«Precisamente no centro deste quadro, no 2.º plano, é representado um pequeno teatro de fantoches, em que surgem, certamente como personagens de um drama que se processa neles e através deles, um homem e uma mulher ainda jovens. Algumas cenas desse drama desenrolam-se sob os seus próprios olhos, e vemos bem como as suas expressões podem iluminar-se de inquietação, ansiedade ou talvez esperança. No 1.º plano, duas crianças estabelecem relações com outros seres da criação: um pássaro e um carnívoro, talvez um lobo. Mas são relações assaz ambíguas estas de que nos fala o quadro; e neste intenso clima de expectação que envolve a cena, elas tanto podem ser de convívio e amizade como de oposição feroz. Sobre a nudez da criança a pata do lobo tanto pode acariciar como ferir. Vemos, assim, que existe aqui um problema central, que é o da continuidade da vida (necessariamente ligada a problemas de amor e de sexo, que veremos, também, expressos no quadro) e o das relações que se estabelecem não só entre os humanos, como, também, entre estes e os outros seres vivos. Uma análise mais demorada desta obra levar-nos-ia muito além dos limites deste artigo. […]

Um dos problemas que supomos ligar-se ao tema maior desta tela é o do conflito que se estabelece no homem e a sua própria Animalidade (aqui simbolizada pela Besta, mítica figura monstruosa com corpo de animal e rosto humanos, de olhos cegos, isto é, sem alma) e a sua Consciência, a qual pode ferir de morte essa mesma Animalidade.

Mas estas figuras, que correspondem a uma mitologia muito antiga, colocam-se no quadro em último plano, subjacentes portanto, à existência real dos homens, contudo vinculando esta existência à amplitude do espaço e às origens do tempo, mais remotas ainda que a tremenda força erótica que no 1.º plano é expressa por uma simbologia fálica, em formas que se revestem de um carácter vegetal e que nascem das profundezas da Terra. É, porém, no bafo quente da Besta que elas se incendeiam.»

(BRONZE, 1969, p. 3)