José Luís Porfírio

José Luis Porfírio (n. 1943). Estudou História na Faculdade de Letras de Lisboa (1961-67). Ainda estudante, iniciou-se na crítica de arte, o que lhe valeu o apoio de José-Augusto França para uma bolsa de estudo da Fundação Calouste Gulbenkian na Sorbonne, em Paris, que frequentou em 1967-68. Foi em Paris que, por intermédio de Pedro Morais, conheceu António Dacosta, não por certo como pintor, mas como um admirável companheiro e amigo mais velho, e um comentador tão discreto quanto certeiro da obra alheia, já que da sua nada queria dizer.
Em 1968-70, frequenta o Curso de Conservador de Museus no Museu Nacional de Arte Antiga, onde virá a trabalhar entre 1973 e 2004, tendo assumido a sua direção em 1996. Em 1972, inicia um percurso de crítico de arte profissional no Diário de Lisboa, atividade que ainda hoje mantém no semanário Expresso.

Depoiemento  O Exercício da Ausência  p. 1

Ensaio  A Antítese da Calma  pp. 2-10

 

O Exercício da Ausência 

Um pedestal de ócio sustinha as estátuas do vale, inertes de desterro, todas de rosto semelhante, existindo de ausência erguida.

— António Dacosta, «O trabalho das nossas mãos», Variante, n.º 2, 1943

 

A Ausência, enquanto sentimento, enquanto conceito, atravessa a vida e a obra, a memória e o estar connosco, ainda e sempre, de António Dacosta; Ausência como presença maior, dir-se-ia, Ausência simultânea do tempo e do espaço, na vida e na morte, na ilha, na beira-mar e no coração do continente: Paris. Tantos anos já depois da sua morte, a Ausência pode sentir-se de um modo mais forte e verificar-se como qualidade e modo de ser. Antes disso ela fora um mito, o mito maior da obra, ou da não obra, de António, “pintor Ausente” nas palavras certeiras de Helena de Freitas1, “perdido talvez para a pintura” como disse José-Augusto França em 19652 e Francisco Bronze reiterou em 19693, dizendo-o em vias de total desaparecimento da cena artística portuguesa.

Conheci António Dacosta em Paris no ano de 1967, por intermédio do Pedro Morais, e desde logo notei a sua capacidade de atenção, distante mas intensa, ao que se passava em torno, tanto no campo dito das artes como na sabedoria do estar e do viver; observava e, quando falava do que tinha visto e entendido, logo se notava a sua capacidade de ver para além do olhar; assim eu ia percebendo, pouco a pouco, a sua ausência da prática artística como um outro modo de estar nela, dispensando o fazer. O seu modo de estar não era exuberante, nem especialmente afirmativo; infiltrava-se como uma sabedoria serena e tranquilamente irónica, cultivando a distância necessária para melhor ver um quadro, apreciar um copo, ou muito simplesmente estar ali. Da pintura própria nada falava, e dos escritos que ia fazendo para o Brasil também não, pois “não tinham importância”, dizia.

Dos meus encontros com este homem, quero testemunhar dois momentos, dois registos de diferente intensidade e que por alguma desconhecida razão estão continuamente presentes na minha memória.

 

PARIS, MAIO DE 1968
António Dacosta e José-Augusto França falam de André Breton

Não sei exactamente onde se passou esta conversa, sei que foi num lugar privado, o hotel onde José-Augusto França ficava, ou em casa de António. Nem sei de outras testemunhas, sei que estava presente mas sinto-me neste caso bem mais como observador do que como participante: corria o mês de Maio de 68 e com ele o desejo corria à solta pelas ruas de Paris, ou já seria Junho, não sei, apenas me lembro que nos chegavam fortes ruídos da rua e, de repente, a conversa que tínhamos interrompeu-se, Dacosta e França fitaram-se, e um deles disse: “o André Breton devia assistir a isto”. André Breton morrera aos 70 anos, em 1966, e não sabia dos seus filhos, ou netos, subvertendo a sua cidade; “ele merecia ver isto”, respondeu o outro. Era mais que pena, era uma raiz de vida o que diziam aqueles dois amigos, numa cumplicidade antiga que eu entendia mas não podia partilhar; António sereno e triste, França discretamente emocionado, sem aquela ponta de ironia que tão bem o distingue. André Breton estava ali, naquela sala, o poeta e o agitador ganhava uma insuspeita presença ocupando por toda a parte a cidade que ele tanto soubera amar e evocar como ninguém. Foi aí, por força da atitude daqueles dois homens, a primeira vez que tive a noção do que era um “Grande Transparente” invadindo as ruas e praças de Paris, entrando no coração das pedras da calçada, transportado através da voz e do corpo de jovens que de André Breton talvez nada soubessem.

 

LISBOA, ANOS 80

Não sei datar este encontro com António Dacosta, aconteceu por certo depois da exposição de 1983 na Galeria 111, provavelmente no ano seguinte, mas sei aonde se passou, na casa onde eu vivia e onde ele foi jantar com vários amigos comuns; porém, esta conversa teve-a só comigo, aliás, não foi uma conversa, antes uma afirmação breve só a mim dirigida; parou a meio de um longo corredor, esperou que os outros se afastassem, e disse-me: “Sabes; ando a incomodar muita gente com as minhas pinturas actuais, eu já estava arrumado, as fichas já estavam feitas, e agora…” e riu-se mansamente com o ar de um miúdo que está a fazer uma partida, saltando para fora do baralho e iniciando o jogo quando bem poucos o esperariam e, porventura, outros ainda o não desejariam. Não mais falou nesse assunto comigo; o recado era só para mim, como tal o guardei até hoje.

Passaram muitos anos, cerca de trinta, sobre esse encontro, talvez o primeiro momento em que senti, a partir do António, a sua obra e a sua vida como um continuum cheio de significado, entre o sim e o não, um espaço em que os silêncios valem tanto como os sons e o intervalo entre as obras é obra também.

Ausência é espaço, é tempo, é obra, é a própria matéria de que a obra se faz e refaz ao nosso olhar e na nossa memória; a Ausência sustém o peso de cada hora “até soltar sua canção intacta”4 na vida e na obra do António.

 

1 Maria Helena de Freitas, «A escrita do pintor “ausente”», Expresso, 5 março 1988.
2 José-Augusto França, «António Pedro e António Dacosta», Colóquio, n.º 32, fevereiro 1965.
3 Francisco Bronze, «António Dacosta em retrospectiva», Colóquio, n.º 52, fevereiro 1969.
4 Cristovam Pavia, «35 poemas». In Poesia (Colecção Círculo de Poesia). Lisboa: Moraes Editores, 1959.

Ensaio

A Antítese e a Calma

Há sempre uma calma e uma antítese da calma” 1

Dar a ver a obra de António Dacosta enquanto também se escreve sobre ele no centenário do seu nascimento só pode ser uma tarefa exaltante, “em louvor” do homem e da obra e, no entanto, deve ser muito mais do que uma simples celebração. Desde sempre houve quem a entendesse uma e outro, os homens da escrita Carlos Queiroz e Vitorino Nemésio na primeira hora, logo seguidos, em cumplicidade de vida inteira, por colegas pintores, António Pedro, Júlio Pomar, por críticos de arte também, José-Augusto França, Rui Mário Gonçalves, e, depois destes, muitos outros, com uma qualidade que me parece ser um condão que Dacosta sabe transmitir a quem dele se abeira. Essa é “a virtude de uma obra [que] reside na adesão apaixonada que provoca imediatamente”2, só peço que o mesmo suceda agora.

A obra, os textos e as declarações de António Dacosta guiaram este trabalho, um estudo que tem raízes já fundas num conhecimento antigo do homem e da obra, no comentário crítico a algumas exposições fundamentais e, sobretudo, na organização em Paris, no Centro Cultural da Fundação Gulbenkian, da exposição Cena Aberta que reunia algumas dezenas de trabalhos do artista e onde, pela primeira, vez me deixei guiar ao sabor da sua obra.

Tal como em Paris, esta exposição retoma o título de uma obra fundamental de António Dacosta, modificando-o levemente num sentido que está de acordo com declarações do próprio à RTP em 1969, por ocasião da retrospectiva que Rui Mário Gonçalves organizou na Galeria Buchholz, antecipando aliás a sua obra ainda por acontecer, tal como repetidas vezes sucede em escritos e declarações suas.

“Não há passado nem futuro. Só há espaço no mundo”3. Esta luminosa declaração não aparece sozinha – ela surge sempre em entrevista, primeiro à televisão em 1969, a propósito de uma exposição retrospectiva num tempo em que todos, e o próprio por certo também, julgavam que a interrupção da pintura dos anos quarenta era definitiva. Disse então Dacosta: “o tempo é uma dimensão inexistente”4 e repetiu-se depois já em pleno reaparecer público como pintor: “(…) o tempo não me interessa (…) Nasce-se todos os dias!”5.

Só há espaço no mundo! Uma exposição é isso mesmo, um desenrolar no espaço, e no entanto há nascer e morrer, e no entanto há o exercício da Memória, tão importante para António Dacosta que este até lhe dedica uma série de trabalhos, ou da Saudade, palavra com que inicia uma outra série, porventura a mais longa, dedicada à “água voluptuosa das fontes”6.

O corpus da obra, concentrado sobretudo em duas décadas intensas, 1937-1948 e 1980-1990 (prejudicado também no que diz respeito à década inicial pelo incêndio de 1944 que destruiu vários trabalhos), foi durante muito tempo marcante como fronteira entre o conjunto mais reduzido dos anos quarenta e a obra em crescimento contínuo da década final. Tal situação conduziu à ideia “dos dois períodos como momentos antagónicos animados por estéticas diferentes (…) mas tentativas mais recentes para encontrar elos de ligação entre as duas fases provaram ser mais frutuosas (…) Há neles, na verdade, tanto continuidades como descontinuidades”7. Este descobrir, não a unidade porque ela é diversa, mas a complementaridade e a coerência poética da obra, é um dos propósitos desta exposição.

Tudo começa e acaba com um coelho, um dos últimos trabalhos de António Dacosta, um projecto de arte pública inacabado, e, por certo, um dos mais conhecidos, ou antes, mais visto, ainda que de relance e apressadamente, pelas multidões que muitas horas por dia atravessam os cais da estação do Metro do Cais do Sodré em Lisboa, vindos de Cascais e da linha do Estoril, ou de Almada e da Cova da Piedade depois de passar o Tejo, ou para lá regressando ao fim do dia de trabalho, ou ainda nos meses mais quentes a caminho das praias vizinhas de Lisboa. Este Coelho, permanentemente atrasado, casa com o quotidiano da cidade na estação de Metro do Cais do Sodré8 mas, transposto para esta exposição, lembra-nos a sua origem imaginária de quotidiano transfigurado como personagem introdutória ao País das Maravilhas que é, também, uma exposição de António Dacosta.

O percurso pela obra não será cronológico, muito embora dois dos seus tramos iniciais se refiram ao surgir convulsivo do pintor surrealista numa Cena Aberta ocupando os começos da década de quarenta, e à Crise Mitológica que se lhe segue e antecede a interrupção da prática da pintura em 1947/8. Já o restante corpo da mostra será temático e não cronológico, ocupando-se primeiro do Sul, uma poética geográfica que domina boa parte do seu regresso à pintura, passando depois por algumas das Séries em que muitas das suas obras estão organizadas, conduzindo por último a um final, Alfa e Ómega, de contraponto entre obras inaugurais e finais.

O guia principal deste trabalho é o próprio Dacosta, quer através da sua obra plástica, quer através da obra escrita que ocupou maioritariamente os anos em que o pintor suspendeu o seu trabalho, numa actividade ora de crítica, ora de crónica, primeiro em Lisboa e depois em Paris; obra que, para além do testemunho que representa sobre a vida artística do seu tempo na Lisboa dos anos quarenta e em Paris entre essa década e os começos de oitenta, é um testemunho maior sobre o seu entendimento da arte e da vida. Dacosta “deixou de escrever no momento em que regressou à pintura”9 ou melhor, no momento em que esse regresso se tornou público em 1980, primeiro em exposição de grupo e depois em 1983, numa exposição individual na Galeria 111 em Lisboa. Vale a pena acrescentar que ao começo da sua actividade crítica, iniciada no Diário Popular em 1943, corresponde também uma profunda inflexão da sua obra plástica como veremos adiante.

1 Declarações de António Dacosta ao programa televisivo Notas de Artes Plásticas, RTP, 1969.
2 Rui Mário Gonçalves. In António Dacosta. Lisboa: Galeria Buchholz, 1969.
3 «António Dacosta por António Dacosta». In António Dacosta. Lisboa: Quetzal Editores e Galeria 111, 1995.
4 Dacosta, Notas de Artes Plásticas, RTP, 1969.
5 Maria João Avillez, «António Dacosta. O regresso à pintura 35 anos depois», Expresso, 18 junho 1983.
6 António Dacosta, «Baya», Diário Popular, 22 dezembro 1947. In António Dacosta, Dacosta em Paris. Lisboa: Assírio & Alvim, 1999.
7 Ruth Rosengarten. In António Dacosta. Yes and no, in other words / não há sim sem não. Hamilton: Bermuda National Gallery, 1999.
8 O coelho foi desenhado por António Dacosta quando a sua filha Lisa estava lendo a Alice no País das Maravilhas de Lewis Carroll, o que terá motivado um trabalho que ela fez para a faculdade. Esse desenho foi integrado, juntamente com vários outros, na pasta de apontamentos sobre a futura estação de Metro do Cais do Sodré em Lisboa, tendo sido escolhido por Pedro Morais para intervenção azulejar na referida estação (um projecto de Nuno Teotónio Pereira e Pedro Botelho, inaugurado em 1998.)
9 João Pinharanda, «Cadáver (um bocado) esquisito», Público, 18 março 2000.

I

CENA ABERTA

“Cena aberta” é mais do que um nome para uma pintura, muito embora case com ela perfeitamente: é um programa e, como disse algures10, um tablado, um lugar comum para coisas acontecerem, é porta, boca de cena, caixa do ponto e ponto de partida para vermos a obra de António Dacosta. E…que encontramos lá?

“O feio, e até o horrível, foram das primeiras inspirações deste artista.”11 Estas palavras de Vitorino Nemésio são o melhor dos testemunhos sobre o aparecer da pintura de António Dacosta. Publicadas em 1942, foram escritas em contacto muito próximo com a obra e o artista, sem quaisquer intermediários ou memórias para além das raízes atlânticas e açorianas que ambos partilhavam. Muito mais tarde, num estudo sobre o Surrealismo em Portugal, falar-se-á da invenção de uma nova língua que pudesse ser coerente com “esta nova idade da crueldade”12 palavras reveladoras da cena aberta pela pintura inaugural do artista, quando pela primeira vez dá a ver o seu trabalho: uma cena, um teatro, um teatro da crueldade, um “mundo… implacável”13 numa evocação mais forte do que qualquer retrato.

“O surrealismo, se virmos bem, já é depois do modernismo”14, ele é uma “Cena Aberta” onde o teatro, o tablado e o horizonte surgem como pano de fundo para o emergir e o interagir das dramatis personae, invenção imaginária que sucede às rupturas formais do modernismo, unindo tradições simbolistas e românticas a novas necessidades expressivas e à vontade revolucionária de “por o desejo interior à altura da necessidade exterior do Universo, de provocar o fogo sagrado, de derrotar o que se teme e propiciar o que se quer.”15

Mais do que um combate visando à derrota do que se teme, as pinturas inaugurais de Dacosta são um esconjuro que traz à tona do quadro “imagens de impossíveis e inclassificáveis criaturas vindas de toda a parte e nenhures16 onde o inconsciente se reúne à ameaça das guerras: a de Espanha, que acabara mal em 1939, e a 2.ª Guerra Mundial que muito mal começara no mesmo ano, continuando a tragédia ibérica num prolongamento à escala do globo.

Cena Aberta, que é de 1940, não inaugura o estranhamento do artista perante os males do mundo misturado com as saudades da Ilha natal – outras obras o fazem –, mas assume plenamente o tablado surrealista, esse lugar comum para aconteceram coisas ou para delas se dar notícia e conhecimento, pois não ficamos a saber se as personagens são actores ou espectadores e qual o estatuto exacto dos adereços de cena. A própria cena é mais uma gruta ou uma caverna (platónica?) onde chegam ecos de um exterior que nos permanece desconhecido. Esta pintura, que é uma boa introdução à obra inicial do artista, é também uma boa síntese do seu aparecer: na ondulante convulsão das quatro figuras do primeiro plano: o cão, o menino, a menina e o pássaro que parece agredi-la; nas testemunhas espantadas bem no centro da composição, ocupando uma espécie de caixa do ponto que é um pequeno teatro dentro do teatro. A partir desse novelo inicial, e central, de figuras, afirmando uma acentuada horizontalidade, passamos para outras figuras que se erguem na vertical: a árvore oca antropomórfica que assegura um dos limites da obra, designando, com um braço incendiado, o eixo central de toda a composição, uma enigmática figura pétrea, ferida por uma seta e de olhar cego que se destaca sobre um fundo atmosférico de céu, de nuvens e de rocha vertical – esta uma abrupta montanha, um pico ou a memória dele. Mais à esquerda, situa-se uma mulher adossada a um poste de amarração, aparentemente calma e alheia ao circuito fatal que tem a seus pés, bem como aos gestos do mestre de cerimónias representado pela árvore oca, olha para fora da cena/caverna que tudo envolve. Muito provavelmente o seu espírito está algures e o seu olhar procura, e está descobrindo, uma ilha.

Esta “pintura directamente ligada ao imaginário, a qual era mesmo pintura, e não deliberada ilustração mais ou menos onírica”17, onde a consciência e o inconsciente se assumiam e acrescentavam, tinha surgido um pouco antes, em 1939, em obras tão diferentes entre si como Diálogo (1939) e O Gasogénio (1939/40).

Diálogo, na sua assumida horizontalidade, é uma pintura da convulsão entre as formas de dois cães que aparentemente se enfrentam, mas que, afinal, estão defrontando uma figura feminina situada à esquerda da composição. O ritmo dos animais traça um círculo ou anel central que se abre sobre uma paisagem de falésia interrompida para mostrar um canal com uma ilha, sempre ela, ao fundo. A convulsão central está contida por duas massas horizontais, uma estranha casa à esquerda e a já mencionada mulher à direita, enquanto uma terceira massa vertical, negra e informe, obliterando uma possível paisagem, serve de fundo a um dos cães. Estas grandes massas de convulsão e estabilidade definem uma composição que afinal é regular, escondendo dentro de si um fervilhar de pormenores ora monstruosos ora insólitos. Tudo leva a crer que a elaboração desta pintura se ficou a dever a um processo de associação livre de ideias/formas, em tudo paralelo à escrita automática surrealista, mas sem aquele toque de acabamento perfeitinho e ilusionista que caracteriza tanta pintura ligada àquele movimento, “Quem quer fazer de novo não pode fazer perfeito”18, escreverá Dacosta poucos anos depois. Porém, o que se sente na sua assumida imperfeição é uma urgência inadiável a que se junta um tumultuar de formas que pedem para entrar na sua pintura, quando não entram mesmo sem pedir licença. Os cães e a mulher são bem demonstrativos de dois diversos processos de associação. Os cães estão ambos esventrados, o que porventura se poderá ligar ao seu furor: um com um corte “limpo” de onde parece emergir um pássaro, o outro (ou a outra, pois tem mamas de mulher), deixa escorrer do abdómen uma massa informe que na sua extremidade inferior se transforma numa ventosa, como a boca de uma lampreia, de onde emerge um braço humano segurando uma maquete (?) de edifício ou templo. Enquanto as formas crescem por transformação a partir dos cães, já na mulher elas juntam-se por adição: sobre a sua mão esquerda está um barco, e, sobre o barco, um pequeno obelisco encimado por uma chama. A partir desta chama podemos continuar à procura de outras: uma árvore incendiada bem a meio da composição e longe, sobre o canal, uma outra que lembra um antigo facho de sinalização, um antepassado dos actuais faróis. Pinturas como esta não começam nem acabam nunca, são um sem fim de referências, de associações, de sobressaltos, e só podiam ter representado no seu aparecer, no Portugal de quarenta, uma surpresa total e um total estranhamento.

Aparentemente mais simples, Gasogénio19 apresenta-se-nos como uma associação de formas que partem de uma figura humana vertical e dificilmente reconhecível, essa figura está à beira de um braço de mar de onde emergem seres inomináveis e incompletos, tal como os que parecem sair da cabeça do homem, caindo em arco no seu dorso, num ritmo que forma como que uma grande letra capital que, por coincidência (?) é um enorme D. Mesmo quando esvoaçam e emitem hipotéticas asas, estes seres têm sempre algo de molusco e comunicam uma evidência marinha, de um mar fonte de vida em formação e em projecto.

Podemos entender O Usurário como outra meditação sobre a caverna, bem diferente da Cena Aberta; desta vez esse interior é, se repararmos bem, uma enorme falésia de perfil humano que vemos em corte, ocupando a metade esquerda do quadro servindo de fundo a uma figura feminina que, juntamente com uma cabeça sem corpo, que pode ser um retrato, ocupam um tablado no primeiro plano, muito embora pareçam pertencer a mundos diferentes: a mulher integra-se no espaço do dentro, uma grande cavidade bucal (?), enquanto a cabeça está isolada frente a uma paisagem de colinas, praia e mar ao fundo. Sobre o espaço vazio cruzam-se dois braços: um é uma espécie de tentáculo agarrando uma caixa, o outro nasce do nada e vem apoiar-se na cabeça da gruta. Em baixo mais braços se agitam, os da mulher com uma moeda, fazendo jus ao título da obra, e ainda um outro que vem de fora; todos agarram qualquer coisa a que chamam seu, dinheiro ou penhores vários, entretanto a cabeça, que permanece isolada, funciona como a mais forte das interrogações, numa obra onde elas não faltam e que ganha uma singular actualidade nos nossos dias.

António Dacosta é simultaneamente espectador e testemunha da Antítese da Calma. Ele está lá em auto-retrato, bem no fundo, ocupando uma caixa de ponto semelhante à da Cena Aberta. Convulsão, queda e vertigem ocupam o espaço desta pintura oscilando entre a diagonal barroca e o alongamento maneirista das formas que, provavelmente, chegou por influência directa da Guernica de Picasso.

Uma grande diagonal divide a pintura em duas zonas distintas:

– mais aberto de cor, à direita, fica o lugar da queda, ou da vertigem, onde um touro com crina de cavalo e um homem nu segurando uma granada, mergulham em direcção a uma serpente enrolada;

– mais sombrio, à esquerda, fica um corpo de mulher que se tenta erguer, vibrando como uma chama, contrariando assim o movimento geral do quadro, enquanto outra mulher, de pé, sublinha com o gesto a queda inevitável do homem e do touro. Bem no canto e no escuro, em situação paralela à da serpente, um homem espreita: é o jovem António, que se depara com o desconcerto do mundo.

Um raro poder evocativo e perturbador habita a pintura de António Dacosta realizada entre 1939 e 1942, de que estas cinco obras são uma excelente amostra, esta obra possui também uma rara coerência poética, completada pela afirmada singularidade de cada uma das pinturas e pela urgência em revelar o tumultuar do inconsciente, onde história e memória, actualidade e símbolo ancestral, se confundem. De 1942 em diante, a calma, mais que a sua antítese, irá morar na obra do pintor.

10 José Luís Porfírio. In Scène Ouverte. Paris: Centre Culturel Calouste Gulbenkian, 2007.
11 Vitorino Nemésio, «António Dacosta, pintor europeu das ilhas», Variante, n.º 1, 1942.
12 Maria de Jesus Ávila, «O surrealismo nas artes plásticas em Portugal 1934-1952». In O Surrealismo em Portugal 1934 – 1952. Lisboa e Badajoz: Museu do Chiado e MEIAC, 2001.
13 Nemésio, op. cit.
14 «António Dacosta por António Dacosta». In António Dacosta, 1995.
15 António Dacosta, «Mágica pictural ou picto-poesia de Victor Brauner» [sublinhados do autor], Diário Popular, 6 abril 1949. In Dacosta, Dacosta em Paris.
16 José Luís Porfírio, «António Dacosta. Um olhar incansável», Expresso, 5 março 1988.
17  Ibid.
18 António Dacosta, «Salão da primavera», Diário Popular, 7 abril 1945. In Dacosta, op. cit.
19 O título é uma referência aos dispositivos de aproveitamento energético da madeira, ou do carvão, comummente chamados gasogénios, para obter energia em tempo de escassez de combustíveis, como foram os anos da 2.ª Guerra Mundial.

II

CRISE MITOLÓGICA

“Eis-nos num mundo sem existência mitológica…”20

Esta afirmação de José-Augusto França, escrita já nos anos cinquenta, refere-se claramente a um efeito da guerra: “A nova guerra de 1939-1945 foi o lugar eleito da morte, da morte fatal – e o desespero e o terror que dela saíram fecharam-se sobre si próprios; cada homem se escondeu em si, e de si em nenhum espelho encontrou reflexo mitológico; nenhum desejo mais o guiou, o fez decidir-se: o seu estado tornou-se ambíguo.21 Já anos antes António Dacosta chamara “crise de consciência” a essa situação: “as gerações que atingiram a maturidade no clima efervescente que precedeu de perto a última guerra não teriam realmente esgotado o que havia a exprimir duma época que acabava e da qual restavam apenas alguns ossos descarnados, impróprios para alimentar novas fomes. [Logo] uma crise de consciência embaraça a espontaneidade das criações mais recentes”22. Dacosta falava do que bem conhecia numa obra de pintor em mutação a partir de 1942, paralela a uma obra crítica que se debruçou inicialmente sobre a pobre realidade portuguesa do miolo dos anos quarenta.

A mudança de 42 foi diferentemente interpretada mas igualmente sentida como decisiva, assim Francisco Bronze em 1969, comentando a exposição de Dacosta na Galeria Buchholz em Lisboa, lamenta que “tudo o mais realizado depois dessa data [1942] nos aparece despojado da veemência e autenticidade que marcam aqueles três breves anos (1939-1942). O acto de pintar parece ter deixado subitamente de corresponder a uma necessidade real”. Apesar disso, “jamais António Dacosta deixou de se interrogar através da pintura” muito embora o tenha feito através de uma “‘visão’ em que já nada resta da raiva ou da mágoa expressa pela sua pintura anterior”23. Muitos anos depois, já com Dacosta regressado à prática pública da pintura, Rui Mário Gonçalves assinala de um modo bem diferente a mudança de 1942, tudo sintetizando nesta curta frase: “Passou-se do estranho ao maravilhoso”24. Rui Mário podia ver claramente, em 1984, o que não existia e era considerado praticamente impossível em 1969: a continuação de uma obra.

A Festa, que mais adiante veremos noutro contexto, é o maior sinal dessa mudança em direcção a um maravilhoso açoriano, onde a memória das festas do Divino Espírito Santo tem um papel principal. É a essa situação que Dacosta, numa reacção ao ambiente lisboeta, se refere muitos anos depois: “mentalmente comecei a retirar-me para os Açores…”25. A Festa possui uma irrealidade porventura ainda maior do que os convulsivos quadros surrealistas, mas essa é uma irrealidade calma e celebrativa que, por isso mesmo, mereceu um prémio do SNI.

Duas mulheres, de 1944, faz parte de uma curta série marcada pela influência indirecta de Picasso vinda possivelmente de um modernista brasileiro, o diplomata e pintor Cícero Dias, ao tempo trabalhando em Lisboa. Apesar de indirecta, a influência de Picasso ou, de um modo geral, de um cubismo tornado numa das línguas francas do modernismo, é bem evidente nesta pintura, especialmente no tratamento da cabeça da mulher da esquerda, nessa tão típica conjunção do perfil com uma visão frontal. Difícil não será ver nesta pintura a mesma mão, expedita e urgente, do pintor, tal como nas obras anteriores, servindo agora um registo de experiência estilística, ou, mais acertadamente, um exercício de estilo que foi repetindo numa curta série de figuras semelhantes.

Neste miolo dos anos quarenta Dacosta obriga-se a ter, enquanto crítico do Diário Popular, um corpo a corpo com a arte que se vai fazendo em Lisboa; essa obrigação de ver e ajuizar, muito embora com os cuidados que a época e a censura requeriam, traz consigo um panorama desolador que se torna especialmente notável, por exemplo, na avaliação de grandes exposições como os salões da Primavera da Sociedade Nacional de Belas-Artes, assim referidos em dois anos sucessivos: “Este Salão da Primavera (…) tem aquela imobilidade dos cemitérios, onde viver, parece um acto escandaloso”26, em 1944, e no ano seguinte, “Pesa-nos esta monotonia por ela pesar ao espírito (…) Não há nervosismo neste salão como não há repentes, sobressaltos, inquietações – há satisfação. Chega a parecer absurdo que haja disto no nosso tempo, que haja quem se interrogue tão pouco a si e às coisas que o circundam, que viva na calma dos espelhos que não deformam”27. O salto para França em 1947, apesar do abismo existente entre Lisboa e Paris, não trouxe imediatamente sensíveis melhoras, pelo menos pelo que se pode ler na continuada colaboração com o “Popular”. Em 1948, o artigo já aqui citado onde António Dacosta fala de “crise de consciência”, é o principal testemunho de uma perplexidade que teria como consequência a interrupção da prática da pintura. A desconfiança em relação à “ponta do fio que através de meandros de ‘ismos’ chegou até nós, repentinamente, parece dar um nó cego.”, a dúvida sobre “uma geração às voltas com um hipotético amanhã”, seguida de uma dúvida maior: “será que se interrompeu o ritmo criador?”28

As obras de Paris que se puderam localizar são poucas mas significativas29, elas indicam uma atitude experimental nos limites da figuração. Mas se implicam a inteligência do que se está passando em França “com o deflagrar da segunda Escola de Paris e a multiplicidade infinita (e fastidiosa também) das abstracções”30, não supõem uma verdadeira adesão, continuando a ser excelentes exercícios de estilo e não era certamente tal coisa o que Dacosta pretendia.

As pinturas aqui apresentadas – quase todas exercícios de câmara de reduzidas dimensões – apontam vários caminhos possíveis: a memória da pulsão inconsciente nas cabeças de monstros que ainda sobram de uma veemência anterior, as experiências de ritmos onde quase figuras se afirmam e se esboçam em possibilidades caligráficas e o puro e lírico exercício da mão do pintor que nunca faltou a Dacosta e se torna particularmente notável nos seus trabalhos de muito pequenas dimensões.

Declarações posteriores do artista apontam para a “desilusão. Pela primeira vez [sentiu-se] desterrado”, pela “sensação que a pintura em geral já tinha chegado ao fim”31, por uma espécie de sentimento de que tinha morrido uma coisa que era preciso esperar[ para] ver o que é que acontecia…PARAR! PARAR!”32, “Era uma fonte seca!”33

Crise pessoal, crise de consciência ou crise mitológica, o certo é que a longa paragem do pintor, justamente quando emigra para um importante centro criador, gerou rapidamente o mito do pintor ausente34, que a obra final viria completar.

20 José-Augusto França, «A crise mitológica na pintura moderna». In Situação da Pintura Ocidental. Lisboa: Ática, 1958.
21 Ibid. [Sublinhado do autor]
22 António Dacosta, «A abstracção em pintura», Diário Popular, 14 julho 1948. In Dacosta, Dacosta em Paris.
23 Francisco Bronze, «Exposições», Colóquio Artes e Letras, n.º 52, fevereiro 1969.
24 Rui Mário Gonçalves, António Dacosta. Lisboa: Imprensa Nacional Casa da Moeda, 1984.
25 António Dacosta, «Os anos 40 em Portugal». In António Dacosta, 1995.
26 António Dacosta, «Salão da primavera», Diário Popular, 11 maio 1944. In Dacosta, Dacosta em Paris.
27 António Dacosta, «Salão da primavera inaugurou-se hoje na S. N. de Belas-Artes», Diário Popular, 7 abril 1945. In Dacosta, op. cit.
28 António Dacosta, «A abstracção em pintura», Diário Popular, 14 julho 1948. In Dacosta, op. cit.
29 Está infelizmente ainda por localizar uma das duas obras que enviou de Paris destinadas à exposição surrealista de 1949.
30 Porfírio, «António Dacosta. Um olhar incansável».
31 António Dacosta, «Paris pausa na pintura». In António Dacosta, 1995.
32 Conceição Tavares, reportagem da exposição António Dacosta, Açores 1995, Homenagem dos Açores a António Dacosta. Inclui entrevista de 1987. RTP Açores, 1995.
33 António de Sousa, «António Dacosta. A pintura no espaço do sagrado», Diário de Notícias, 13 março 1988.
34 Maria Helena de Freitas, «A Escrita do pintor “ausente”», Expresso, 5 março 1988.

III

SUL

O Sal, o Sol, o Sul.”35

“Será que o português só descobre quando se distancia?”36

“Um Chirico, um Picasso, um Chagall, um Duchamp, são pintores da escola de Paris; mas é sobretudo a fonte de origem, o complexo que os liga ao solo, ao elemento onde nasceram, que caracteriza o estilo particular da sua pintura. Para a moda é possível que a geografia humana não conte, mas para a arte é um ingrediente essencial.”37

Pintura Fresca é um minúsculo quadrinho de 1977 onde, para além do esplendor de três frutos, frescos já se vê, se inscrevem palavras, as que dão o título à pintura, e um nome, ANTÓNIO, bem destacado. Estamos perante um pequeno cartaz, ou um manifesto visual que implica aquela “comunhão com as coisas” que Dacosta pede ao afirmar “Quero o Sol, quero a luz, procuro aquilo que me dá a sensação de que estou vivo.”38 O “encanto suave de viver”39 e mais fundo, “ o acto desprevenido de viver”, feito de “puro prazer de ver”40, que o artista tão bem conhecia e avaliava na obra alheia, fazem parte integrante de uma virgindade reconquistada do olhar e do gesto que prolonga esse olhar numa pintura que volta a crescer como necessidade, suscitando “em nós aquele encanto que se sente quando, numa intuição súbita, surpreendemos na face oculta das coisas a expressão do que significam para além do que nelas é nu, patente e sem mistério”41.

Uma pintura sem nome de 1980 marcou a reaparição pública de António nesse mesmo ano42. “Poucas alegrias maiores tive na minha vida do que aquela que o quadro me deu”43. Esta alegria de um velho amigo, José-Augusto França, é o certo sinal da importância desta pintura, marcando o ultrapassar uma fronteira de longo silêncio e discrição; o próprio quadro se apresenta como um signo ascensional que procura romper barreiras, como uma bandeira triangular a erguer-se, ou como memória anunciando bandeiras e memórias futuras.

A memória que mora na pintura de Dacosta tem que ver com um afastamento físico “da fonte de origem” já referida, afastamento que, se existe em Paris, não menos existia em Lisboa, manifestando-se na obra inicial por vezes apenas em pormenores, como a presença do mar. Porém, há casos em que essa memória e essa distância é central. Serenata Açoriana, de 1940, tem sido desde há muito pertinentemente referida como uma reinterpretação do par inicial Adão e Eva em situação de evidente angústia depois do pecado original. Se repararmos na sua composição, ela funciona como um arco ou uma mandorla construída pelos corpos nus de Adão e Eva e por um fragmento arquitectónico, tudo isso cercando uma pequena figura central feminina que parece terminar a travessia de um braço de mar enquanto olha para cima, porventura trazendo notícias do paraíso perdido ao casal abandonado na praia. Da mesma década, provavelmente de 1942, ano de aquietação da obra e, por isso mesmo, de serena figuração, Menina da Bicicleta encena o tempo enquanto espaço: há, também, um ovóide central por onde espreitamos um outro espaço e, possivelmente, um outro tempo, onde uma figura feminina passeia de bicicleta à beira mar. O óculo tem uma vaga forma de cabeça à qual não faltam dois olhos, numa pintura que tem um evidente sabor a colagem figurativa, onde o que se passa “dentro” da cabeça pode ser a memória, sobrando para o primeiro plano um às de copas cortado, quero dizer, um coração ferido.

Se a partir de Lisboa, António podia estar “comovido a oeste”44, como o seu patrício Vitorino Nemésio, já “do ponto de vista que lhe dá a França, começa a pensar em Portugal como, em Portugal, pensava nos Açores”45. Portugal, onde o Mediterrâneo e o Atlântico confluem culturalmente, é um lugar que a partir de Paris fica a Sul – é o Sul.

A ILHA

“Atingiu-se com o informal o momento extremo da crise semântica, um ponto de tensão máxima, para além do qual era preciso encontrar depois do caos, o cosmos – mas um novo cosmos exigindo novas relações e até uma nova aproximação”46

Quase dez anos depois de José-Augusto França ter feito esta afirmação, Dacosta encontra uma saída do caos para o cosmos, descobrindo na figura da Ilha aquilo que podemos designar como uma forma para o informe. As quatro Paisagens da Terceira que pintou em 1975 e ofereceu ao seu filho mais velho, Carlos, então com seis anos, marcam uma fronteira, um regresso e um recomeço. O pintor e crítico que não gostava “daquela coisa encantadora e horrível a que convencionara chamar a ‘alma’ da paisagem”47 e da sua “vaguidão (…) que, no fundo, apetece sempre destruir”48 não se rende às delícias do naturalismo assumindo “ um olhar interior, que passa (…) pela geografia da ilha, pelo mar, pelo seu silêncio imemorial e os seus românticos acessos de raiva (gestuais demais para mim), e que passa também pela frustração, por um défice de sentido que parece isolar estas coisas num tempo e num espaço enigmáticos”49. Desses trabalhos do recomeço dizia Dacosta: “não acho que sejam rigorosamente abstractos no sentido clássico, ortodoxo, iconoclasta da palavra”50; eles eram, aliás, dissimuladamente icónicos, não só as vistas da Terceira já referidas, mas até alguma rara pintura anterior e muita da que se lhes seguiu em setenta e oitenta. Assim, muitas das obras realizadas a partir da década de setenta podem-se ler não só como trabalhos isolados e ricos de significado, como em grupos ou em séries, onde semelhanças e diferenças, formais e imaginárias, mutuamente se acrescentam e reforçam em conjuntos significativos que em muitos casos integram perfeitamente obras de datas anteriores, como veremos51.

Os quatro leques ou meios tondos da Terceira representam física e simbolicamente essa fronteira da forma com o informe; a Terceira é o que menos se vê em horizontais que podem ser ainda terra, ou mar, ou céu, e verticais, ajudadas pela forma semicircular dos suportes. A partir delas surgiram títulos intencionais como Paisagem Açoriana ainda em 1977, e depois, durante toda a década seguinte, só Açoriana sem obrigação de paisagem, onde o vago da memória flutua entre mar e céu, onde as manchas ou os borrões acabam por assumir, num surgir quase automático, a forma de uma ilha.

Os 4 Elementos

Ilha, ou ilhas, pedra flutuante num espaço, recorte, colagem, mancha, memória deliberada? Não parece! Antes acontecimento, re/conhecimento, primeiro da mão e depois do gesto e do espírito do pintor”52, e esse reconhecimento reconduz “o homem (…) a um sentido de comunhão com as coisas (…) implica uma vontade de agir por métodos que excluem qualquer género de racionalismo”53.  Encontrar a ilha no automático da mão, ou na vontade do espírito, é sempre o sublinhar de uma fronteira ou de uma confluência, não só entre a terra e a água, mas entre os 4 elementos que poeticamente constituem o mundo. Aí, nessa confluência, temos ilhas para todos os gostos: o domínio das águas baixas e lisas sob uma única nuvem (Ilha, 1979/80), o ar onde voam gaivotas ou alciões (Ilha, 1980), a terra ou rocha emergente (Ilha, 1982/3) e inevitavelmente os vulcões (Vulcões, 1979). Cada uma destas pinturas se pode apresentar como portal de entrada para uma diferente evocação dos quatro elementos.

 

Água

Estamos num elemento feminino onde a Sereia e a Mulher dominam. Olhando a Sereia de 1983 depara-se-nos a tarefa impossível de separar totalmente os quatro elementos, pois eles são a própria matéria imaginária da pintura. No entanto, mesmo fora de água e sob um sol tão violento que os seus raios são vermelhos, a sereia antecipa o mergulho, tal como o fazem três meninas desta vez nas águas do rio enquanto outra criatura feminina mergulha mesmo. Estas pinturas veiculam a imagem directa de um simples prazer dos sentidos que se torna mais complexo no interior das águas; esse interior conduz-nos à vertigem da espiral ou ao inquietante Canto das Moreias, que é um lugar de contaminação entre o humano e o quase humano, o animal e o vegetal; a frescura do banho transforma-se em vertigem, e esta em inquietação.

Ar

Como se mostra o que não se vê? Esta pergunta pode parecer pertinente, porém não estamos perante uma arte ilustrativa, os elementos acontecem… porque sim! Isto é, por uma coincidência entre a mão do pintor e a sua e a nossa imaginação, num aparecer que tem sempre algo de surreal, mesmo quando são as mais simples coisas que nos aparecem, como uma palavra sob uma estrela, ou formas que se lêem como nuvens , ou um anjo cruzando na diagonal um pequeno tondo, ou a figura branca de uma ave – a Pomba (o vento impetuoso) – sobre o abismo, tal como o Espírito sobre as águas.

Terra

Um pequeno trabalho de um António de 14 anos, uma falésia imponente crescendo sobre o mar, serve para mostrar a mão do pretendente a artista quando das suas tentativas iniciais. Já Terra, um pequeno tondo, provavelmente dos inícios de oitenta, é uma peça em que é óbvia a associação entre a matéria de pintura e a terra enquanto matéria. Da matéria podemos passar ao horizonte numa dimensão simultaneamente cósmica e divertida em três quadrinhos de bem cuidada pintura que quase se poderiam organizar em tríptico, onde encontramos no limite do horizonte uma Vaquinha, um folião que regressa da festa com o seu bombo e um homem e uma bola, numa figuração coincidente com o mito de Sísifo54, duas situações do quotidiano e um pequeno enigma.

Era o vinho de 1983 é, na sua organização espacial, um tríptico celebrativo da terra e dos seus frutos fermentados, numa imagem de tranquilo paganismo com um bebedor dançarino ladeado por cachos de uvas que parecem dançar também.

Fogo

Para além da evidência dos vulcões e da sua evocação, o fogo é sol e este sol está presente numa Évora romana, rememorada na espessura física material da luz, na presença das moscas (Está calor em Évora, 1983), na magnificência de um branco que tudo invade, a cal dos muros e a veste da mulher, onde até as moscas se transformam num animal brilhante e solar ainda mais brilhante que o trigo na mão da mulher (Uma romana em Évora,1984).A presença romana neste sul de calor intenso traz consigo a presença do mito: As três opiniões do Mestre Ferreiro (1984) com Vulcano, discreto no brilho da sua forja, Vénus no esplendor da sua escura nudez e a sugestão da grelha ou da rede que vai colher Vénus e o seu amante Marte; Chuva de Oiro (1984) aponta a história de Dánae que Júpiter fecundou sob forma da luz, ou do oiro caindo sobre o corpo nu da mulher, aqui com um macaco servindo de ajudante ou acólito tomando o lugar da criada velha que aparece pelo menos em duas versões que Ticiano pintou do mesmo tema.

35 Alexandre O’Neil, Freira Cabisbaixa. Lisboa: Ulisseia, 1965.
36 António Dacosta, «Exposições de José Calvados e Benvindo Ceia. Breves reflexões sobre paisagens e paisagistas», Diário Popular, 27 janeiro 1943. In Dacosta, Dacosta em Paris.
37 António Dacosta, «A jovem pintura inglesa», Diário Popular, 11 junho 1947. In Dacosta, op. cit.
38 Avillez, «António Dacosta. O regresso à pintura 35 anos depois».
39 António Dacosta, «Retrospectiva dos “fauves”», Diário Popular, 7 maio 1947. In Dacosta, op. cit.
40 António Dacosta, «Bonnard, pintor de uma felicidade perdida», Diário Popular, 11 novembro 1947. In Dacosta, op. cit.
41 António Dacosta, «Uma pintura de invenção poética», O Estado de São Paulo, 3 agosto 1958. In Dacosta, op. cit.
42 Na exposição de apoio à candidatura de Ramalho Eanes à Presidência da República a pedido de José-Augusto França.
43 José-Augusto França, «Dacosta, Vespeira, Vespeira, Dacosta», Diário de Lisboa (folhetim 394), 13 julho 1983. In Quinhentos Folhetins, Volume 2. Lisboa: Imprensa Nacional Casa da Moeda, 1993.
44 Vitorino Nemésio publicou em 1940 um livro de poesia intitulado Eu comovido a Oeste.
45 Rosengarten, «António Dacosta. Yes and no, in other words / não há sim sem não».
46 José-Augusto França, «Do gesto ao signo». In Oito Ensaios sobre Arte Contemporânea. Lisboa: Publicações Europa-América, 1967 [sublinhado do autor].
47 António Dacosta, «Falcão trigoso», Diário Popular, 5 março 1944. In Dacosta, op. cit.
48 António Dacosta, «Américo Dinis na Casa das Beiras», Diário Popular, 23 janeiro 1946. In Dacosta, op. cit.
49 António Dacosta, «Os Açores, o sagrado e o profano». In António Dacosta, 1995.
50 Declarações do pintor no filme António Dacosta – Pintor Europeu das Ilhas (1984), de Tereza Martha (produção e realização), realizado com apoio da Fundação Calouste Gulbenkian.
51 A principal dificuldade dessa integração está na relativa raridade das obras de 30 e 40 e na pujante produção da última década do autor.
52 José Luís Porfírio, «Um menino de olhar sábio», Expresso, 25 junho 1983.
53 António Dacosta, «Mágica pictural ou picto-poesia de Victor Brauner», Diário Popular, 6 abril 1949. In Dacosta, op. cit.
54 Sísifo, astuto rei da Tessália que, por várias vezes, enganou os deuses e a própria morte foi condenado a repetir um mesmo esforço por toda a eternidade: empurrar uma pedra por uma encosta acima.

Mulheres

A figura feminina está sempre presente na obra de António Dacosta, tanto na convulsão surrealista como na calma que se lhe segue imediatamente, e depois, a sul, ela torna-se aquática, podendo assumir a forma ambígua da sereia, e com o calor do Sol pode mesmo passar a deusa. Outras mulheres há também a sul, sempre na fronteira entre o mito, a alegoria e o quotidiano, que definem um tipo e são uma constante; elas aparecem muito cedo (1941-1942) com duas Meninas em arranjos de penteado e duas outras figuras incluindo um nu junto a uma fonte em situação de projecto alegórico. Uma cena amorosa da mesma época funde os dois registos, o quotidiano dos anos quarenta da mulher sentada à mesa com seu candeeiro de petróleo aceso, beijada real ou imaginariamente, por uma figura que provem de outro universo, um romano, um guerreiro com seu capacete55.

O Retrato de Miriam de 1965, realizado bem no miolo do período de suspensão quase total da sua pintura, marca o encontro com a mulher com quem viria a casar, a mãe dos seus filhos, que seria a sua companheira até ao fim da sua vida; este retrato circunstancial, íntimo e necessário, preanuncia os “rostos e figuras sem nome da vasta produção dos anos oitenta como a Religieuse Portugaise (1985) e, muito especialmente, a maternidade de 1984, à qual deu um título bem significativo: Imagem Perdida, cruzando a paternidade com a infância”56. Os vinte anos que separam estas pinturas parecem afirmar, tal como António, que o tempo não existe embora a saudade do tempo passado seja uma clara realidade na Imagem Perdida, tal como a Religiosa é uma imagem da separação.

Entre o geral e o particular, entre o trivial e o simbólico, tem um lugar especial Adivinha Deolinda de 1984 que nos apresenta “outro cruzamento entre o sagrado mágico e o real quotidiano com a festa ao fundo na figura de uma Menina da Bandeira. Ela sabia tudo sem nunca ter aprendido nada. O seu nome era Deolinda.’ Este aforismo que António Dacosta nos deixou remete-nos para a mesma figura de sibila, ou de pitonisa popular, muito embora a cena evocada na pintura possa ser a da mais trivial adivinhação: verificar se a galinha tinha ovo pronto para ser posto no dia seguinte! Deolinda é, por certo, uma mulher de trabalho, longamente preparando as festas onde se diverte com a alegria dos outros, bem assente na terra mas apontando o céu. Dir-se-ia que a sabedoria de Deolinda é a do próprio pintor que ao representá-la assume, com simpática ironia, a sua herança”57. A Menina da Bandeira não é apenas um pormenor, é um tema central que até parece ter emigrado da Deolinda, não fora a completa alteração e esfriamento da cor; no entanto, a menina tem o mesmo modo de casar a forma feminina com a da bandeira em evocação de festa e desfile, transformando-se num emblema de memória açoriana.

BICHIÁRIO

 

Sem culpa e esquecimento é a criança, é um novo começo, um Jogo, uma roda que rola por si mesma, um primeiro movimento, um dizer Sim sagrado.58

Bicho Bichial / onde fica o Faial”59

“Digo Bichiário e não bestiário porque de bichos se trata – um é mesmo o Bicho Bichial (1982) e os outros não são bestas-feras e tão-pouco são animais. A linguagem e a visão são a do menino”60 que descobre o encantamento do mundo como uma evidência para aquém, para além das palavras a não ser que as diga num “eu quero” perante a maravilha que é o desejo a realizar-se num pato amarelo como um Sol. Na exposição de 1983 (Galeria 111) é isso mesmo que acontece. António não é mais um dos muitos jovens pintores que apareciam como cogumelos nesse início de década, António não é jovem, está à porta dos setenta anos, mas António é um menino recriado, reinventado, e consegue comunicar-nos toda a surpresa contida na infância juntamente com o poder do desejo de antes da origem do pecado: é aí mesmo que “o desejo se encontra com a alegria”61.

“Uma coisa açoriana também Bicho Bichial para que lado fica o Faial é uma reminiscência de menino ou coisa assim. Com aquela palavra Ollux que figura na Horta no cais da Horta onde amarram os barcos solitários”62. Nestas declarações de 1984, Dacosta revela um pouco da montagem que presidiu à realização da pintura: uma cantilena infantil conhecida desde sempre, a memória do cais da Horta, no Faial, e de uma das suas inscrições, OLLUX entendida já num outro registo cultural, por Bernardo Pinto de Almeida como um apelo ao sol, a Osíris63. A cantilena infantil mergulha-nos no remoinho das profundidades onde se enrola e de onde provem a cauda do bicho, essa espiral que o faz erguer-se sob uma ilha-memória triangular, enquanto outro pequeno remoinho, uma cobra se enrola sobre si mesma, tal e qual a memória no seu trabalho de invenção.

“Pinta-se o que se quer ter”64, escreveu Dacosta em 1943. Num contexto bem diferente, quarenta anos depois afirma: “Eu quero este pato (…) bom é, é uma coisa um pouco estranha mas é como os meninos que desenham aquilo que desejam ter. Como os primitivos. E uma espécie de desejo que se manifestou assim espontaneamente e não sei exactamente porquê”65. Tal constância, separada por tantos anos, é a do próprio gesto desejante e criativo. Os bichos surgem como evidências, tal como o pato, ou o rato Mickey na cabeça de um brinquedo ocupando uma paleta, i.e. o território do pintor, ou o coelho de 1986, emergindo da sombra e sob um sol negro. Já as cobras e outras formas mais ou menos enoveladas onde o vegetal e animal não têm fronteira certa, participam daquele ritmo em espiral que é a fonte originária de onde brotam as formas pelo menos desde o Gasogénio de 1940, elas são sobretudo formas de um puro emergir a partir de um magma original e inconsciente.

De sinal contrário, mais bestiário que Bichiário, são as pinturas da série Tentações de Santo António66. Aí as cobras cornudas (Tentações I e II) têm outra intencionalidade, mas continuam a ser formas em transformação, num regresso ao indistinto ou ao inominável (Tentação IV) que nos vai introduzindo à obra final do artista.

“Que a alegria seja com ele.” 67

O Sul imaginário de António é um lugar alegre e cheio, lugar da “plenitude do desejo resolvido e apaziguado, quieto como a vida que está presente nas naturezas mortas, a calma sem antíteses, a volúpia sem convulsão, um luxo solar e amarelo como os limões e a praia deles”68, lugar onde “Se nos depara o amarelo dos limões;/e o gelo do coração se desfaz,/e ao peito afluem/as suas canções/as trombetas de ouro da solaridade”69. Dois Limões em Férias (1983) provém por certo daquele lugar do “tempo em que havia uma unidade perfeita entre aquilo que o pintor queria dizer e o próprio quadro”70, tudo encontramos naquela presença fortíssima, todos os quatro elementos, a figura da mulher e o bicho, desta vez sob a forma sonora da língua da sogra, pairando como um sol, enquanto o verdadeiro sol mora nos dois limões gémeos como os seios da Imagem perdida agora reencontrada.As figuras são apenas o veículo desse desejo de estar vivo no mundo; um desejo que a pintura revela, descobre e, de certo modo, comanda”71 e assim o mundo todo pode morar dentro de uma pintura, desta pintura. Pós de Perlimpimpim (1983)“ isto parece aparecer assim por artes mágicas não é, faz-se, a imagem faz-se quase por si mesma”72; à plenitude sucede a transformação como que por artes mágicas, num díptico que junta a Mulher e o Bicho que ela vai transformar em homem, animado pela espiral do desejo que se ergue como uma cobra benfazeja e festiva (a língua da sogra); tudo aconteceu porque sim e desta vez os pós mágicos ditos de Perlimpimpim não são um embuste, eles manifestam o poder de invenção, de transformação e de liberdade que o Surrealismo reclamara e que António exaltantemente cumpre.

55 A menos que se trate de um bombeiro, o que teria tudo que ver com uma brincadeira de António Dacosta.
56 José Luís Porfírio, «Os rostos de António». In O Rosto na Obra de António Dacosta. Angra do Heroísmo: Museu de Angra do Heroísmo, 1997.
57 Porfírio, Scène Ouverte.
58 Friedrich Nietzsche, Also Sprach Zarathustra. Tradução livre do autor a partir do texto bilingue da edição Aubier Montaigne, Paris, 1962.
59 Luís da Silva Ribeiro, Rimas infantis, Boletim do Instituto Histórico da Ilha Terceira, vol. II, (2) 1944, pp. 263-275.
60 Porfírio, «António Dacosta. Um olhar incansável».
61 Maria Helena de Freitas, «António Dacosta. Notícias do paraíso». In António Dacosta. Lisboa: CAM – Fundação Calouste Gulbenkian, 1988.
62 Declarações do pintor no filme António Dacosta – Pintor Europeu das Ilhas (1984).
63 Bernardo Pinto de Almeida, «As sublimes súplicas». In António Dacosta, 1988 (policopiado).
64 António Dacosta, «Manuel Bentes. Exposição no estúdio do S P N», Diário Popular, 15 abril 1943. In Dacosta, Dacosta em Paris.
65 Declarações do pintor no filme António Dacosta – Pintor Europeu das Ilhas (1984) [sublinhado do autor].
66 Trata-se de Santo António Abade (251 – 356) que em Portugal designamos pelo mais antigo nome de Santo Antão.
67 António Dacosta, «Um “salão” de pintura em Paris», Diário Popular, 16 agosto 1950. In Dacosta, op. cit.
68 Porfírio, Scène Ouverte.
69 Eugenio Montale, Poesia. Lisboa: Assírio e Alvim, 2004 [sublinhado do autor].
70 Bernardo Pinto de Almeida, «À conversa com António Dacosta», O Primeiro de Janeiro (suplemento «Das Artes e das Letras»), 25 maio 1988. In António Dacosta “O Trabalho das Nossas Mãos”. Vila Nova de Famalicão: Fundação Cupertino de Miranda, 1999.
71 Declarações do pintor no filme António Dacosta – Pintor Europeu das Ilhas (1984) [sublinhado do autor].
72 Id. [sublinhado do autor].

IV

SÉRIES

O trabalho serial é uma das marcas do pleno reatar de António Dacosta com a pintura. Cada série apresenta um tema que se vai simplificando formalmente, ou já parte de uma situação formalmente simples, a ponto de poder ser imediatamente reconhecida enquanto tal, tanto nas pinturas acabadas, como nos numerosos apontamentos desenhados um pouco por toda a parte, rabiscados por vezes em suportes de ocasião73; onde duas bengalas paralelas são uma Fonte, o triângulo é a Memória, a Cruz e o Tau são por si só sinais gráficos. “Dois temas, o TAU e as assinaturas, fazem parte dos temas que fervilham quando a morte o surpreendeu”74; Miriam Dacosta distingue deste modo as séries, por assim dizer, inaugurais, que anunciam e acompanham o regresso de António à pintura, daquelas que surgem mais tarde e que devemos considerar trabalhos interrompidos por não terem atingido um pleno desenvolvimento.

Fontes

Fontes de Sintra I (Saudades deste sítio) de 1980 marca, mesmo no começo da década do reaparecimento do pintor, o ponto de partida para uma longa série que se desenvolve até 1987. A sua imagem inicial é “festiva, vital, ejaculatória até, de ‘metáfora amorosa’ no dizer do próprio artista”75 e, sempre, de “reencontrar a simplicidade das coisas … tudo aquilo que é quinhão dos deuses e é tão difícil de traduzir como difícil é traduzir o cantar das fontes e se chama beleza – tudo isso é a parte de prazer que se não rouba com palavras. E é essa parte – que nos afecta involuntariamente como um sono doce da razão76. Assim a memória de um jardim e da frescura da água pode transformar-se nesse outro jardim que é um tapete (de oração?) na Fonte de Sintra VI (1982), ou na ancestral imagem dos animais – o carnívoro e o herbívoro afrontados na Fonte de Sintra VII (1982) –, ou combinar o cantar da fonte com o dos pássaros. Esta série transporta-se e transforma-se no tempo, a sua gravidade vai-se acentuando e a cor fecha-se “em adensadas penumbras, permanecem sempre, como marca identificadora do conjunto, os dois jactos de água, como duas bengalas paralelas, vestígio do múltiplo jacto inicial.”77 A memória assume os sinais da história com a evocação de Camões e uma fonte que é apenas sinal gráfico (78): a Fonte contra forma negra (c. 1985) nasce confrontada com a forma negra de um zigurate ou ainda num ambiente nocturno e sombrio, deixando a lua reflectir-se sobre as suas águas derramadas num crescente de melancolia.

Memórias

“Dacosta, que tudo esquece, é um homem carregado de memória.”78 (5)

“Quando recomeçou a pintar (…) Dacosta realizou pinturas de figuração indefinida, até que uma figura se tornou insistente, em forma de pirâmide. Era uma recordação involuntária da infância. Concentrou-se nessa figura, preenchendo com ela toda a tela (…) Em Dacosta, esse triângulo, tão integralmente assumido, constituiu um signo que precedeu o seu significado. O triângulo, surgido da actividade pictural abstracta, revelou-se finalmente como um vestígio da recordação incontrolada de um monumento, ‘Memória de D. Pedro IV’ que existe na ilha Terceira, e que Dacosta via todos os dias quando era criança, pois morava perto.”79

Isolamos a série num quase tríptico com obras de iguais dimensões onde o triângulo se repete, mas onde a forma e a cor mudam e o triângulo passa a ser a morada de diferentes informações: uma estrutura esguia e ascensional (Memória, 1980), os verdes naturais numa forma que se vai misturando com o espaço ou o suporte (Memória, 1982), ou as cores da terra confrontadas com o azul do céu (Memória, 1982/3).O ritmo sempre ascensional destas memórias, bem como a sua forma, presta-se a contaminações várias, imediatamente com a pirâmide, e com a ilha também, quando esta não é mais que uma pirâmide ou um triângulo erguido sobre as águas. Esta exigência ascensional mora também na forma já nossa conhecida da língua de sogra em desenhos dominados pela verticalidade. Num deles, a inscrição “monumento à liberdade” vem iluminar retrospectivamente a iconografia libertadora desse brinquedo sempre que ela aparece na obra do pintor.

Esta contaminação vertical pode estender-se a um pequeno projecto tridimensional (Projecto para um Monumento, s/d) e a uma particular pintura e colagem sobre papel que se pode ler como um gigantesco i, em que a pinta do i é a forma informe de uma ilha.

A Cruz e o Tau

O Senhor disse-lhe: “Vai pela cidade, atravessa Jerusalém e marca [um tau] na fronte dos homens que gemem e se lamentam por causa das abominações que nela se praticam.” Ezequiel 9:480

“Plenamente assumida e realizada a vontade de síntese exprime-se numa outra série, final na obra de António Dacosta, a série do Tau, de 1989-90, evocação dessa letra grega associada a Santo Antão (também conhecido por Santo António Abade), onde convergem a nossa postura de animal erguido sobre as patas traseiras com as direcções fundamentais do espaço que, por outra ordem, já encontramos na Ilha: a verticalidade da rocha e a horizontalidade do mar. O Tau pode assumir várias formas; a cruz, a barra vertical, ou mesmo o quadrado, mas é, sempre, um condensado do lugar e do momento, é o ponto final numa Passagem.”81 Interrogado sobre o significado das cruzes como elemento de morte, Dacosta não fugiu à questão: “São e não são. É preciso ver que há uma ironia nisso. Eu jogo com a morte ironicamente, até com a minha. Vamos devagar… A cruz, antes de mais nada, é uma coisa fundamental como forma”82 sublinhando implicitamente a condensação no espaço que ela contém, tal e qual como o Tau que é apenas uma variação sobre a sua forma, o exemplo supremo da união dos opostos que condensa o tempo e o espaço numa só figura.

Um desenho de 1942 mostra-nos o que se pode interpretar como uma primeira versão do Tau na espécie de cruz alada que se ergue sob um pequeno montículo, um gólgota onde se distinguem crânios, enquanto em primeiro plano um nu reclinado apresenta uma possível oferenda. Neste desenho, o que resta de uma iconografia cristã, bem reconhecível, é invadido por uma enorme estranheza que contrasta com a aparente serenidade da figura deitada em primeiro plano. Mas aquele poste alado é já uma cruz que não só define o espaço, como poderá eventualmente voar através dele. Muitos anos depois, um cálice colocado ao centro de uma mesa de jogo (Conduz ao Verde, 1985) é também uma possível prefiguração do Tau que vai invadir obsessivamente a obra final de António. Isolado e centrado, reforçando assim a sua dimensão de totalidade, aos pares, em grupos, o Tau é uma constante e marca uma obra interrompida. Por isso mesmo, juntamos aqui um trabalho por acabar, onde os Taus pairam junto a uma escada, e um projecto, desenhado provavelmente depois da viagem que Dacosta efectuou a Colmar, já em 1990, para ver o retábulo de Isenheim de Matthias Grünewald, e onde, à sombra de um grande Tau, aparecem os porcos ligados à iconografia e ao culto de Santo Antão. As obras incompletas e os projectos por concluir apresentam-nos um Dacosta interrogando continuamente e, até ao fim, as fontes imaginárias do seu fazer.

 

Assinaturas

“Essa marca de autor fascina-o não apenas pela sua força gráfica, mas também por ser uma denotação de presença: o ‘Eu estive aqui’ o ‘Eu vivi’, o memento mori subjacente a todos os graffiti bem com o qualquer simples assinatura”83

Dir-se-ia que para além do “exorcismo da morte”84, da plenitude e alegria solar dos recomeços da primeira metade de oitenta, sucede um outro tipo de exorcismo pelo fingimento. Estes ensaios de assinaturas que se iniciam com o nome ilustre e mítico da pintura portuguesa, Nuno Gonçalves, são também simulações de uma escrita que se desagrega ao ponto de se tornar cada vez menos legível, ou então do desgaste que a distância do tempo exerceu sobre os nomes dos pintores, quase a ponto de desaparecerem. Trata-se em qualquer dos casos de uma escrita que assume o seu próprio sumir, a ponto de se tornar ela própria numa escrita do desaparecimento, do nome, da memória, do autor . Esta situação ficou ainda mais reforçada pela interrupção definitiva que a morte de António Dacosta provocou.

73 Apresentados juntamente com outra documentação nesta mostra.
74 Miriam Rewald Dacosta, «Do outro lado do espelho». In António Dacosta “O Trabalho das Nossas Mãos”.
75 Avillez, «António Dacosta. O regresso à pintura 35 anos depois».
76 António Dacosta, «Juan Cabanas. Exposição no estúdio do S P N», Diário Popular, 29 novembro 1943 [sublinhado do autor]. In Dacosta, Dacosta em Paris.
77 Porfírio, Scène Ouverte.
78 Júlio Pomar, «Santo António dos portugueses». In António Dacosta, 1988.
79 Rui Mário Gonçalves, «Vontade de mudança». In Cinco Décadas de Artes Plásticas. Colecção Universitária. Lisboa: Caminho, 2004.
80 Embora habitualmente se refira uma Cruz, uma tradução literal deveria dizer “marca um Tau” que é a última letra do alfabeto hebraico.
81 Porfírio, op. cit.
82 Sousa, «António Dacosta. A pintura no espaço do sagrado».
83 Rosengarten, «António Dacosta. Yes and no, in other words / não há sim sem não».
84 Avillez, op. cit.

ALFA e ÓMEGA

 

O meu fim é o meu começo
e o meu começo o meu fim”85

“To make an end is to make a beginning”86

“O Desejo, essa preocupação central do Surrealismo, paira sobre um Presente impossível; é projectado para a frente e para trás, num ir e vir incessante entre o passado que se recorda e o futuro que se projecta.”87

A obra de António Dacosta, sobretudo a partir da exposição de 1988 na Fundação Calouste Gulbenkian88, começou a ser entendida no seu conjunto como “um idêntico processo criativo sem hiatos definidos”89; por vezes são obras singulares como a Tesoura de 1984 e o Passarinheiro de 1937, que são lidas “ a cinquenta anos de distância, [como] fragmentos de um mesmo e único quadro”, isto porque “o que é questão, sempre, é de abolir o tempo histórico, sugerir o tempo mítico, sonhar a eternidade”90. “Podemos assim esquecer o tempo, ele que é sempre lembrado, porque está dominado por dentro; encontramo-nos num lugar em que a alegria do ser aquieta as incertezas do existir”91. Uma primeira visão de conjunto sobrepunha-se ao espanto maravilhado do regresso, abrindo-se a leitura da obra às aproximações e atalhos que nos levaram à consideração da sua unidade poética. O conhecimento crescente da sua obra final e a subsequente comparação entre a convulsão dos inícios de quarenta e a melancolia crescente na obra da segunda metade de oitenta, só vieram confirmar tal unidade como soma de uma pequena multidão de experiências, muitas das quais o artista não teve tempo de concluir.

Rui Mário Gonçalves evidencia uma idêntica e diferente imagem da morte, fazendo a ponte entre a juventude e a velhice do pintor. “Na primeira fase, juvenil, a morte era mostrada como resultante das violências, fossem estas das guerras ou do sadismo nas relações humanas. Na última fase, depois da euforia, emergem as cinzas, a morte natural da velhice, em cores sombrias”92; não se trata, creio, de morte natural, mas de um crescente de melancolia no interior da obra, que não a trava, antes a exalta em continuidade e aprofundamento. Não há no trabalho de António Dacosta dos anos oitenta um corte abrupto como aquele que sucedeu em 1942, quando uma calma, real ou aparente, acontece na sua obra, sossegando a inquietação anterior.

Em louvor de…

Há uma estética no desfile dos bezerros enfeitados com flores e fitas coloridas, ao som do Pezinho e das cantigas dos improvisadores, a caminho do sacrifício ritual.93

“Nesse hino ‘O beata Trinitas’ canta-se: ‘Brilha ao nascer o luzeiro da manhã’: luz matinal que percorre os ‘Em Louvor de’ (1985) de António Dacosta. Que ilumina os esquálidos crânios dos animais sacrificados, semelhantes a pálidas Vanitas.94

A Festa, de 1942 “é o primeiro quadro maravilhoso de António Dacosta, depois de ter atravessado o expressionismo e o surrealismo na angústia e no desespero”95. Esta sintética afirmação de Rui Mário Gonçalves define, com justeza, a inflexão brusca que acontece na obra de Dacosta; valendo-lhe aliás um prémio do Secretariado da Propaganda Nacional pela entrada na calma depois da efervescência dos primeiros trabalhos. Tal ponto de vista é sem dúvida acertado, porém, quando olhada não por si só, ou só no seu tempo, mas como parte da totalidade de uma obra, A Festa ganha contornos novos; Júlio Pomar, numa belíssima evocação do seu amigo António uma semana depois da sua morte, vê A Festa de outra maneira e descreve assim o que lá se encontrava e ninguém vira ainda “…sentado no chão, um ‘putto’ maneirista parece mostrar ou comentar a cena, apontando com um pequeno ceptro o alto da fronte do animal – lá onde o golpe mortal será desferido. Uma serena melancolia tolda a luz do quadro – outra alusão premonitória à consumação do ritual?”96. Mais tarde, um poeta, João Miguel Fernandes Jorge, vê o que todos vemos, “o touro surge enfeitado com uma grinalda de flores, e o mar ao fundo… e montando o touro, um menino com ofertas”, mas vê mais, “uma mulher (evocando a figura de uma sacerdotisa) aproxima-se do altar do Império, onde se expõe a carne de um animal abatido”97.Carne ou flor? Será lícito perguntar perante a forma ambígua, voluntariamente ambígua suponho, que mora em equilíbrio incerto junto de uma faca, esta em completo desequilíbrio na secular tradição da natureza morta, sobre uma mesa à esquerda da composição. Ela é mais um elemento da irrealidade que banha todo este quadro. Somemos o branco do putto em primeiro plano, ao branco do tourinho enfeitado e cavalgado por um menino “verdadeiro”, juntemos-lhe a flor de carne98 junto à faca e, ao fundo, a “sacerdotisa” que parece feita de barro, uma bilha com forma humana. Não há nesta pintura outra razão para além do sentimento da festa na cabeça do menino verdadeiro, e da memória dela no menino que António foi na sua ilha.

O Sacrifício paira sobre esta pintura que no entanto não só permanece na sua amabilidade aparente, como se impõe dominando o nosso olhar. A partir dela podemos continuar a ler imagens de Festa Brava como a Tourada 1942 ou O Touro e a Dançarina (c. 1986), tão próximas e tão distantes no tempo; no entanto A Festa está já anunciando Em louvor de, série que aparece entre 1985 e 1987. Esta série é, declaradamente, um memento mori, assumindo sempre a forma da cabeça sacrificada de um bezerro, tão coesa que António Dacosta desejava que permanecesse junta: “Em louvor de. ‘Que não me dispersem a série’”99. Felizmente este conjunto de cabeças sacrificiais encontra-se quase todo reunido no melhor lugar possível para tal efeito, o Museu de Angra, a terra natal do pintor, museu que também possui, de data aproximável, uma pintura representando o instrumento do sacrificador: um punhal.

Esta “é uma série unida pelo título e pelo tema: a cabeça de boi no osso ou quase, ou só pele”100, ou uma máscara, como um emblema trágico que lembra algumas ‘calaveras’ de Picasso e, mais ainda que elas, os bucrânios fúnebres dos Caprichos de um pintor supostamente amável, Giovanni Battista Tiepolo (1696-1770)101, também eles sinais certos de morte.

Em louvor de é também o título de uma pintura excepcional que não só resume e integra toda a série, como conclui simbolicamente duas outras das mais típicas do Dacosta dos anos oitenta: as Fontes e as Memórias. Esta pintura sombria funciona como um negativo d’A Festa, recebendo assim o seu significado mais oculto. Toda ela é uma acumulação de sinais: o “crânio exangue do novilho imolado, última figuração, figuração da morte insolentemente trazida ao primeiro plano”102, onde também está, bem discreta, uma pequena fonte apenas iluminada pela sua própria luz; subindo a partir deste plano ergue-se uma figura humana alta, curvada, parecendo que vai de saída, um arco igualmente curvado sublinha esta figura, enquanto uma escada suspensa do vazio completa o registo médio da pintura; finalmente, num registo superior, marcado materialmente por uma baguete de madeira, bem ao centro e sobre um pequeno pedestal ergue-se um triângulo imediatamente identificável com uma memória. Tudo não direi, mas quase tudo parece convergir para esta melancólica celebração.

85 Guillaume de Machaut (c.1300-1377).
86 T. S. Eliot, «O fim é onde começamos» [“Little Gidding”]. In Antologia Poética. Lisboa: Publicações D. Quixote, 1988.
87 Rosengarten, «António Dacosta. Yes and no, in other words / não há sim sem não».
88 Instalada no grande espaço da Sede da Fundação a exposição era uma descida no tempo a partir das obras solares de oitenta até à inquietação dos anos quarenta, proporcionando possibilidades de comparação e de visão de conjunto que nunca tinham existido.
89 Alexandre Pomar, «Imagens partilháveis. António Dacosta Fundação Calouste Gulbenkian», Expresso, 27 fevereiro 1988.
90 Almeida, «As sublimes súplicas».
91 Porfírio, «António Dacosta. Um olhar incansável».
92 Rui Mário Gonçalves, «O mistério Dacosta ou em busca da imagem perdida». In António Dacosta no CAMB. Algés: Centro de Arte Manuel de Brito, 2011.
93 Emanuel Félix, «Do culto do espírito santo» [sublinhado do autor]. In A Presença do Divino na Obra de António Dacosta e Júlio Pomar. Angra do Heroísmo: Museu de Angra do Heroísmo, 2006.
94 João Miguel Fernandes Jorge, «Fechai a noite arco de ave». In A Presença do Divino na Obra de António Dacosta e Júlio Pomar.
95 Rui Mário Gonçalves, «Pioneiros da modernidade». In História da Arte em Portugal, vol. 12. Lisboa: Publicações Alfa, 1986.
96 Júlio Pomar, «António Dacosta. Em louvor de…», Expresso, 8 dezembro 1990. (António Dacosta morrera a 2 de dezembro)
97 Jorge, op. cit.
98 Impossível não lembrar aqui a “carne vegetal” (1948) de outro surrealista, Marcelino Vespeira (1925 – 2002).
99 Declaração de Dacosta citada por Júlio Pomar que mais afirma sobre a sérieela reunia algumas das mais belas e discretas pinturas de toda a sua vida”. In Pomar, op. cit.
100 Porfírio, op. cit.
101 Cf. o estudo de Roberto Calasso, Il Rosa Tiepolo. Milano: Adelphi 2006 (Edição consultada: Le rose Tiepolo. Paris: Gallimard, 2009).
102 Pomar, op. cit.

Presságios e Melancolias

“Aquele pânico antigo que exalta tudo quanto o homem teme ou ama.”103

“Tudo isto deriva da existência de uma compressão que no interior da ilha é terrível, cósmica, de meter medo.”104

“Foi no fim da vida, e continuando o exílio, que o António reentrou na pintura, casando o estar longe com o ter sido. A boda, que foi real, teve por padrinhos presságios funestos. Inventariá-los, agora é fácil.”105

Há obras inaugurais que se devem ler como anúncios de obra futura. Datado de 1937, O Passarinheiro está de sobremaneira neste caso: primeiro pela perturbação formal entre os arcos correspondentes ao corpo do pássaro saindo da boca do passarinheiro e aquela espécie de cometa que se ergue por trás da sua cabeça, prenúncio da convulsão que está para vir; depois, na gama cinza azul que é a de alguma da pintura de oitenta. Marcando tudo, a figura e o possível espanto dela perante o que não sabe, pois nem ela o diz, nem o pintor sabia o que estava para acontecer, os caminhos da obra, os caminhos do futuro, a calma e a perturbação, tudo contraditório mas tudo reunido.

Melancolia de 1942 não poderá estar na exposição mas é obrigatório referi-la, uma vez que de um modo ainda mais explícito, nela convergem e se unem, sem aparente disparidade, em duas situações de paisagem opostas, o imaginário e o real, num daqueles curto-circuitos impossíveis que o surrealismo foi buscar a Lautréamont – Isidore Ducasse e ao encontro “ de um chapéu-de-chuva e de uma máquina de escrever sobre uma mesa de dissecação”. Um muro visto de topo, com fio eléctrico e tomada de corrente, separa e une as duas paisagens; Rui Mário Gonçalves viu na tomada os olhos de um gato106, mas esses olhos são, simultaneamente, o nó e o centro do curto-circuito onde as contradições se anulam.

Já bem na segunda metade de oitenta, Dacosta sentiu a necessidade de acrescentar à Melancolia de 42, duas caixas com os números II e III: Melancolia II é o prolongamento formal da primeira com a grande divisória vertical, como uma coluna, bem a meio; Melancolia III aparece como uma deliberada evocação de natureza morta morandiana. Podemos juntar a estas obras Novembro 3, outra caixa com um minúsculo quadro dentro do quadro: a data-título refere o aniversário do pintor, numa marca melancólica, também, do peso do tempo que passa.

Farão estas Melancolias parte dos “presságios funestos” de que fala Júlio Pomar? Elas participam de um clima que banha toda a obra marcada pela distância, pelo não estar ali, por estar fora do espaço e, deliberadamente, fora do tempo também, e, no entanto, o tempo trabalha o homem e a obra que cresce até ao fim, incluindo o próprio fim dentro dela, como veremos. Por enquanto, basta-lhe o anúncio, o assumir dos tons sombrios em pinturas inquietantes e dificilmente decifráveis, onde o preto e o branco dominantes são um forte vector simbólico. Presságio de 1984 e O Cálice de 1986, são excelentes exemplos dessa dimensão simbólica. Presságio é todo escuro, o fundo onde se destacam duas figuras, uma de cabeça totalmente embuçada a branco (e gris) que se reclina sobre a outra figura, feminina, na margem esquerda; claros, apenas o saco que tapa a cabeça da figura principal e um ornato, ou um galho torcido como uma cobra, sobressaem. Podemos imaginar facilmente que o negrume que vemos na pintura é a exacta tradução do mesmo escuro em que está mergulhada a personagem central. No Cálice dá-se uma operação exactamente inversa, um branco sujo ocupa um espaço central situado sob um arco, onde uma forma negra se debruça sobre uma figura fantasmática, com uma cabeça a caminho de ser caveira, que parece acolhê-la ou ampará-la, enquanto no ar paira o cálice que dá o nome à pintura. É o negro da forma dobrada que domina a composição e atrai o olhar. Ambos, o negro do Cálice e o branco de Presságio, são formas da mesma ausência.

Enigmas

 

“(…) assim que penetramos no universo do enigma: experimentamos a obliquidade do sentido, da orientação. Cada oposição e, por conseguinte, cada sentido, transformam-se em galáxias de alusões. A partir de então, o enigma ocupa, soberano, o lugar que cabia à clareza das significações.”107

“Será assim tão difícil conceder à obra de arte a imunidade de uma coisa que existe por si, que, sendo uma criação possui como qualquer realidade uma porção de ‘mistério’ e é, portanto, de certo modo, irredutível em termos de uma compreensão clara.”108

“A arte não passa de uma eterna tentativa falhada para dizer qualquer coisa que fica sempre por dizer.”109

Com resposta, ou (ainda) sem ela, o enigma mora desde o início até ao fim na obra de António Dacosta, muitas vezes em trabalhos de uma inquietação suspensa, ou até, parada, em contraste com a violência dinâmica, com a convulsão, que mora noutras obras suas contemporâneas; estão neste caso duas pinturas dos primeiros anos quarenta O Filósofo, (1942?) e Pintura (Cena com Pêndulo) (c.1941).

Na primeira o busto do Filósofo surge descentrado para a esquerda permitindo ver numa parede traseira a sua densa sombra, de um negrume quase coisa e, como suspensa na parede, uma chave, porventura a chave dos seus pensamentos. Estes também se manifestam sobre a forma de uma pomba que lhe sai da cabeça, justamente de um buraco existente no lugar da orelha. Por cima da orelha que lá não está, podemos ver não o crânio do filósofo mas uma curvada parede de alvenaria, semelhante à que aparece numa fotografia da primeira versão de outra pintura, Serenata Açoriana110, e, por que não, às paredes de um daqueles poços que é suposto guardarem a verdade – mas qual verdade? A expressão do rosto do filósofo denota alguma perplexidade e a chave não tem porta, ou gaveta, ou segredo para abrir!

O pêndulo, com o seu rigor, domina uma composição em verticais e horizontais onde a geometria organiza quase rigidamente uma grande abundância de referências figurativas.

Um rapaz de tronco nu soergue-se apoiado com a mão direita numa tartaruga, enquanto a outra mão segura um fio que se adivinha mais do que se vê, do qual está suspensa uma maçã; ao lado da maçã ergue-se um vaso de onde surge um rosto sobre o qual uma ave vai picar o tronco do jovem. A descrição sugere uma desordem que a pintura não tem, muito embora o pássaro seja um elemento baroco, expressivo e convulsivo, que se apresta a romper aquela ordem, aquele frágil equilíbrio que ainda permanece nesta pintura como o momento antes da mudança.

O espírito de jogo e de divertimento infantil pode coexistir com a interrogação mais ou menos enigmática como na Caça ao Anjo de 1984, “essa vibrante e irónica epifania, onde a figuração sagrada de um Anjo a duas dimensões, é, simultaneamente, lugar de espanto e de surpresa, para todos menos para o cão que o caçou, num inesperado confronto entre o natural e… o sobrenatural111. Apenas a cabeça do cão penetra naquele espaço, como uma citação particularmente bem-humorada ao cão que se afunda de Goya, uma das mais dramáticas representações desse animal na pintura do Ocidente; o bicho fareja e caça o sagrado que, afinal, faz parte de um quotidiano escondido algures na Ilha de António.

Se o cão caçando um Anjo é memória transformada de infância, em Não há sim sem não – O Eremita, de 1985, é evidente uma memória greco-latina, logo pagã, no confronto entre o fragmento de fuste de coluna e a caveira, esse memento mori cristão que vem associado a uma figura escrevendo “podemos interpretá-la como a de um jovem S. Jerónimo no difícil acto de passar a Bíblia para o latim, o que equivale a uma tentativa de conciliação da cultura greco-latina com a judeo-cristã. O pintor está consciente da multiplicidade das suas raízes, bem como das contradições que muitos séculos não conseguiram apagar e que o título desta pintura perfeitamente exprime. Daí que, muito embora a iconografia implícita neste quadro nos aponte para uma figuração do Santo tradutor, não seja descabido ver no jovem escriba (ou desenhador) uma auto-representação de António Dacosta”112 escrevendo? Desenhando? Fazendo a ponte entre o mais e o menos, o sim e o não. E é declaradamente um António juvenil quem aparece em A Flor, a Máscara e eu adolescente, de 1987, obra sombria mas exaltante, onde a cabeça do jovem António aparece num prato, numa citação evidente da iconografia do São João Baptista degolado, em confronto com uma Máscara que aponta para um primitivismo ancestral e não já para o paganismo greco-latino, e onde a flor, meio oculta meio patente, é um símbolo natural de renovação; uma vez mais, estão aqui reunidos o não e o sim.

Pinturas negras estas? Pinturas graves, onde “António se pode autofigurar com as marcas de uma juvenilidade que não acaba mais, jovem entre os jovens, menino entre os meninos, para sempre”113.

103 António Dacosta, «Admiremos Miró», O Estado de São Paulo, 7 novembro, 1956. In Dacosta, Dacosta em Paris.
104 António Dacosta, «Os Açores, o sagrado e o profano». In António Dacosta, 1995.
105 Pomar, «António Dacosta. Em louvor de…».
106 Gonçalves, «Pioneiros da modernidade». In História da Arte em Portugal, Vol. 12.
107 Remo Guidieri, “António Dacosta. Shades snapped down against the day”. In António Dacosta, 1995.
108 António Dacosta, «Presença de Joan Miró», Diário Popular, 15 dezembro 1948. In Dacosta, Dacosta em Paris.
109 António Dacosta, «O mistério Picasso», O Estado de São Paulo, 18 fevereiro 1956. In Dacosta, op. cit.
110 Gonçalves, António Dacosta, 1984.
111 Porfírio, Scène Ouverte, 2007.
112 Ibid.
113 Porfírio, «Os rostos de António». In O Rosto na Obra de António Dacosta.

AS PARCAS

 

“De morte natural nunca ninguém morreu”114

“Há um apelo de morte que se insinua pouco a pouco em nós e que nos vai ajudar nessa experiência final.”115

“O que era horrível era a existência da morte, o facto das pessoas, todas as pessoas, terem que morrer. Quando, como, onde, juntamente com milhares de outras ou sozinhas, era irrelevante. O horror era a morte.”116

“Aquilo que os olhos vêem, aquilo que a imaginação suspende no espaço e no tempo, aquilo que nos acontece, são facetas, relações duma mesma realidade, espécie de saco contendo antinomias, contra-sensos, tudo em tudo”117

Pelo menos no olhar dos outros118, Dacosta já vivera, no seu trabalho, aquela espécie de morte que é o abandono da prática artística por várias décadas, entre os fins de quarenta e fins de setenta, vivendo o limiar da sua velhice como um renascimento e a conquista de um olhar novo de menino sábio, sobre o mundo e sobre as coisas. A morte, essa, apareceu também no período final do seu trabalho como um permanente confronto com os sinais da memória e com uma deliberada presença da infância e da juventude. É da morte próxima, da morte própria que fala, num exercício de lucidez e sempre de algum desafio.

Simultaneamente desafio e despedida a uma amiga, Arlete Alves da Silva, mulher do fundador da Galeria 111, Manuel de Brito, é um derradeiro desenho inscrito sobre uma dupla reprodução de dois folios de um manuscrito que inclui um retrato de Camões; é sob esse retrato que figura um desenho mostrando um fio ligando uma caveira a uma mão e, entre as duas, cortando o fio, uma tesoura; o fio é o fio da vida e a tesoura “abominável” que o corta é manejada por Átropos, a mais temida das três Parcas119. A escolha de um suporte tão camoniano lembra imediatamente o Canto I dos Lusíadas, “aqueles que por obras valerosas se vão da lei da morte libertando”, porventura com alguma da auto-ironia, que Dacosta sempre praticou. Esta obra, mesmo dos últimos dias do artista, vem iluminar toda uma série de referências iconográficas que desde sempre atravessam o seu trabalho: a caveira que já encontramos como parte de uma composição, mas que também pode acontecer isolada e que aparece no Encontro do Poeta com a Morte (1941?) onde o poeta é um cavaleiro que pára, baixa a sua lança e medita. Debruçado sobre os sinais da morte, a caveira, a espada, o sangue, o cavaleiro poeta enfrenta ainda o busto (do filósofo?) e uma ave (fénix?) que parece nascer a partir de uma explosão ou de um pequeno incêndio colorido, isto enquanto, num segundo plano, um velho ampara uma mulher que segura uma chave – a chave? Sem tesoura nem Parcas, este complexo guache aponta para um caminho suspenso ou interrompido.

Mesmo sem usar esse nome, é a memória das Parca que habita as Três costureiras Goyescas (c.1980) muito embora estas se debrucem sobre uma mesa e não flutuem num espaço incerto, numa obra onde a surdez da cor e a massa da forma se aproximam da paleta e do indistinto do pintor espanhol120. Já na Tesoura de 1984 é o próprio titulo que aponta o que a pintura de certo modo esconde ou, pelo menos, deixa ficar na sombra a tesoura, enquanto uma festiva figura de moça soprando uma língua de sogra é plenamente visível em ambiente solar, numa alegoria nítida à brevidade dos prazeres da vida.

Uma serenidade particular mora no interior das obras finais de António: numa magnífica colagem de 1989, um pequeno rosto de pedra situado mesmo por baixo de uma dedicatória amorosa à sua mulher é, porventura, a última auto-representação do pintor. Essa pequena cabeça é mais do que uma outra assinatura, é sinal e vontade de presença, de presença física no coração de um trabalho, onde a cor exaltada surge também como mensagem amorosa não-verbal, e a verticalidade reforça essa vontade de estar ali. O último trabalho de António Dacosta é uma pequena colagem longitudinal sobre seda, marcada por uma longa horizontal em contraponto com duas outras linhas mais aleatórias e irregulares e a presença circular, algo fantasmática, das sementes de lunária. A linha principal pode ser um último horizonte marinho, mas podemos interpretá-la também como uma linha de vida próxima do seu fim, uma espécie de paisagem mais espiritual que natural, onde tudo se aquieta.

A relação formal e simbólica entre estas duas obras podemos encontrá-la prefigurada em duas das mais conhecidas pinturas dos anos quarenta Episódio com um Cão, de 1941, e Amor Jacente, de 1941. A morte quase estilizada está presente nas duas pinturas, na estocada final do duelista ou no túmulo quebrado que deixa ver o pé de um cadáver. Ambas as pinturas estão aparentemente quietas, na primeira o cão como um novelo enrolado é a própria imagem da quietude, apenas quebrada pela água que corre e por um ser dentudo, híbrido de peixe e ave, num esgar de susto ou de agressividade; ao longe, os duelistas parece que fazem parte de outro mundo, de outra história que mal interrompe o descanso português do primeiro plano.

Amor Jacente é “fingimento de uma acção. Os seus elementos formais agrupam-se no propósito de simularem uma cena. Por detrás dela, outra história, da qual as figuras são sinais livres, se esconde e continuará ignorada – de todos e do pintor.”121 Neste texto escrito em 1951, José-Augusto França diz-nos dos limites necessários à interpretação que corre sempre o perigo de ser redutora perante uma obra maior, o que é o caso. A acção, fingida, está suspensa nesta pintura, toda ela esperando um movimento que não vai acontecer, esperando também, vemo-lo hoje, um corpo de obra de onde o sentido emerge, onde o fim e o princípio se tocam “para que em Espaço caiba a Eternidade.”122

Por decisão pessoal o autor do texto não escreve segundo o novo Acordo Ortográfico.

114 Jorge de Sena, «A morte, o espaço a eternidade». In Metamorfoses. Colecção Círculo de Poesia. Lisboa: Moraes Editores, 1963. É o primeiro verso do Poema.
115 Sousa, «António Dacosta. A pintura no espaço do sagrado».
116 José Cutileiro, «Morrer ao domingo», Diário de Lisboa (suplemento «a Mosca»), 2 dezembro 1972. José Cutileiro assinala nesta crónica as opiniões de Dacosta sobre a morte durante um encontro tido anos antes com o pintor em casa do poeta Ruy Cinatti.
117 António Dacosta, «Comentários às exposições de Portela Júnior e Lino António», Diário Popular, 12 abril 1944. In Dacosta, Dacosta em Paris.
118 Em artigo de dicionário, José-Augusto França comenta nos seguintes termos o “abandono” da pintura de António Dacosta: “O seu silêncio nos últimos vinte anos… representa uma perda da maior importância para a pintura portuguesa.” [sublinhado do autor]. In Mário Tavares Chicó, Armando Vieira Santos, José-Augusto França, Dicionário da Pintura Universal, vol. III – Dicionário da Pintura Portuguesa. Lisboa: Estúdios Cor, 1973.
119 As outras são Cloto, a Fiandeira que fia o fio da vida, e Láquesis, a Distribuidora da Sorte. Ver, por exemplo, Edith Hamilton, A Mitologia. Lisboa: Publicações D. Quixote, 1983.
120 Las Parcas ou Átropos, Museu do Prado. Pintura mural destacada da Casa del Sordo, onde viveu Goya.
121 José-Augusto França, «Da poesia plástica, cadernos de poesia, Lisboa 1951». In António Dacosta, 1988.
122 Sena, «A morte, o espaço a eternidade». É o último verso do Poema.

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