «do estranho ao maravilhoso»
«Porque o nosso peso era de símbolos decidiste criar outros»
(Dacosta, 1943)36
A obra que fecha esta fase metafísica e encerra todo o ciclo surrealista é A Festa (1942). A matéria assume, na claridade cromática, um lirismo aberto que evita ou transfigura a tragédia: «Passou-se do estranho ao maravilhoso»37. Observa-se uma criança sobre um vitelo branco e florido e outra criança de um branco de marfim sentada no chão. Até à data, era a obra de Dacosta que mais efetuava convocações dos rituais tradicionais dos Açores, aqui desdobrada em força poética, de modo que «uma inspiração local transforma-se num ritual poético, já sem realidade possível»38. É a festa antes do sacrifício, ou a «procissão festiva que precede o sacrifício»39. Os azuis, os rosas e os brancos criam uma superfície suave de cor. A claridade destes elementos em primeiro plano contrasta com a negatividade de um céu mais escuro e sombrio que, não parecendo agir sobre a cena e dela se espantar, é o único índice do auguro trágico do sacrifício.
No percurso de Dacosta, A Festa superava e quase redimia, isolando-se das fases anteriores, como uma emancipação a justificar a sua necessidade. Se só se pode entender com esse recente passado criativo, também é perante ele que se define mais como nova possibilidade do que como corolário – daí o peculiar lugar histórico deste quadro, onde tudo parece ter aí ficado, como um ato sem continuidade, uma dobra, portanto, quadro de viragem para uma outra situação que não se afirmou. Mas isso daria outra força posterior ao quadro: quando Dacosta retorna com fôlego à pintura com a exposição individual em 1983, era A Festa que aparecia como a grande referência desse passado para melhor estabelecer conexões com esse novo tempo de produção.
Apresentada na 7.ª Exposição de Arte Moderna do SPN, ao lado de Episódio com um Cão, A Festa seria o Prémio Amadeo de Souza-Cardoso desse certame (enquanto Almada Negreiros recebia o Prémio Columbano). Uma crítica da Seara Nova, que acusava A Festa de «galanteria bem fútil», manifestava também uma fascinada estranheza vendo um pintor «que desperta curiosidade», interrogando «mas qual será o seu futuro caminho?»40. Era das páginas amigas do Diário Popular que chegavam as palavras mais elogiosas, através de Carlos Queiroz: «E finalmente (…), digamos em voz alta que a grande revelação do certame, pelo extraordinário progresso do seu mais recente trabalho, é o pintor António Dacosta. Se o leitor parar alguns minutos defronte do óleo intitulado A Festa e ele não lhe disser que o artista que o fez tem obrigação de ir muito longe; que a comparação com o outro seu óleo, colocado à esquerda, lembra um salto mortal daqueles que arrancam olhos ao público dos circos; que do consórcio do lirismo com pintura raras vezes deriva um produto tão fresco, tão harmónico, tão saudável e tão saboroso…»41.
Se o ritual poético a que o quadro alude faz lembrar os tempos de reciclo relativos a qualquer ritual, tempo de festa de regeneração para um novo ciclo, ele adquire particular fortalecimento porque concorda com a viragem para uma nova fase pictórica em que se atenuava o vínculo ao surrealismo. O próprio afirmaria: «o surrealismo já ia longe. A certa altura a problemática da pintura passa a interessar-me. Designando-se a si mesma, o conteúdo formal do que ela propõe designa também algo mais. Mas que não está fora dela»42.
A partir do seu lugar único, A Festa revela-se um quadro especial de encruzilhada: porque ainda transportando resíduos da fase surrealista e metafísica (1939-1942); porque é já um claro momento de reconstituição (e regeneração) para a fase seguinte (1943-1949); e porque será a grande referência para o primeiro grande ciclo no regresso dos anos de 1980. A questão adquire outra relevância se pensarmos que esta pintura vai combinar com um importante momento de consagração de Dacosta, com o Prémio Amadeo de Souza-Cardoso (e no lote geral das obras premiadas pelo SPN, A Festa não deixa de ter também um sabor lírico muito distinto), com o seu nome a aparecer em referências históricas da arte moderna portuguesa43 e inclusive estudos monográficos, como lhe é dedicado pelo escritor terceirense Vitorino Nemésio44.
36 António Dacosta, «O trabalho das nossas mãos», Variante, n.º 2, inverno 1943, p. 52.
37 Gonçalves, António Dacosta, p. 14.
38 França, A Arte em Portugal no século XX (1911-1961), p. 348.
39 Júlio Pomar, «Cultura. Memória. António Dacosta. Em louvor de», Expresso (Revista), 8 dezembro 1990, pp. 96R.
40 Adriano de Gusmão, «No S.P.N. 7ª exposição de arte moderna», Seara Nova, n.º 856, 23 janeiro 1943, p.158. Gustavo de Fraga, «A exposição de arte moderna», Diário da Manhã, 21 janeiro 1945, p. 3: «António Dacosta é um sobrerrealista que pelos vistos não está muito convincente da sua arte».
41 Carlos Queiroz, «Apontamentos de crítica da 7.ª exposição de arte moderna», Diário Popular, 30 dezembro 1942, pp. 1-2.
42 António Dacosta, entrevista. In Álamo Oliveira, «António Dacosta. Nada nasce de nada. Pintar não é mais importante que ler ou jogar às cartas», A União, 28 novembro 1987, p. 2.
43 Carlos Queiroz, «Da arte moderna em Portugal», Variante, n.º 1, primavera 1943, pp. 21-23. Pouco antes o mesmo autor referenciava Dacosta numa resenha histórica da ilustração portuguesa. Cf. Carlos Queiroz, «Ilustradores modernos portugueses. A propósito de uma exposição», Atlântico – Revista Luso-Brasileira, Rio de Janeiro: Departamento de Imprensa e Propaganda; Lisboa: Secretariado da Propaganda Nacional, n.º 2, 1942, pp. 336-343.
44 Nemésio, «António Dacosta. Pintor europeu das ilhas», pp. 48-51. Nemésio parodiava Dacosta com a expressão de que ele próprio fora alvo, ao ser apresentado por Dutra Faria como «um poeta português das ilhas» (Dutra Faria, Roda do Tempo – Crónicas. Lisboa: Edições Revelação, 1936, p. 65.).
- Depois d’A Festa – a crise mitográfica
Com a partida de António Pedro para Londres (inícios de 1943), Dacosta aprofundava a amizade com Almada Negreiros e o brasileiro Cícero Dias (que tinha conhecido através de António Pedro45). O peculiar expressionismo lírico deste pintor brasileiro, numa síntese entre o classicismo e o neocubismo picassiano com marcações naïf da arte popular brasileira, teria alguns reflexos a reter em artistas portugueses – com Dacosta e Almada na primeira linha46. Em Dacosta, significou que o já manifestado fascínio pela Guernica de Picasso passasse de um interesse dramático para uma pesquisa formal.
As obras a óleo mais explícitas desta pesquisa de Dacosta são Pintura (Soldado e Mulher) (1943), Pintura (Duas figuras) ou Rapariga com Pássaro e o seu verso, também um óleo com duas figuras femininas (c.1944). O desinteresse pelos títulos nesta fase supõe também essa atenção mais formalista.
A crítica reconhecia claras marcações de Cícero Dias nas obras apresentadas por Dacosta na 9.ª Exposição de Arte Moderna47. Contudo, a pintura de Cícero Dias era mais colorida e planificada, num assomar do plano através da lisura de fortes cores brilhante de teor naïf, com carregadas marcações lineares de contorno e estruturação simplificadora das formas, enquanto em Dacosta resistiam ainda rastos das marcas da mancha e do gesto que enredavam as formas. Esta fase de exploração formal de Dacosta apresenta outra e particular importância na arte portuguesa, que se implica com as pesquisas de Almada Negreiros e a amizade e cumplicidade entre ambos. Na época estão ambos atentos a uma marcação picassiana de teor neocubista que se consagraria numa das obras mais importantes da arte portuguesa da década: os Painéis da Gare Marítima da Rocha Conde de Óbidos (Lisboa, 1945-48), de Almada. Dacosta estava ainda em Lisboa quando esta obra se iniciou, mas já estava em Paris quando esta terminava, distante da polémica que chegaria a ameaçar o seu apagamento. Normalmente avaliada a partir das pesquisas de Almada Negreiros, convém entender as mudanças entre este painel e o anterior, igualmente da Rocha Conde de Óbidos, também em função dessa afinidade estética em que se cruzam Cícero Dias e António Dacosta.
Os desenhos de Dacosta destes anos (1943-1946) apresentam outras mediações que na pintura parecem efetuar mais ruturas, sobretudo quando procuramos a ligação entre A Festa e as sequentes obras neocubistas. A marcação de Matisse e dupla de Picasso, classicista e neocubista, trabalham suma síntese figurativa. Esta síntese serviu para superar o desenho mais surrealista e mais manchado.
Esta visível rarefação da produção artística de António Dacosta, acompanhava também algum incómodo perante o estranho enquadramento político do Estado Novo no pós-Guerra. Dacosta deixou algumas palavras desse «tempo bipolarizador, inquisitorial»48 e do estranho estado do País a seguir à guerra e que, em parte, o arrastavam para Paris: «Havia nessa altura um limite, ou melhor, algumas “contraentes”. Havia expulsões, certos comportamentos que me desagradaram completamente. Cheguei a Paris na altura das debandadas (…) – o ambiente era de um gosto pela inquisição fútil»49. Com uma bolsa que recebia do Governo francês, instalava-se em Paris no início de 1947.
A chegada a Paris reduzia as condições logísticas para a prática da pintura, vivendo em casa de amigos ou em quartos de hotéis. A última apresentação pública de obras originais foi para a Primeira Exposição do Grupo Surrealista de Lisboa, efetuada no antigo ateliê de António Pedro que durante quase toda a década de 1940 fora a morada de António Dacosta. Dacosta enviava para a exposição, de Paris, duas pinturas abstratas pintadas ainda em 1948: Cuidado com os Filhos (que seria adquirida por Almada Negreiros) e Espaço Ocupado (adquirida pelo poeta e jornalista Neves Pedro). Quando o surrealismo português, que ele antecipara na pintura em 1940, se afirmava como grupo, Dacosta oferecia-lhe uma nova situação estética.
É em 1948 que encontramos os textos de Dacosta mais interessados pela questão da abstração. Ao mesmo tempo interessado e renitente, a sua posição vacilava na teoria e na produção, não definindo um claro posicionamento. Para nós, e aferido de algumas observações de Dacosta a acompanhar, tal renitência estava no domínio da abstração como um telos, como um destino das artes plásticas ocidentais, sobretudo da pintura. Dacosta apontaria um «período difícil de hesitação» e adianta: «Ora, a maioria dos casos abstratos é Cézanne sem maçãs. (…). Quase toda esta pintura desliza à superfície, a determinante profunda, vivificante, aparece num ou noutro caso, o resto fechou-se na abstração como quem professe nos trapistas». O pintor reconhecia que a abstracão «foi por evolução lógica que a pintura chegou ao não-figurativo», mas também acrescentava que foi apenas «certa» pintura que aí chegou, e que ela se adequa a um tempo que se reconhece na «pura gratuitidade»50.
Destacamos duas questões nestas posições do pintor: uma é que a abstracão estava a produzir uma vasta quantidade de obras mas que só algumas apresentavam devida qualidade; segundo, e mais importante, a crise era maior que a sua e a da arte – era cultural e ocidental. Perante este enquadramento, a abstracão não foi, pessoalmente, uma recusa, nem crise real, mas hesitação que abriu uma necessária meditação.
45 António Pedro tinha passado cerca de um ano no Brasil, onde expusera, e proferira conferência na exposição de Cícero Dias. Cf. «Notas de arte. Exposição de Cícero Dias. Noticiário», Ocidente, n.º 57, vol. XIX, janeiro 1943, p. 86. Publicaria ainda texto sobre artistas modernos brasileiros (no caso Tarsila e os pintores paulistas Lasar Segall e Cícero Dias, a quem chamaria «Jorge Amado da pintura brasileira»). António Pedro, «Alguns pintores brasileiros modernos (excertos de uma conferência)», Atlântico – Revista Luso-Brasileira. Rio de Janeiro: Departamento de Imprensa e Propaganda; Lisboa: Secretariado da Propaganda Nacional, n.º 3, 1943, pp.176-179.
46 Em estreita proximidade de cumplicidades, Cícero Dias ilustraria, nos seus anos de Lisboa, além de Camões, os mesmos poetas que Dacosta: Adolfo Casais Monteiro, Merícia de Lemos e o brasileiro Ribeiro Couto. Dacosta e Cícero Dias iriam encontrar-se em Paris e, em 1950, iriam em grupo, numa viagem por Itália.
47 Cf. Gusmão, «Artes plásticas. 9.ª exposição de arte moderna», Seara Nova, n.º 912, 3 fevereiro 1945, pp. 83-85.
48 Pinharanda, «António Dacosta. Saudades deste sítio», p. 24.
49 António Dacosta, entrevista. In Avillez, «António Dacosta. O regresso à pintura 25 anos depois», p. 31R.
50 António Dacosta, «A abstracção em pintura», Diário Popular, 14 junho 1948. In Dacosta, Dacosta em Paris, pp. 123-124.
- A suspensão voluntária – o tempo dos «pincéis secos»
«Bem, isso de deixar a pintura é exagerado. Não se deixa de fazer as coisas que se traz em si. (…) não se interrompe o que se é, não se deixa de ser quem é, não se recomeça, é-se?»
(António Dacosta, 1983)51
«Mas, talvez se viva no vazio, num tempo e num espaço que nos não dizem respeito… é possível»
(António Dacosta, 1948)52
A chegada a Paris não foi fácil. A capital francesa sofria ainda a situação de pós-Guerra. As dificuldades materiais de Dacosta acompanhavam-se de alguma desilusão, frio e fome. Não se sabe muito dos seus primeiros anos na capital francesa, em que falava de Paris e dos seus eventos artísticos e culturais nas crónicas para o Diário Popular, mas não de si. Sabe-se que Dacosta fez alguma aproximação ao surrealismo francês, tendo assistido a algumas sessões no Café de la Place Blanche, organizadas pelo grupo de Breton, com Benjamin Péret a impor grosseiramente silêncio com um martelo53. Assinava com outros o manifesto surrealista Rupture inaugurale (21 de junho de 1947) que determinava o afastamento de qualquer filiação partidária por parte do movimento surrealista. Cândido Costa Pinto também assinava, revelando-se um núcleo surrealista português, indicado nos dizeres da contracapa da edição do manifesto (julho de 1947). Em novembro de 1948, assiste com José-Augusto França à sessão de expulsão do pintor chileno Roberto Matta do Grupo Surrealista francês, a quem Breton acusava de ter tido um caso com a mulher do pintor arménio-americano Arshile Gorky, atribuindo ao facto as culpas do trágico suicídio deste – a que se seguiram outras expulsões por oposição a essa exclusão, como a do teórico Sarane Alexandrian (1927-2009). Juntando a isto uma particular desagradável receção aos portugueses, após intervenção de José-Augusto França, esta sessão provocou o desânimo e afastamento de ambos relativamente ao grupo de Breton54. A ela sucederá, noutro acompanhamento dos tempos, uma aproximação de Dacosta à abstração, embora acompanhada do afastamento da prática regular da pintura.
Nos primeiros tempos de Paris houve alguma produção artística. Dacosta concebe um biombo para o Hôtel du Quai Voltaire. Pinta ainda alguns óleos abstratos nos primeiros anos de Paris e faz as referidas pinturas que envia para a exposição do Grupo Surrealista de Lisboa em 194955. Pintou ainda alguns retratos, em que o pedido dos amigos, como os de José-Augusto França (1957) ou Luís de Macedo (c.1957), com esforços de atualidade estética em exploração de fundo informalista.
Durante essa fase do silêncio faria praticamente apenas retratos, numa dimensão intimista expressa na representação de um círculo restrito de familiares e amigos, tal como nos materiais e suportes (em geral sobre papel). A obra V.N. – Retrato de Vitorino Nemésio (1966), seria a mais destacada pintura efetuada nesse tempo de suspensão56. A pintura resultava de um encontro entre poeta e pintor em Angra, durante umas férias de Dacosta, numa altura de homenagem aos 50 Anos de Vida Literária de Vitorino Nemésio. Isso faria com que o retrato fosse terminado na Sala dos Reservados da Biblioteca Pública e Arquivo de Angra do Heroísmo, em sessão algo pública. No final do retrato, Dacosta inscrevia com os dedos «V.N.», alusão a Vitorino Nemésio, mas também a Vinho Novo, por expressão que de imediato surgia por parte do seu amigo João Afonso (que queria explorar o sentido de «obra nova»). O impacto fazia ver este momento quase como um regresso à pintura, afinal ilusório.
Dacosta referiu a sua suspensão como uma «conjugação de diversos factores»: «económicos, psicológicos, o próprio momento histórico da pintura nessa época… tudo isso junto criou uma inibição interior e uma impossibilidade exterior. Foi uma fase de eclipse»57. Não foi um «deserto» ou um «silêncio», mas apenas um retiro da poiesis, da produção, enquanto se acompanhava e se pensava a pintura. Fernando Azevedo falou da «pintura que não lhe aconteceu», que «foi na sua vida uma espécie de paradouro conventual, uma reserva exigente para a meditação, o seu hiato não passou afinal de um trânsito não expresso»58.
As razões dessa suspensão poderão ser várias. Por um lado por razões logísticas, por falta de ateliê e condições de trabalho em Paris, dificuldades materiais e morada instável. Por outro, por razões estéticas, primeiro meditando sobre a abstracão dominante, que não era diretamente questão da sua pintura, embora lhe interessasse teoricamente, e depois perante as crises da pintura dos anos de 1960 e 70, no desenvolvimento das estéticas comportamentalista, conceptualistas, etc. Outra grande razão foi a prática de crítico de arte, que se foi impondo com regularidade desde 1942 até 1980, num acompanhamento da redução da produção artística. Mas a sua atividade crítica, além da sua importância – pelo modo lapidar de algumas afirmações, tornando-o uma das vozes de maior consciência da crítica de arte portuguesa do tempo –, constituiu a nível pessoal uma determinante construção de uma lucidez. O próprio Dacosta, referindo com modéstia as suas «croniquetas sobre arte» como «simples notas de arte», acrescenta como estas foram importantes na sua sobrevivência como pintor: «Mas nunca deixei a pintura realmente. Falava dela, via, escrevia sobre ela»59. Ou seja, era «pintor mesmo quando não pintava»60, visto que o pintor não desaparecia ao deixar de pintar. Mas ela também acarretava uma «exigência para consigo»61 que tornava o gesto hesitante. A espantosa coincidência entre o início das crónicas críticas e a redução da produção nos anos de 1940, tal como o seu inverso nos anos de 1980, fornece algum crédito a esta hipótese.
51 António Dacosta, entrevista. In Avillez, «António Dacosta. O regresso à pintura 25 anos depois», p. 31R.
52 Dacosta, «A abstracção em pintura», p. 124.
53 Cf. Emanuel Félix, «António Dacosta. Esboço de um roteiro sentimental», Atlântida, 1.º semestre 1988, pp. 11-35, p.19.
54 José-Augusto França refere a história em alguns textos. Em exemplo, cf. José-Augusto França, Memórias para o ano 2000, Lisboa: Livros Horizonte, 2000, p. 87. O próprio Dacosta diria em entrevista: «Os raros contactos que tive com o surrealismo oficial não foram muito simpáticos». António Dacosta, entrevista. In Almeida, «António Dacosta. A minha pintura é uma impureza que tende para a luz», p. IV.
55 José-Augusto França, que transportará para Lisboa as duas pinturas de Dacosta presentes na exposição, refere que «ao princípio» dos anos de Paris ainda fazia alguma pintura, e com isso o próprio crítico o «massacrava», «empurrando-o para a realização que lhe não apetecia» e, neste âmbito, referia «uma meia dúzia de quadros que ficaram num Hotel do Quai Voltaire». Cf. José-Augusto França, «Na morte de António Dacosta», Colóquio Artes, n.º 88, março 1991, p. 63.
56 «De vez em quando pintava. Pintei por exemplo o retrato do Vitorino Nemésio quando nos encontrámos os dois, de férias, nos Açores, há já alguns anos. Sim, eu de vez em quando pegava no pincel, assim, a título nenhum. A renúncia não implica a incapacidade de fazer». Dacosta, entrevista. In Avillez, op. cit., p. 31R.
57 Dacosta, entrevista. In Avillez, op. cit., pp. 31R-33R.
58 Fernando Azevedo. In António Dacosta. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian – Centro de Arte Moderna; Porto: Fundação de Serralves. Casa de Serralves, 1988, s.p.
59 Dacosta, entrevista. In Avillez, op. cit., pp. 31-33R.
60 Porfírio, «Exposições. Íntimos e clandestinos….», p. 46.
61 Gonçalves, António Dacosta, p. 16.
Tudo isto não deve colocar de lado o que se implicou nos próprios destinos da obra ao longo da década de 1940. Após as importantes pesquisas surrealistas e metafísicas, Dacosta enredou-se num formalismo que parecia não o estimular tanto e que o foi afastando gradualmente da criação.
Entretanto, a sua obra de 1939 a meados da década de 1940, à distância, ia-se impondo na história da arte moderna portuguesa. O núcleo de obras de António Dacosta na exposição de 1940, com António Pedro e Pamela Boden, era a origem dessa importância histórica, revelando-se irrevogável na história da pintura surrealista portuguesa. Esta valorização histórica, que se firmava enquanto o pintor ia abdicando da produção, teria também importante certificação nas várias exposições retrospetivas da arte portuguesa que se foram realizando.
Duas exposições antológicas individuais, em 1952 (Galeria de Março) e em 1969 (Galeria Buchholz), contribuíam para criar a consciência do abandono. Se na primeira ainda era cedo para aferir a suspensão, na segunda alguma crítica já referia o silêncio de mais de 20 anos, chamando-o amigavelmente de «calão» e apontando que «pintou uns avaros anos e deixou depois secar os pincéis» para lançar a questão para o futuro: «Não tornará a pintar?»62.
São várias as razões ou vontades que permitiram esse retorno, numa encruzilhada sincrética de razões afetivas, logísticas e de disponibilidade espacial e temporal. Sublinha-se o incentivo de amigos, tal como o pintor Júlio Pomar, ou o galerista Manuel de Brito; o apoio de uma estabilidade familiar, com o casamento com Miriam Rewald Dacosta, e o nascimento dos filhos; o abandono da vida de hotéis em Paris para se instalar em casas no campo, onde em finais dos anos de 1970 começou a criar zonas de trabalho; a reforma das crónicas críticas para O Estado de São Paulo, que se suspendiam em finais de 1980; algum apoio financeiro da Fundação Gulbenkian, que lhe concedia uma bolsa de trabalho, e do galerista Manuel de Brito, que lhe adiantava um financiamento para uma exposição que seria apenas quando o pintor assim considerasse; ou ainda a crescente valorização da sua obra na história da arte portuguesa, sobretudo da sua produção surrealista e metafísica de 1939-1942. Dacosta apontaria, como razões, «uma dádiva para os seus filhos e os seus amigos» e que o «Pomar e outros amigos insistiram»63.
Em termos históricos, o retorno à pintura de Dacosta coincidia com precisão com o regresso à pintura da arte ocidental dos anos de 1980 – com várias expressões de resgate específico, como a bad painting americana, o neoexpressionismo alemão, a Transvanguardia italiana, a Escola Realista de Londres, a Figuration Libre francesa ou a Nueva Imagen espanhola.
O acerto consigo e com a história implicado neste regresso, justifica o reconhecimento de alguma crítica de uma espantosa ausência de descontinuidade: um regresso «como quem acaba de acordar, com a vitalidade e o vigor que o sonho forjou»64; era como se «quando a pintura portuguesa chegou à década de 80, António Dacosta já lá estivesse, como se à espera»65. O próprio pintor reconhecia que o seu descompromisso com o tempo anulava esse desfasamento: «Não tendo noção nenhuma do tempo, não houve nenhuma descontinuidade no meu viver. Não existe esse abismo de paragem que convém ao marketing»66. Referindo que «estamos sempre à espera de Godot», culminava: «Um dia voltei a pintar. A pintura sucedeu-me outra vez»67. Tratava-se, no fundo, de uma retoma da prática do pintor que sempre fora, de voltar a oferecer as mãos a uma poeisis.
A longa prática de escrita (entre 1942-1980) sobre arte e cultura (no Diário Popular e n’O Estado de São Paulo) foi nesse sentido um outro modo de vocacionar as mãos. Foi também um modo de estar atualizado com um tempo que não quis que fosse seu, como quem vai assim estando a par e consciente de uma não-pertença, esperando o acerto da sua.
O regresso de António Dacosta tem que ser lido com essa durabilidade da sua saída de cena, acompanhado da implementação histórica do seu nome na cena artística portuguesa, dupla situação que fornecia alguns riscos acrescidos a esse regresso: de não estar à altura do seu valor histórico, do risco de não responder às expectativas que o seu longo silêncio criou, de não estar ajustado a um novo tempo, etc. Seria o modo desprendido como espantaria estes riscos que acentuava o prodígio do regresso de António Dacosta. Não era alguém saído de um coma de mais de 30 anos, mas alguém que reaparecia tão adequadamente para esse novo tempo que o fazia logo seu.
A retoma ficaria simbolizada por uma obra que Dacosta enviava de França, e que chegava à última da hora para uma exposição de apoio à segunda candidatura à Presidência da República do General Ramalho Eanes, que José-Augusto França promovera (novembro de 1980). A pintura em azul, de teor abstrato, seguia certas pesquisas da colagem e um determinado sentido de composição da matéria e da cor que se jogava numa relação entre os vazios e os parcos momentos de marcação ou inscrição. Celebrado pelos críticos José-Augusto França e Rui Mário Gonçalves68, este reaparecimento com uma obra original em exposição, ao fim de cerca de 31 anos, teria a definitiva prova com a exposição individual de 1983, na Galeria 111 de Manuel de Brito, a que se seguiria outra na Galeria Zen, sucursal no Porto do mesmo galerista, logo no ano seguinte.
«Eu não pinto muito. Sou talvez um preguiçoso contrariado»
(António Dacosta)69
62 Tomaz de Figueiredo, «A volta de António Dacosta», Panorama, n.º 29, março 1969, p. 151.
63 João Fernandes, in Óscar Faria, «Um renascimento da pintura», Público (suplemento «Artes»), 8 abril 2006, p. 16.
64 Bernardo Pinto de Almeida, As Sublimes Súplicas. Lisboa: Galeria 111, outubro 1988.
65 Bernardo Pinto de Almeida, «António Dacosta», Artes & Leilões, n.º 3, fevereiro-março 1990, p. 85.
66 Dacosta, entrevista. In Almeida, «António Dacosta. A minha pintura é uma impureza que tende para a luz».
67 Dacosta, entrevista. In Avillez, «António Dacosta. O regresso à pintura 25 anos depois», p. 31R.
68 O retorno nesta exposição foi destacado sobretudo pelos críticos Rui Mário Gonçalves e José-Augusto França. Cf. Rui Mário Gonçalves, «Carta de Lisboa», Colóquio Artes, n.º 48, março 1981, pp. 68-70; José-Augusto França, «Folhetim artístico. Dacosta, Vespeira», Diário de Lisboa, 13 julho 1983, p. 5, p. 6 («Suplemento Literário»).
69 Dacosta, entrevista. In Almeida, op. cit., p. IV.
- O despertar das mãos – a estratégia de bricoleur
Em meados dos anos de 1970, Dacosta teria começado algum trabalho regular, ainda sem grandes intenções artísticas, em círculos íntimos, sobretudo para os filhos mas que tinham o efeito de despertarem a mão do artista. Definitivamente, já não utilizava tanto o óleo mas, sobretudo, o acrílico, acompanhado com outros materiais e por um gosto pela colagem. A primeira animação do fazer ficou assinalada por volta de 1975, sobre tampos de queijos açorianos, uma série de quatro pinturas que registam marcações temporais de paisagens da(Amanhecer; Meio-dia Entardecer; Noite). Por essa altura, numa estadia de férias, Dacosta passou várias manhãs à beira do lago Cayuga (em Aurora, estado de Nova Iorque) a raspar pedras imitando os índios, esculpindo uma série de pequenas cabeças. Este exercício, de um gesto que se perseverava no tempo, traduz-nos bem esse despertar das mãos que queremos focar.
As primeiras obras eram de teor abstrato, pequenos exercícios que exploravam uma delicada expressão dos materiais como desejo de recuperar o prazer do fazer. Dacosta afirmava em entrevista: «Comecei por fazer umas colagens que podem aparentemente parecer abstracções. Não são. (…). Eram umas coisas sensíveis (…)», algumas destruídas e «sombrias»70. Noutra entrevista afirmou também que, antes de expor na Galeria 111, destruíra quase toda uma série de colagens que considerara «produto de uma crise de diversas ordens, uma ideia de acabar, de não haver outra saída senão acabar (…)»71.
A lentidão e a ponderação da retoma parecia ser a mesma do abandono, mais de vinte anos antes. Contudo, as últimas obras abstratas do abandono não eram as mesmas que do despertar das mãos. Nas primeiras, o gesto do pintor jogava ambiguamente entre um semi-automatismo e uma disposição geométrica que preenchia a composição, sendo a questão mais formal; nas segundas, o espírito da recolha e da colagem, num processo de disposição dos elementos que se conjugavam de modo mais largo com o vazio, centravam-se mais no fascínio do fazer. A abstração, instável em 1949, e aí mais crise do que ensejo, seria agora necessária, como um grau zero da matéria, das cores e das formas, para firmar o regresso à pintura.
O que se deseja sublinhar deste regresso, desse primeiro contacto das mãos com a matéria, dessa ligação às coisas sensíveis, de um registo aparentemente abstrato como quem quer recuperar essa relação sem presumir intenções, é o modo como ele se estenderia, para a elaboração de uma mitografia pessoal, um imaginário que parecia desdobrar-se internamente do gesto, da matéria e da cor.
A retoma da produção tem assim um duplo movimento inicial: um de bricoleur, que se articula com a retoma das mãos, e outro que de imediato se propaga deste, de desenvoltura de imaginário, que produz uma mitografia própria. O próprio Dacosta sublinhou essa importância das mãos. Para além do seu famoso texto publicado em 1943 na revista Variante com o título «O trabalho das nossas Mãos», de teor mais erótico, deixou em entrevista preciosas observações: «É a mão que faz o pintor. Existe, é claro, uma dimensão do subsolo, da congeminação, mas o universo da imagem é feito com as mãos»72. Todavia, consideramos a emergência criativa animada por uma estética de bricoleur na linha das teorias de Lévi-Strauss sobre o pensamento mítico73. Esta dimensão, das mãos às narrativas, permite um fluxo de continuidade daquilo que emerge livremente e não condicionado, ao mesmo tempo que articula ainda a experiência mais pessoal e íntima com a mais arquétipa. A matéria inicial recolhida, de base heteróclita e fragmentária, anima uma vontade de fazer que «não é, portanto, definível por um projecto»74, mas algo que articula o concreto do material sensível e a virtualidade fortuita e acidental.
Este funcionamento que usa o «sentido nas mãos» permite-nos entender esta passagem das mãos (o despertar das mãos) à imaginação por parte de Dacosta (a mitografia pessoal), processo que marca a passagem dos anos de 1970 para 80. Esta foi uma procura da pintura de fora para dentro, colocando as coisas para recuperar essa consciência da superfície, desse lugar táctil e visual em que se move o pintor. Por isso, esse comprazimento quase complacente com a figuração emerge nessa passagem do fazer das mãos ao aparecer do imaginário. Como na estética narrativa do bricoleur, a narração não narra o acontecido ou o pré-existente. Como um narrador que faz a história adquirir características particulares durante a própria oralidade, a imagem (enquanto imaginário) revela-se com o gesto do pintor. Este modo, em que o gesto precede a intenção simbólica, que já tinha marcado a fase surrealista no gosto pela metamorfose durante o gesto figurador, vai ao encontro do interesse do pintor por um contacto com «aquele caótico acaso que preside à fabricação do produto artístico»75 e que lhe permitia uma condição mais livre de gestação criativa.
Daí Dacosta não cultivar o princípio do estudo ou esboço. Os seus múltiplos e pequenos exercícios (a que poderíamos chamar exercícios projetantes ou desejantes), em blocos, em agendas, convites ou até na própria parede do ateliê, eram mais experiências miniaturadas que estudos, onde processos de um fazer se experimentavam – não a elaboração de como deve ser a obra, mas de ensaio de uma ação. Mais que meditar (e muito menos premeditar) a obra, trata-se de ensaiar o próprio exercício de execução, como um diário gráfico nessa dialética entre tentativa e ensaio do bricoleur, um mapeamento rizomático de possibilidade de trabalhos, onde emergiam hipóteses que teriam ou não desenvolvimento. Dacosta reconhecia que cada obra tinha uma particular circunstância material e gestual, geradora de mitografias, que lhe era irredutível. É com este pressuposto que tencionamos atender à génese figurativa da pintura de Dacosta dos anos de 1980 e que não está longe das suas próprias palavras: «O que me move é essa atracão por uma matéria ou por uma densidade da matéria, uma transparência, uma luz, uma textura do quadro, em torno do qual e pouco a pouco a forma se organiza, que se vai definindo e me define a mim. (…). O quadro é feito de pintura e só através dessa linguagem é que isso se pode manifestar»76.
Da estratégia de bricoleur, já por si desdobrável em mitografia, prolongam-se outros processos determinantes em Dacosta, destacando-se a variação (que define sequências com variações) e o arquétipo (que define elementos ou estruturas perseverantes), processos estes que se articulam entre si e ambos decisivos na definição de temas e séries do pintor.
Em Dacosta, a variação projeta-se do tema num esforço de animar o processo pictórico; como um mote, como um eixo de gravitações ou atracões, anima a praxis. Acreditamos que no caso de Dacosta ela justifica o desejo de uma alegria com que se deseja animar o próprio fazer artístico, «que se chegue a uma maneira mais dionisíaca de viver, mais virada para o prazer da vida, de qualquer forma»77.
Na variação, nenhuma pintura é fundada e absoluta, tal como nenhuma conclui a outra, dinamizando uma processualidade que tem a heterogeneidade em torno de um mesmo por fundamento. Em Dacosta, pode ser uma figura que se retoma (o anjo, o limão, o macaco, etc.), uma estrutura que persiste (na série das Ilhas e, sobretudo, nas Memórias) ou mesmo um elemento que surge com desafios compositivos e estruturais (na série Fontes de Sintra). Em Dacosta, a variação não é uma obsessão temática, nem uma inquirição sobre um tema, mas um estímulo da praxis, algo próximo da noção de Deleuze e Guattari acerca do modo de «inserir o produzir no produto»78.
Assim, ainda com ligação ao processo do bricoleur, é a repetição de um elemento ou mote que irá definir séries relevantes na última década de produção de Dacosta. Em Dacosta, a variação faz um jogo com o seu contrário, numa atracão pelo arquétipo – um jogo entre a repetição de um mesmo motivo prévio, ele próprio não determinado com rigor referencial, como uma memória longínqua (caso das Fonte de Sintra, Ilha, Memória ou Açoriana). Porém, a variação é o que se disponibiliza porque não há obsessão do que se convoca. A sua atracão arquétipa é uma operação mítico-poética e não uma condução instrumental. Mas o que está em causa, exatamente, é que no interior do retorno que a série pede, o que se explora é essa liberdade no ato de produção, na relação das mãos com os materiais e no fazer aparecer o mesmo de um modo próprio, que funda a diferença.
Este modo de repetição e circularidade, que encontraremos noutros regimes de funcionamento, na articulação das fases da pintura e das relações entre sagrado e profano ou entre festa e sacrifício, tem proximidades com a estrutura da lengalenga. Dacosta tinha algum fascínio por este processo e o quadro Bicho Bichial (1982), além de remeter para o seu fascínio pelo bestiário animal, inspira-se numa canção infantil tradicional dos Açores e Canárias79. Consideramos esta pintura exemplar na passagem entre o espírito do bricoleur e emergência mitográfica. A palavra «Ollux», que será inscrição existente no Cais de Angra, tem forte presença no cimo à direita da composição. Estas reminiscências, que parecem convocar-se da infância do pintor, ligam-se a essa força da lengalenga enquanto inculcação oral de uma memória, de algo que se liga ao sujeito e que o acompanha. O próprio quadro apresenta peculiar construção compositiva entre o orgânico e o petrificado, entre o devir e o perene, como se fosse uma existência acidental em desejo de arquétipo. Daí a matéria ou a mancha de cor não se exasperarem nos símbolos, porque os faz aparecer.
70 Dacosta, entrevista. In Avillez, «António Dacosta. O regresso à pintura 25 anos depois», pp. 31R-33R.
71 Dacosta, entrevista. In Lemos, «António Dacosta, pintor. Emigrante provisório há 40 anos», pp. 12-13.
72 Dacosta, entrevista. In Almeida, «António Dacosta. A minha pintura é uma impureza que tende para a luz», p. IV.
73 Claude Lévi-Strauss, O Pensamento selvagem. São Paulo. Ed. Nacional, 1970. Sabemos que Dacosta se interessou por Levi-Strauss, escrevendo a 29 de março de 1956 um artigo para o Estado de São Paulo sobre «Tristes trópicos» que iniciava com a expressão: «Este livro merecem que o leiam». Cf. António Dacosta, «Tristes trópicos». In Dacosta, Dacosta em Paris, p. 179. Também sabemos que Dacosta usou a expressão «bricolage de amador» nesta fase (em 1979), em depoimento sobre António Pedro. depoimento (17 maio 1979). In António Pedro. 1909-1966, 1979, p. 46.
74 Lévi-Strauss, op. cit., p. 33.
75 Dacosta, entrevista. In Almeida, op. cit., p. IV.
76 Ibid.
77 Dacosta, entrevista. In Lemos, op. cit., pp.22-23.
78 Gilles Deleuze; Félix Guattari, O Anti-Édipo – Capitalismo e Esquizofrenia. Lisboa: Assírio & Alvim, 2004, p. 13.
79 O pintor chegou a referir a lengalenga tradicional relativa a uma espécie de bicho-de-conta que apontava a orientação geográfica perante a pergunta das crianças: «Bichinho Bichial, para onde é o Faial?». António Dacosta. In António Dacosta – Pintor Europeu das Ilhas [filme], produção e realização de Martha Tereza, apoio da Fundação Calouste Gulbenkian, 1984.
- O despertar dos signos – «um modo algo mítico de olhar o mundo»
«Na medida em que a imaginação nos escapa é fora de nós que ela se forma»
(António Dacosta, 1948)80
Maria Helena de Freitas escreveu com acutilância sobre a distância na pintura e os afetos geográficos de Dacosta: «A pintura de António Dacosta parece nascer da distância que cria entre as coisas. E se este sentimento está presente nos seus quadros enquanto margens de autonomia e de imposição das próprias formas, ele está igualmente inscrito na sua geografia pessoal, feita de um sucessivo afastamento das coisas de que mais gosta. (…). Das ilhas para Lisboa e desta cidade para Paris, desenha-se um triângulo afectivo, cuja dimensão mítica poderá ser a memória. À distância ele exorciza as lembranças e desenvolve-as pelo seu aspecto mais surpreendente»81. Por seu lado, Ruth Rosengarten sublinhou essa memória, que não tem apenas dimensão temporal mas que «o espaço também a concerne»: «A distância que epistemologicamente se instala entre o ser (ou consciência) e os objectos é, ao mesmo tempo espacial e temporal»82.
As extensões do espaço e do tempo, da geografia e da idade, lançavam as raízes para uma memória mítica de afetos egológicos que o pintor sondaria na sua fase final e que potenciava outra distância: a própria distância do pintor com a prática da pintura. A impressionante produção nos últimos anos foi animado por esse fôlego suspenso de uma produção criativa, exponenciada no seu próprio adiamento e na pressão da idade. Essas convocações surgem «condensadas de recordações», mas «como se cada recordação fosse um eterno recomeço»83.
Quanto mais se distanciava dos Açores, mais as suas memórias tinham sentido e presença na sua pintura, por alusão mnemónica, num paradoxal enraizamento afetivo pela distância. Dacosta reconhecia o efeito e já apontara, numa das suas primeiras crónicas artísticas de Lisboa para o Diário Popular, algo semelhante na pintura de Lisboa feita à distância de Paris por Francis Smith: «Smith, em Paris, conhece melhor a paisagem portuguesa do que muitos outros que, constantemente, a têm diante dos olhos. Será que o português só descobre quando se distancia?»84.
No seu caso, a distância dos elementos açorianos admite o conforto da sua dimensão dupla de lugar vivido e separado, ou seja, de um vivido mnésico e já sem presença real, que se contempla melhor na sua convocação, sem a tensão de uma necessidade de aliviar essa separação. A distância, no espaço e no tempo, expande a contraposição entre presença e ausência, aliviando a coerção dos referentes sobre a produção. O prazer do fazer, que se sublinhou nos primeiros anos do seu retorno, encontram aqui uma possibilidade do seu funcionamento além desse prazer do bricoleur.
Em vários momentos dos anos de 1980, Dacosta sublinhou a sua «qualidade de Açoriano da Ilha Terceira». Em entrevista afirmava: «Vivi nesta ilha [Terceira] tantos anos quantos foram necessários para que o seu contorno físico e espiritual se confundissem de certo modo com a minha imagem do Mundo», como «um complexo de forças, vivências e experiências que constituem o nosso etos. (…) o nosso modo de viver o sagrado e o profano, os nossos costumes, o que neles havia (…) de antitético e complementar»85. E acrescentava: «todos nós somos feitos de memória. Acho perfeitamente natural que o lugar privilegiado da minha se inscreva na geografia íntima de tais palavras: Ilha, Açores, Arquipélago…» (…) «como cumprindo uma espécie de voto, as vivências que aparecem à superfície de alguns quadros meus têm esse sinal de origem. Coisas e figuras que não se apagam com o tempo. Mediatizadas pela memória, a sua realidade não é dada mas, como a nossa e a dos fantasmas, esforça-se por não cair no esquecimento. Isto, o que dessa realidade é às vezes surpreendente, propõe uma chave que me ajuda, a mim e suponho aos outros também, a compreender melhor o que está na minha pintura»86. É a distância e a memória, perante esse «tempo primordial» e essa «solidão» dos Açores, que cria uma espécie de descompressão sobre o fazer, permitindo esse afastamento da pintura com o que se mantém apegado, um desprendimento que sobrevoa os afetos, de distantes e pessoais convocações mnemónicas poético-míticas. O pintor também referiu a sua dimensão de menino açoriano a que pertence e que a velhice e a distância (miticamente, diríamos) acentuam: «É o menino que não morre em nós. Quando ele morre acabou tudo. E a razão é essa, a razão da alegria, da vivência que toca o menino, recordações que estão além da morte, são eternas ou que dão a sensação disso»87. A idade avançada, ao arriscar um recomeço criativo, puxava a criança que habitara em si como centro privilegiado de convocações, num jogo circular de retornos que ligava fim e princípio dando peculiar sentido à expressão do crítico José-Luís Porfírio ao referir esse «menino de olhar de sábio»88.
Dacosta também refletiu sobre os efeitos pessoais dessa distância profunda: «Sou marcado por um certo tipo de ressaca marítima, pela distância, pelo paganismo» – um paganismo que o pintor apresenta como um modo de arredar certos tipo de tabus que retiram o prazer de viver e de sentir, esse tu cá tu lá dos gregos com os deuses, o céu e a terra89. Ou ainda mais esclarecedor: «Naquilo que eu faço há uns certos sistemas decorrentes até da mitologia, uma certa “coisa” açoriana mas vista à distância, um pouco distanciada. Uma coisa com um certo aspecto mitológico no sentido em que há coisas na ilha que com o tempo e a distância se cristalizam em forma de símbolo»90. A partir dessa convocação, que supera a distância mas nunca a anula através da sua própria conservação, encontramos então outra marca que nas palavras do próprio pintor se insinua: uma dimensão ritualista em que se estabelece uma relação algo sincrética entre paganismo e religiosidade.
Mais de cinquenta anos depois das suas primeiras pinturas das paisagens de Angra, amadora iniciação a uma prática a partir da circunscrição vivencial de ilhéu, Dacosta encontrava outro resguardo expressivo à distância afetiva do espaço e do tempo, e de outro patamar histórico da arte portuguesa, que lhe permitia distintas forças de relação. Este duplo jogo histórico, que Júlio Pomar sintetizaria na expressão «o estar longe com o ter sido»91, cativava-se e protegia-se mutuamente através dos resguardos das distâncias em que funcionavam. «Há uma ilha no centro da obra de António Dacosta»92, mas sempre nessa salvaguarda poética da distância ou, como diz Fernando Azevedo: «A sua ilha vai e vem, como saudade ancorada e forma persistente, que nenhuma profundidade afunda»93.
A relação entre o sagrado e o profano seria apontada por Júlio Pomar94 e depois explorada em estudos de Ruth Rosengarten e de José-Luís Porfírio, como modo de estabelecer ligações entre as diferentes fases de produção de Dacosta, sobretudo os dois grandes ciclos, num processo entre «continuidades e descontinuidades»95. Para Ruth Rosengarten a obra de Dacosta era marcada pela passagem do tempo: «O tempo é aqui circular, regenerativo, a morte sendo apenas uma das partes de um ciclo que engloba o nascer e o renascer». Polos como «morte e orgasmo, aniquilação e fertilidade, olvido e lembrança», circulam como num tempo mítico de eterno retorno onde as conjugações temporais (passado, presente e futuro) se dissolviam num «tempo absoluto». A dialéctica do sagrado e do profano definiriam o eixo determinante dessa circularidade ritualizada. A tradição açoriana das Festas do Espírito Santo, tão marcantes no universo do pintor (em A Festa de 1942 e depois em várias obras e séries dos anos de 1980), caraterizam-se por essa mistura oscilante entre sagrado e profano que definiam uma feição mística particular. Mas há sempre esse trejeito profanador que serve de despudor da gravidade das coisas, que abranda o desespero no diálogo com questões como a distância, a memória, a morte, o sagrado, etc. Júlio Pomar falou em «temor do profano», o que «tem tanto de recusa como da inevitável dependência do jogo do sagrado»96.
Uma das marcas da pintura apresentada nas exposições de 1983 e 1984 é a caracterização das superfícies de cor, ao que Alain Tapié chamou «espaço sintético»97, Se na fase surrealista a mancha pesava sobre a conceção da figura, modelando a sua corporalidade, agora ela prefere espalhar-se em superfície, sendo a figura mais o resultado dessa extensão epidérmica da textura e menos a sensação de um limite e fechamento. As figuras exploram-se num sentido de extensão que demarca sem rutura figuras e fundos. O efeito transitivo da trepidação textural da cor não impede a demarcação da figura, ao mesmo tempo que impede a aparição abrupta desta, de modo a que essa revelação pareça oferecer-se a partir do vislumbre da cor.
80 António Dacosta, «Actualidades artísticas de Paris», Diário Popular, 19 maio 1948. In Dacosta, Dacosta em Paris, p. 122.
81 Maria Helena de Freitas, «António Dacosta. Notícias do paraíso». In António Dacosta. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian – Centro de Arte Moderna; Porto: Fundação de Serralves. Casa de Serralves, 1988, s.p.
82 Ruth Rosengarten, «Não há sim sem não. A obra de António Dacosta». In António Dacosta. Yes and no, in other words / não há sim sem não. Hamilton: The Bermuda National Gallery, 1999, p. 9.
83 Gonçalves, António Dacosta, pp. 52-53.
84 António Dacosta, «Exposições de José Calvados e Benvindo Ceia. Breves reflexões sobre paisagem e paisagistas», Diário Popular, 27 janeiro 1943. In Dacosta, Dacosta em Paris, p. 21. Esta é ainda uma crónica de Lisboa e a primeira que abre a vasta antologia publicada. Ver ainda o que diz sobre Chagall em «A pintura de Chagall», Diário Popular, 21 maio 1947. In Dacosta, op. cit., pp. 104-106.
85 António Dacosta, [Sem título; discurso no âmbito da sessão solene de homenagem a António Dacosta na 2ª Bienal de arte dos Açores e Atlântico de 1987]», Atlântida, 1º semestre 1988, pp. 11-35.
86 António Dacosta, entrevista. In Álamo Oliveira, «António Dacosta. Nada nasce de nada. Pintar não é mais importante que ler ou jogar às cartas», A União, 28 novembro 1987, p. 2.
87 Dacosta, entrevista. In Lemos, «António Dacosta, pintor. Emigrante provisório há 40 anos», p.22-23.
88 José Luis Porfírio, «Um menino de olhar sábio», Expresso (Revista), 25 junho 1983, pp. 32R-33R.
89 Dacosta, entrevista. In Avillez, «António Dacosta. O regresso à pintura 25 anos depois», p. 33R.
90 António Dacosta, entrevista. In Teolentino da Nóbrega, «António Dacosta. Do risco se faz arte», Diário de Notícias (Madeira) (suplemento «Domingo»), 10 janeiro 1988, pp. 1, 8-9.
91 Pomar, «Cultura. Memória. António Dacosta. Em louvor de», p. 97R.
92 Alexandre Melo, «António Dacosta. O coração dos oceanos». In António Dacosta. Lisboa: Livros Quetzal, Galeria 111, 1995, p. 47.
93 Azevedo, António Dacosta, s.p.
94 Pomar, op. cit., pp. 96R-97R. Anos depois seria realizada uma exposição dos dois pintores em Angra do Heroísmo em torno do sagrado. Cf. A presença do Divino na Obra de António Dacosta e Júlio Pomar. Ponta Delgada: Biblioteca Pública e Arquivo Regional de Ponta Delgada, 2006.
95 Ruth Rosengarten, op. cit., p. 2.
96 Pomar, op. cit., p. 96R.
97 Alain Tapié. In António Dacosta – Scène Ouverte, 2007.
Dacosta explorava assim a transitividade numa figura dada entre opostos (figura e fundo; figuração e abstração, entre cores em contraste puro ou de complementaridade; geométrico e informe/orgânico) numa unidade dos antagonismos, da pintura como reconciliação: «o gesto aflora a tela, fazendo sentir a expansão da mancha de cor, (…), a contiguidade da figura-fundo, a imagem global da pintura»98.
A textura pictórico-matérica resvala sobre a superfície, fazendo-a trepidar e impedindo qualquer fixação na plenitude da cor dominante, espalhando-se como uma teia de luz que tece a cor e a estende na superfície, estimulando-a e fazendo-a cintilar. A cor não se estabiliza no plano, parecendo mover-se com subtis direcões. Entre a figura de perceção global (gestáltica) e as pequenas perceções solicitadas pelas superfícies cromáticas, instiga-se uma perceção oscilante. A figura não se impõe como uma estrutura que determina hierarquias ao quadro porque micro-perceções nivelam o olhar na trepidação cromática da superfície, fazendo resvalar a perceção, acionando um vai e vem entre o mínimo que carateriza a superfície e o máximo que a estrutura, entre macro e micro-perceção, entre estabilidade e devir percetivo.
Dacosta prefere a justaposição à sobreposição, pelo que o fundo parece mais cercar a figura do que estar por detrás dela. Daí a ausência de espacialidade que nos impede de ter uma cena com figuras, para nos compensar com uma figuração que encena. A figuração não se sobrepõe ao fundo, mas recorta-se nele. O efeito é essa sustentação da figura na superfície de que o fundo também não saiu. A figura parece sempre absorvida por um campo percetivo no seio do qual desperdiça a sua centralidade. Em vez de vermos a figura a assumir-se como ente particular perante o fundo, vemo-la a afundar-se em (não na) superfície, a tornar-se superfície ao escoar na tessitura pictórica.
Nesta fase há uma aparência diletante, um «parecer descuidado» dos grandes pintores99, em que a obra acabada não tem carências, não pede nada a acrescentar, para ainda transportar a aparente inocência de estar a começar. Se na fase surrealista a história pesava sobre as figuras, vergando-as numa impossibilidade factual para as deformar como mito e alegoria, agora era o mito que emergia da figuração real numa amplitude mítica liberta da gravidade do peso da história. A figuração atravessa de modo descomprometido e sem culpas o real, de modo que este se possa tornar livremente mito. Esta é uma pintura que se liberta desse peso da história, conjugada em qualquer tempo, perto desse «tempo absoluto» referido por Ruth Rosengarten. A tendência bidimensional, expressão do sagrado para esta autora, e que é esse «espaço sintético» referido por Alain Tapiè, ou «espaço absoluto» de Rui Mário Gonçalves, revela-se a base da expressão plástica deste «tempo absoluto».
É desta unidade na afirmação dos agentes plásticos que emergem as particularidades de anseio narrativo. Se o processo de referenciação emana da obra, sem modelos prévios, num «estímulo à devoção imaginativa»100, no próprio processo em que é a imagem que convoca o real, então pode-se dizer que o mundo secular chega tarde demais com o seu paganismo. O efeito é o de uma circulação em eterno retorno entre uma conotação visionária e uma denotação pagã.
Os títulos não determinam previamente a imagem, e quase sempre são descobertos no adiantamento da conceção da mesma. A Dacosta interessava esse reenvio mútuo entre imagem e título, como no esforço duma comunicação entre a dimensão sensível e a intelectual, o que o fazia desinteressar-se pela imagem autossuficiente de algumas linhas artísticas, sobretudo de ordem abstrata: «…é pintura de contaminação: em que as palavras e as imagens se contaminam entre si», ao «contrário de Greenberg» (…). «É que nada é puro ou auto-suficiente. Tudo precisa de um título. (…), até Deus precisa de um título»101.
Dacosta relata como surgiu o título de O sonho de Fernando Pessoa debaixo de uma latada numa tarde de Verão (1983): «a pancada veio-me do rótulo de uma velha garrafa de vinho do Porto, com vides e faunosinhas. Perdi-a, mas ficou-me a pulsar cá dentro, o desejo de dar à pintura um certo calor, um certo cheiro a vinho. Uma simples latada (Dionísios) com uvas. Estas aparecerem e quase logo a seguir o figurão instalou-se, exigente e irritante, de óculos e chapéu. Identificou-o o Júlio Pomar. Assim se manifestou o Fernando Pessoa». É a imagem que descobre a personagem e que nesse encontro o encena, processando-se aquilo a que o pintor chamou o «meu modo algo mítico de olhar o mundo»102.
Particular é o título de Queria este Pato (1983). Há um deslocamento de tempo e de um desejo que se coloca entre essa diferença. O referente presente em imagem é o que se deseja remetendo-se para um adiamento. Esta aproximação e afastamento é o movimento que nos interessa porque nos fala de um «desapossamento da imagem»103 que fica aí num limbo de propriedade (a quem pertence?) entre autor e observador. A estabilidade do ícone na figura do pato é desviada num diferimento, como um índice, uma marca ou inscrição aí deixada de um pato. Daí esse sublinhado do gesto suspendido em cada pintura, decidida como obra, como um desapossamento. A figura do pato fica aí, entre o que se inscreveu no abandono do autor e o que se adia, em dupla expropriação.
Dacosta refletiu sobre esta quebra da unidade entre a intenção do autor e os sentidos do quadro: antes «havia uma unidade perfeita entre aquilo que o pintor queria dizer e o próprio quadro. Estabeleceu-se uma espécie de espaço, de no man’s land, entre essas duas coisas e só irónica e distanciadamente se pode recuperar essa atitude do homem que tem o ceptro na mão e que é o rei do próprio quadro, como coisa que se diz totalmente»104.
Em Limões em Férias (1983) surge-nos um título sem lógica determinável que abre, paradoxalmente, um grau de incredibilidade no seio da expectativa. Os limões afirmam o amarelo, como sensorialidade cromática e luminosa que anima a textura da superfície. É uma afirmação significante da cor, à maneira dos famosos limões de Matisse. Mas em Dacosta o limão excede a mera pontuação de lugar compositivo, de peso cromático da composição à procura da quantidade de superfície certa do seu amarelo, brincando com o seu poder referencial. Há uma situação que é surpreendida com o aparecimento em escala desmedida dos limões num primeiro plano. Mas é essa força descomprometida do limão, à maneira de Matisse, que faz com que este impacto não se leve a sério. Este aparecimento, embora absurdo, não apresenta violência ou terror.
Na década de 1980, Dacosta desenvolveu uma particular atracão pelo arquétipo na pintura, questão entender e relativizar. Dacosta afirmou a sua curiosidade pela «força das reminiscências nos signos mais simples»105. Numa enunciação imediata, o arquétipo apresenta-se como uma forma obsessiva cuja densidade não se parece adequar aos propósitos da obra de Dacosta. Mas no seu caso, os arquétipos não são estruturas estáveis, mas sobrevivências ou restos que troçam da derrisão dos significados. O arquétipo não é um elemento fixo que condiciona as variações, mas um resíduo imponderável que provoca a abertura e anima essa variação.
Esforcemos este entendimento através de uma das primeiras e mais marcantes séries dos anos de 1980, Fontes de Sintra, a mais intensa no retorno à pintura, dominando as exposições de 1983 e 1984. A série refere uma memória e um lugar, tendo o pintor inscrito na primeira obra da série (Fonte de Sintra I, 1980): «Saudades deste Sítio». A referência topográfica não se impõe como um lugar determinante, mas um topos que se evoca (ou, em certo sentido, se convoca) como uma memória residual. A pintura incorpora esse ato mnemónico não com o pretexto de o restituir, mas para assumir a própria distância evocativa no seio da qual a pintura discorre por si própria. O mote visual é um traço duplo que refere o jato de água, um arabesco minimal que emerge dos fundos, entre estruturas e manchas numa fugacidade que se define, numa precisão que se instala no que escoa. A pintura diverte-se com as antinomias, entre a fixação da forma e o devir do líquido, numa diversão entre perenidade e efemeridade.
A série das Ilhas, apresentada com catorze obras na exposição individual de regresso (Galeria 111, 1983), trabalha as composições na especulação do vazio, como um jogo com a solidão, com o cercamento de um lugar e das suas vivências. A semi-abstração é aqui a própria expressão da separação, da distância com os referentes, que já não são ilhas concretas, mas evocações de uma habitabilidade que foi a sua nos primeiros vinte anos de vida. A série Memória, que se apresentou como um núcleo de seis obras na exposição de 1983 na Galeria 111, revela outra particularidade, ligando-se a um lugar muito concreto de Angra do Heroísmo: o Obelisco da Memória a D. Pedro IV, peculiar monumento em Angra do Heroísmo do século XVIII. Dacosta vincou a filiação a essa estrutura piramidal onde brincou em menino e que tinha sempre «diante dos olhos», sublinhando por isso que «não são coisas puramente abstractas»106. Na série, este lugar concreto não se explora no desejo, muito menos desespero, da recuperação de uma memória perdida, mas como um «signo que precedeu o seu significado» e «o triângulo, surgido da actividade pictural abstracta, revelou-se finalmente como vestígio da recordação incontrolada de um monumento»107. É nessa interseção, em que o vestígio do gesto criativo descobre um vestígio mnemónico, em que cada retoma desse gesto constata a irrecuperabilidade dessa forte memória visual, que o arquétipo funciona, estimulando a pintura sem a coagir.
Dacosta também explorou uma circulação de elementos que passavam de obra para obra, por vezes para séries díspares. São elementos que, sendo persistentes, surgem surpreendentes num lugar inesperado às lógicas internas à sua mitografia pessoal. São figuras diletantes, em passagens de elementos entre quadros. É o caso do limão, da estrela ou da caveira. Nesta circulação atua bastante um bichiário animal que invade a pintura com figuras recorrentes, como o macaco, o touro (já muito presente na frase surrealista-metafísica), a galinha, o lagarto ou o papagaio. As aves, muito presentes nos quadros surrealistas, serão cruciais nesta fase, sobretudo patos e cisnes. Em várias ocasiões surgem ainda o coelho ou o cão.
Outra exploração é o bestiário mitológico, por vezes religioso, revelando-se um particular interesse por figuras de lugar mediador, entre as identidades, ou mesmo entre oposições. Dacosta explorou sobretudo as Sereias (ou Marinas, nome também utilizado na Terceira para as Sereias) e os Anjos. Se a Sereia está entre a Terra e o Mar (e entre a Mulher e o Peixe), o Anjo está entre a Terra e o Céu. O Anjo é uma presença dominante desta exploração, aparecendo em A Caça ao Anjo de 1984) e em vários outros. O anjo é figura mediadora das distâncias, intransitáveis, figura híbrida no ser e no estar, na sua identidade e no seu lugar.
98 Eurico Gonçalves, «António Dacosta. O regresso de um grande pintor», O Jornal, 22 julho 1983.
99 Rui Mário Gonçalves, «O reaparecimento de António Dacosta, pintor», Jornal de Letras, Artes e Ideias, n.º 61, 21 junho a 4 julho 1983, p. 6.
100 Tapié, António Dacosta – Scène Ouverte.
101 Dacosta, entrevista. In Almeida, «António Dacosta. A minha pintura é uma impureza que tende para a luz», p. IV.
102 António Dacosta, carta a Rui Mário Gonçalves. In Gonçalves, «O reaparecimento de António Dacosta, pintor», p. 7.
103 Carlos Augusto Ribeiro, «Entre dois caminhos. Surpreender o caminho do pintor», Revista Ler, n.º 17, inverno 1992, p. 31.
104 «António Dacosta. A minha pintura é uma impureza que tende para a luz. Hoje não é assim. As coisas fazem-se a uma distância crítica. No fundo, (…), o ato criador é um ato crítico. A arte não pode ser tomada excessivamente a sério. (…). Um tipo de representação que não seria um pouco de si própria já não é possível». António Dacosta, entrevista. In Almeida, «António Dacosta. A minha pintura é uma impureza que tende para a luz», p. IV.
105 Dacosta, carta a Rui Mário Gonçalves. In Gonçalves, op. cit., p. 7.
106 Ibid.
107 Rui Mário Gonçalves, Vontade de Mudança. Cinco décadas de artes plásticas. Lisboa: Editorial Caminho, 2004, pp. 189-190.
9. A ritualização dos signos – em «busca de um lugar mítico»
«O imaginário quer dizer que as imagens que se cruzam em mim não têm qualquer coisa que me excede»
(António Dacosta, 1990)108
Na segunda metade dos anos de 1980, observa-se um obscurecimento da pintura de Dacosta, cedendo a azuis e cinzentos dominantes, que passam a atuar como cores dominantes, em tendência monocromática com as quais as outras têm de passar a lidar. Rui Mário Gonçalves considerou Não Há Sim Sem Não – O Eremita (1985) o quadro charneira desta mudança109. Neste processo acrescentaríamos as séries Em Louvor de… (1985-1986) e Açoriana (esta em tendência de azuis), a última obra da série Tentação Santo António (1987), ou ainda a obra A Flor, a Máscara e Eu Adolescente (1987).
As cores quentes e luminosas tendem a esmorecer, sugadas no temperamento frio e neutro. A cor sobrevive como um resto, no limiar de uma cintilação resistente. Por seu lado, as figuras surgem menos planas e recortadas nas cores vibrantes, para se sobrevirem mais informes e fantasmagóricos na sua aparição sobre os fundos. Já não era o pigmento a comandar, mas um desgaste que emergia dos suportes, e matérias de memórias esgaravatadas que o pintor acentuava.
As pinturas da série Em Louvor de (1985-1986) apresentam um desfile de cabeças de bezerros em carne, expostos num desfile de seis peças, como cabeças de animais sacrificados. A série é sobre o touro e a morte, a festa e o sacrifício. A última e maior peça da série, dominada por uma figura escurecida de costas à esquerda, apresenta signos insistentes de séries anteriores, como a Memória no horizonte, a Fonte de Sintra em baixo ao centro e a carcaça em carne da cabeça de bezerro, que assinala a série, em baixo à esquerda. Dacosta afirmou que «esse quadro, apesar de constituído por vários, não se faz série, faz antes comunidade. Mas a relação com os outros não é uma relação de sentido único»110.
A mesma dimensão ritualista surgia em O Cálice (1986), obra em tons sujos, lembrando uma catacumba paleocristã, ou o tema do Bailador, espécie de figuras entre a crucificação e a oração. O Cálice sublinhava outro modo de tratamento matérico que iria marcar a última fase. A matéria perdia a frescura do aparecimento do pigmento que vibrava em saturação trepidante na superfície. Agora ela amassava-se em jogos de camadas que absorviam a cor na síntese subtrativa. Este efeito forneceu às superfícies a expressão de um tempo denso de camadas de história, resíduos sobreviventes de palimpsestos que se impõem sobre o presente.
Açoreana (1986-1990) é uma série de atmosferas impressivas e pesadas na saturação fria de azuis acinzentados. O devir espesso dos elementos, sobretudo aves, concebe-se de esforço de definição formal que se joga com o da sua transição.
Algumas das observações anteriores, que valorizam a circulação entre o animal e o espiritual, entre a terra e o céu (ou o mar), ou o profano e o sagrado, vão ao encontro das referidas teses de Ruth Rosengarten. Aceitando-as, preferimos contudo um esforço de sincretismo das oposições, algo que se verificava desde algumas das primeiras figuras do regresso, de que destacámos as figuras híbridas (ou «entre») como a Sereia e o Anjo. Alguns trabalhos da fase final acentuam esse esforço, numa aproximação e sincretismo das referências anteriores, das suas diferenças e dicotomias, exemplo da cabeça de bezerro fundida com o anjo que aparece explorada em variações dessa fusão em Seis Anjos (c.1990). O anjo, entre a terra e o céu, e o bezerro sacrificado, entre a vida e a morte, conjugavam-se na sua fusão híbrida, um esforço de sincretismo que os últimos anos acentuariam.
107 António Dacosta, entrevista. In Pinharanda, «António Dacosta. Saudades deste sítio», p. 28.
108 Cf. Rui Mário Gonçalves, «António Dacosta. Uma interpretação mítica do mundo», in Artes Plásticas, n.º 7, janeiro 1991. A obra teria sido apresentada na exposição Artista do Mês (1985) e logo de seguida repintada. Numa fotografia a preto e branco da exposição é possível ver a versão anterior e verificar alguns elementos trabalhados em Não Há Sim Sem Não – O Eremita. Análises laboratoriais comprovaram a alteração da pintura, descortinando-se ainda aspectos da pintura anterior.
110 António Dacosta, entrevista. In Almeida, «António Dacosta. A minha pintura é uma impureza que tende para a luz», p. IV.
10. A luz da escuridão – a «impureza que tende para a luz»
«Porque há algo de mim contra o transitório, contra o periclitante do real. Há como que o exorcismo da morte» (…) «vontade de eternizar o que é passageiro»
(António Dacosta)111
Como vimos, a viragem cromática de meados da década libertou Dacosta do pigmento colorido e da relação com as bisnagas de acrílico, pesquisando a textura de materiais naturais já gastos e marcados pelo tempo, o que como consequência, ampliou a variação de escalas e matérias. Muitos ficaram sobre suportes circunstanciais, como convites de exposições, postais, papéis de embrulho, agendas, pequenos cadernos, etc. Como vimos, estes exercícios não são preparações de obras, mas desejos delas.
A série Tau foi o último grande ciclo pictórico de António Dacosta, apresentando-se como um grande conjunto de despedida e com a responsabilidade de convergência de todo um particular e recente trajeto criativo112. Se antes tinha dominado o esguicho linear e simétrico das Fontes de Sintra, agora era a forma de um «T» (o Tau) que se impunha. Mas ambas as marcas das duas séries sustentam-se numa estrutura vertical que no topo se abre simetricamente. Se o elemento caracterizador das Fontes de Sintra era um arabesco claro, normalmente branco, que nos sugeria movimento, agora ele é uma barra retilínea, em tons escuros, normalmente negros, para se estabilizar sobre si como elemento permanente. O caráter de arquétipo do Tau surge assim como uma petrificação, como a solidificação de um fóssil, ao contrário do elemento líquido que escoa nas Fontes de Sintra. Nesta passagem, o «T» encontrava a forma da Cruz, assumindo outra analogia formal de força ritualista que se iria cruzar com a instalação Tau ou os Porcos do Retábulo de Issenheim, que deixaria em estudos. Os Bailadores seriam também ensaios antropomórficos da forma do «T», associando-o à Crucificação.
A série assume a tendência da mancha ao monocromatismo, num domínio de ocres e cinzentos que retumbam nos negros, que se investe na indagação de um grau zero de caracterização da superfície sobre a qual atua a sobrevivência do arquétipo do Tau. Neste negro sobre negro, de insistência na opacidade, negritude e escuridão, é o arquétipo que sobrevive a si próprio em variações: imponente e afirmativo, reduzido e retraído, abandonado a si ou em repetição, as modificações sucedem-se não como proliferação, mas como subtração, como quem quer reduzir as possibilidades no seio do infindável.
Ruth Rosengarten esclareceu que o «T» «era a marca cosida nas vestes dos monges anónimos do Convento de Issenheim, os quais se dedicam a curar doenças contagiosas e a criar porcos para poder responder à afluência de peregrinos», verificando aí a «sobreposição do imundo e do sublime»,113 desse excesso mútuo de carne putrefacta e de espiritualidade com que o famoso Cristo de Issenheim (c.1510) de Grünewald nos acomete.
Em Março de 1990, Dacosta visitava o Retábulo de Issenheim (c.1512-1516)114 encomendado a Mathias Grünewald (c.1470-1528) pelo Mosteiro de Santo Antão (ou Santo António Abade) de Issenheim para a capela do seu hospital, ao serviço da fé de adoentes do fogo sagrado ou fogo de Santo António, tal como se nomeou uma doença de pele. O «T» da crucificação associava-se ao «T» que os monges cosiam nas suas vestes e que imprimiam nas coxas dos porcos que tratavam, porcos estes que eram uma das suas principais fontes de autossubsistência e riqueza. Por seu lado, o porco era um dos símbolos de Santo Antão e era a forma do seu bastão. A sua expressão de arquétipo permite ainda uma ligação aos vários alfabetos (o «T» do alfabeto latino; o «Tau», décima nona do alfabeto grego e a última letra do alfabeto hebraico).115
Pode-se considerar que o projeto das Assinaturas constituiu a última série de pintura projetada por Dacosta, que ficou apenas em pequenos exercícios sobre papel sem nunca passar para as grandes superfícies, como desejava. Centrado nos nomes de pintores primitivos portugueses, tomou como ponto de partida o livro de Vergílio Correia (Pintores Portugueses do Século XV e XVI, de 1928).116
A assinatura era a figura, a forma e a composição. Dacosta simulava as assinaturas dos velhos mestres como domínio central da composição em fundos brilhantes, para os quais pensava utilizar folhas de ouro ou prata (que nos exercícios apenas simulou). O próprio Dacosta referia o projeto na sua última entrevista: «Penso fazer grandes telas de uma cor base única com a assinatura de pintores quinhentistas portugueses ocupando todo o espaço, como se fossem grandes ampliações, pormenores de retábulos ou telas. […]. Serão por vezes assinaturas inventadas. Porquê assinaturas? Bem, a assinatura parece-me dar a ideia paradoxal dum autor anónimo. Fui eu quem fiz isto? E assina-se na dúvida»117.
As Assinaturas concebiam, perante a série Tau, mais uma oposição entre a efemeridade do gesto e a estabilidade da forma. Cromaticamente, esta série fornecia uma cintilação própria apenas projetada, um brilho (de ouro e prata) que se contrapunha ao encolhimento tonal centrado na série Tau. Considerando o ato de escrita, as Assinaturas estabeleciam outra ligação ao Tau. Nas primeiras, a assinatura enquanto grafia, como marcação efémera da obra que fica; no Tau, a letra enquanto símbolo, com forma estável que se sustém perante as grafias. Se as Assinaturas exploram a grafia que arrasta consigo os caracteres numa insígnia única, o Tau centra-se na forma estável de um caractere. As séries disputam um jogo entre o presente efémero que faz a obra (Assinaturas) e a presença estável da obra que fica (Tau). A efemeridade do gesto criativo, que se rejubilara nas obras de 1980-1984, tinha-se esquivado na fase final para uma sedimentação dos tempos, um rasto de efemeridades que se acolhiam em cada escolha do artista.
A forma dominante da composição centra-se na assinatura, lugar do último gesto do artista, de um gesto que normalmente fecha e acaba a obra, ao mesmo tempo que a legitima. O jogo do valor e do juízo da obra, tal como da aura dos nomes, seja na história da arte, seja na atualidade da crítica, era bem conhecida por Dacosta. Devolver a aura do nome como questão plástica, como obra de arte, era uma ironia final oferecida pela inversão.
A fase final também se caracterizou pela projeção de obras de caráter público e “instalativo”, numa extensão para além das questões da pintura, tendo ficado quase todos em meros estudos (noção mais necessária neste tipo de projectos criativos, mas que aceitamos aqui sempre no âmbito de uma dimensão processual criativa). Várias destas obras seriam construídas postumamente, anexando com isso outras colaborações.
Uma das primeiras obras com estas características, que finalizaria, foi o painel para a zona dos Passos Perdidos do novo edifício da Assembleia Legislativa Regional dos Açores na cidade da Horta. O resultado foi uma sequência de falsos retratos de anónimos, um coletivo incógnito, de cidadãos comuns, em leve relevo colorido, que proporciona uma subtil manifestação dos rostos que atenua a severidade da sua frontalidade quase hierática – e que Dacosta considerou representar «O Povo que Olha o Governo».
Outra encomenda foi para a estação de Metro do Cais do Sodré. Dacosta efetuaria apenas vários exercícios (que em rigor nem sequer se podem definir como estudos, porque o artista não chegaria a uma escolha), dispersos numa pasta. O projeto final seria concebido por Pedro Morais118, que escolhia e adaptava um dos desenhos dessas pastas com exercícios livres. Dos três motes principais que marcam os estudos, destacamos os anjos (sobretudo um grupo de anjos a jogar futebol), Camões e as musas, e o Coelho de Alice. Pedro Morais escolhia este último. A figura monumentalizou-se e repetiu-se num friso gigantesco e cinético que confronta esse tempo urgente, sempre atrasado, do coelho de Alice, em confronto com o dos passageiros do metro e por contraponto com o tempo demorado e de suspensão da arte.
Outra obra, de teor de escultura pública, mas que a partir dos estudos nos revela uma espécie de instalação monumental, pelo modo como quer dialogar com o sítio na sua dimensão cenográfica e mnemónica, foi pensada para Angra, a cidade natal a que chamou Altar-Nave «Em Louvor de». António Dacosta apenas deixou alguns estudos de 1988-1990. A peça foi pensada no rigor de uma dimensão física concreta («O local escolhido, Corpo Santo, teria de ser mais ou menos elevado de forma a que a parte alta, se não todo o monumento, se torne visível do mar e da beira da Alfândega») e uma dimensão simbólica («Este monumento guarda em si uma dupla memória: a da nave de uma igreja e a de uma nave de navegação. Caravela em terra, por assim dizer»)119.
É evidente o paralelismo com o monumento local que inspirara a série Memória, no mesmo aparato cenográfico a partir do qual se vê a cidade de Angra do Heroísmo e se é visto por ela, como uma referência topológica de orientação. Menos monolítica e mais subtil nessa exposição geográfica, a proposta de Dacosta fazia elevar dois mastros, duas linhas verticais no espaço. Explorando a dimensão de erguer, que é uma das marcas da escultura, como que recusava a da massa ou volume no espaço. A perenidade atestada é fina e delicada, num contraponto mensurado à marca do transitório. Os mastros vincam a terra para invadirem o espaço como linhas metálicas, exploradas nessa interrupção aberta que está no título, Em Louvor de. Ao centro destas linhas suspensas, um altar em forma de Tau no seu perfil (e que numa das maquetes de José Aurélio se explorou em simbiose com a Fonte de Sintra).
Foi só postumamente que se decidiu realizar a obra120, tendo-se escolhido o arquiteto Sérgio Infante e o escultor José Aurélio para desenvolveram o projeto a partir de esboços de António Dacosta. Instalado na falésia do Cantagalo, o monumento seria inaugurado em 1995, no dia do Espírito Santo, culto com particular tradição no arquipélago, misturando-se o evento com os festejos religiosos locais, acompanhado de palestras e de uma exposição de Dacosta em Angra. A inauguração parecia assim um regresso espiritual do artista à terra natal, e a escultura uma espécie de cenotáfio aberto, por si próprio designado.
Ficaram ainda por realizar outras ideias que descrevia na sua última entrevista, como o «projecto de espaço circular fechado onde, dentro, se via, durante uns segundos, uma tempestade cair sobre um mar de pedra, tudo isto graças a um dispositivo de luz apropriado, de nevoeiro artificial e de uma música entrecortada por ventos tempestuosos. Também gostava de fazer uma coisa com nove pedras no chão (uma de cada uma das ilhas) e nove quadros com os mapas e fotos “objectivas” de cada ilha. A instalação chamar-se-ia “arquipélago”. E tenho muitos outros apenas esboçados»121. Na linha das últimas obras, o pintor desdobrava-se em artista plástico mais abrangente, com interesses instalativos. O fechamento da dimensão de ilhéu e a efemeridade da vida marcavam estas ideias e projetos.
O falecimento do artista em Dezembro do ano de 1990 suspendia assim uma demanda criativa final. Aquela que se considera a sua última obra finalizada, uma colagem sobre seda, surge como metáfora final. Uma tira linear horizontal, como uma sequência da vida, com os seus acidentes e sustentada na fragilidade dos seus matérias, é interrompida pelo enquadramento.
111 António Dacosta, entrevista. In Avillez, «António Dacosta. O regresso à pintura 25 anos depois».
112 Com o «rosto reinventado de menino olha a morte de frente sob o signo do T(au)». Porfírio, «Exposições. Íntimos e clandestinos…», p. 46.
113 Ruth Rosengarten, «Artes Plásticas. António Dacosta. Casa Fernando Pessoa, Lisboa», Visão, 9 fevereiro 1995, p. 91.
114 Terá sido logo após essa viagem que Dacosta terá projetado Tau ou Os Porcos do Retábulo de Issenheim (com vários estudos de 1990), uma reflexão sobre a polifonia do retábulo em exposição que pensou para a Galeria 111. A obra teria concretização póstuma, realizada por Bernardo Pinto de Almeida para o Museu de Serralves.
115 Cf. Ruth Rosengarten, «Não há sim sem não: A obra de António Dacosta», pp. 15-16. Ver a boa síntese de Tânia Saraiva, António Dacosta. Matosinhos, Lisboa: Quidnovi, 2010, pp. 72-75.
116 Vergílio Correia, Pintores Portugueses do Século XV e XVI. Coimbra: Imprensa da Universidade, 1928. No seu exemplar pessoal do livro de Vergílio Correia, Dacosta escreveu na capa: «Fazer vários quadros apenas com assinaturas de Mestres portugueses», enquanto ao cimo, à direita, realizou pequeno desenho de exercício da assinatura de Gregório Lopes.
117 António Dacosta, entrevista. In Pinharanda, «António Dacosta. Saudades deste sítio», p.28.
118 Após o falecimento de António Dacosta, e perante o interesse manifestado por Consiglieri Pedroso em que se mantivesse uma obra de Dacosta trabalhando-se a partir dos seus exercícios, Miriam Dacosta sugeriu que fosse o artista Pedro Morais, amigo de Dacosta, a dar sequência à obra.
119 Bernardo Pinto de Almeida, «Uma ideia de António Dacosta. Em louvor da vida. A riqueza de muitas leituras», Diário Insular, 3-4 junho 1995.
120 A insistência para se avançar com o projeto teve o apoio de vários amigos de Dacosta de Angra do Heroísmo. Ver, por exemplo, a sugestão Álvaro Monjardino, «Três notas sobre o património cultural», do Instituto Histórico da Ilha Terceira, vol. XLIX, 1991, pp.493-510 [pp. 508-509].
121 Dacosta, entrevista. In Pinharanda, op. cit., p. 26.
11. Do Mito à História
«Penso que nunca me vou encontrar»
(António Dacosta, 1983)122
A obra de Dacosta tem sentido particular na escola da pintura moderna portuguesa, onde em dois grandes ciclos, fez história. Angra, Lisboa e Paris seriam os polos de relação: Angra (e os Açores) lançava um jogo de memórias e afetos que se jogavam em Paris, mas sempre com sentido para a arte portuguesa e a partir da escola de Lisboa, decidindo-se nesta relação esses três eixos. Angra decidia uma mitografia de origens que regressava num modo circular e ritualizado; Paris, uma consciência universal e ecuménica da arte; e Lisboa, o lugar da ação cultural onde a mitografia se inscrevia na história. Se, na viagem biográfica de Dacosta, Lisboa ficava entre as outras duas, onde se decidia o primeiro grande ciclo de produção (1939-1948), um quarto lugar seria necessário para acontecer o segundo grande ciclo (1975/1980-1990): Janville. Esta saída para um grande centro como Paris, contrária ao que fora a passagem de Angra para Lisboa, devolvia um tempo final de criação.
O hiato criativo, que não foi afastamento mas suspensão da produção, permitiu uma distância que trabalhou a consciência e lucidez da arte. Entretanto, Dacosta pôde ver a sua obra num espelho histórico, numa espécie de meta-representação de si que foi mensurada nessa suspensão. Destaca-se a relação entre a efemeridade do gesto de inscrição, que é o ato criativo, e a obra que fica para uma posteridade de sentido (de que as Assinaturas seriam a grande metáfora). Esta dicotomia marcaria a sua última produção num jogo mais profundo com a morte. Um aparente jogo entre dicotomias se estabelece: de sagrado e profano; do que está próximo e do que está longe no espaço e no tempo (com essa referência maior aos tempos e espaços da sua vivência açoriana); do transitório (gesto) e do perene (forma e obra). Tais dicotomias procuram conjugar-se num estado sincrético das suas ambivalências, num modo em que se possam ligar sem dissolverem as suas especificidades.
Em 1975, em tampos de queijos açorianos, realizava uma série de quatro obras que são as primeiras do regresso. Sem serem obras maiores, são das maiores metáforas do seu percurso. Porque nos remete aos Açores (Terceira), lugar da infância, recuperada na distância do tempo e do espaço. Mas também porque o seu registo de quatro tempos de paisagem (Amanhecer; Meio-dia; Entardecer; Noite) proporcionam a matriz de um ciclo da passagem circular do tempo, de um tempo redondo de eterno retorno, ajustada a uma semi-circularidade dos formatos que parece fechar a série sobre si. Os quatro tempos podem definir ainda os seus dois grandes ciclos de produção, decididos em quatro andamentos, com uma analogia entre a temporalidade mais curta do dia (que a série apresenta) como a mais lenta do ano: Amanhecer/primavera, Meio-Dia/verão, Entardecer/outono, Noite/inverno).
Para o primeiro grande ciclo teríamos: a fase de formação (1928-1938), a surrealista (1939-1940, a metafísica (1941-1942), e por fim, como último andamento, as pesquisas finais neo-cubistas e abstratas (1943-1949). Para o segundo grande ciclo seriam: a fase de trabalho abstrato atento aos materiais e colagens (1975-1982), a das primeiras figurações luminosas (1982-1984), o esfriamento cromático (1985-1987) e o escurecimento final (1988-1990). Este tempo em anel, que retoma para se fechar na coerência de uma mitografia pessoal, diz-nos desse esforço ritualizado da criação, da dificuldade em sincretizar as dicotomias e diferenças, de ligar o princípio e o fim, de lidar com o transitivo num espaço e tempo absolutos.
«Uma das boas coisas que há para acreditar é na existência dos anjos.»
(António Pedro, 1956)123
Este ensaio de 2014 foi revisto e aprofundado em edição com o mesmo título (Fernando Rosa Dias, António Dacosta – A Tentação Mítica. Angra do Heroísmo: Secretaria da Direcção Regional da Cultura / Direcção Regional da Cultura; Lisboa: FBAUL-CIEBA, 2016). Esta versão foi depois revista, reduzida e corrigida, em 2017. Trata-se de um trabalho reflexivo e alargado, que considerou os nossos trabalhos de pesquisa ao longo da elaboração do catálogo raisonné.
122 António Dacosta, entrevista. In José Valentim Lemos, «António Dacosta, pintor. Emigrante provisório há 40 anos», pp.22-23.
123 António Pedro, «Algumas páginas do dicionário prático ilustrado de António Pedro», Pentacornio, 31 dezembro 1956.