É sábado de manhã e, ao contrário do habitual, há silêncio e calma na Escola Secundária S. João do Estoril. “Hoje partiram três autocarros cheios de crianças para Sintra, para um concurso de dança”, explica Ulyana Kucheras, diretora da escola ucraniana Oberig.
Há 18 anos que esta escola promove a aprendizagem da língua e de conteúdos curriculares ucranianos que, através da Embaixada, conferem equivalência ao seu currículo. Todos os sábados, trabalha em parceria com a associação “Fonte do Mundo” para manter vivas a história, cultura e tradições da Ucrânia em Portugal. Em 2022, nas semanas que se seguiram à invasão da Rússia, a escola viu o número de alunos triplicar: de 90 passaram a 300.
“As crianças refugiadas chegaram sem nada: sem roupa, telemóveis, comida, nada” conta-nos Ulyana em ucraniano, visivelmente emocionada. Zahar Abramov, professor de português, traduz: “Fugir da guerra é um alívio, mas depois chegam aqui e sentem-se zangadas: não conhecem ninguém, não sabem a língua, não têm amigos…”.
-
Borys e Ulyana Kucheras gerem a associação "Fonte do Mundo" e a escola ucraniana Oberig desde 2004 ©Ricardo Lopes
-
A escola Oberig funciona aos sábados, nas instalações da Escola Secundária S. João do Estoril ©Ricardo Lopes
-
Atualmente, a escola recebe à volta de 250 alunos, do 1º ao 11º ano ©Ricardo Lopes
-
Zahar Abramov foi aluno na escola ucraniana. Hoje, é professor de língua portuguesa e faz pequenos trabalhos como tradutor ©Ricardo Lopes
Encontrar paz depois do silêncio
A associação “Fonte do Mundo” foi uma das cinco organizações que recebeu o apoio de emergência da Fundação Calouste Gulbenkian em território português. Além de ajudar a manter a atividade da escola, agora mais do que nunca necessária, este apoio serviu “para adquirir material para as crianças usarem nas aulas (livros, cadernos) e outros equipamentos como computadores, um projetor, colunas e um microfone”, explica Borys Kucheras, marido de Ulyana e presidente da associação.
Outra das prioridades passou também por encontrar ajuda psicológica para estas crianças refugiadas, que “viram a guerra pelos seus próprios olhos”, conta a diretora da escola. Nos primeiros tempos, lembra, o cenário era desolador. “Nos intervalos das aulas, não se ouvia barulho. As crianças ficavam em silêncio, não falavam; só choravam”.
Por isso, mais do que garantir que não perdem o contacto com o estudo, o trabalho deste centro cultural e educativo passa por promover momentos de lazer que possibilitem viver experiências em conjunto e conhecer um pouco do país que é a sua nova casa. Ao longo do ano, com o apoio Gulbenkian, foram organizadas visitas ao Oceanário, ao Safari Park, ao Pavilhão do Conhecimento, ao Aquapark ou à Serra da Estrela. Pontualmente, comemoram-se os feriados nacionais, com direito a festa como manda a tradição.
Hoje, a diferença com que vivem os sábados é “uma grande vitória”. O barulho voltou a ouvir-se pelos corredores, nos intervalos. Construíram-se relações de confiança e estreitaram-se os laços entre os estudantes, as famílias e os professores. As famílias – mães e filhos, cada vez mais órfãos de pai – são acompanhadas por psicólogos e ajudadas a integrar-se, dentro e fora dos centros de acolhimento.
“Queremos que as crianças se sintam bem, se sintam em casa. A escola ucraniana ajuda, permite-os ouvir a língua materna, comunicar com outras crianças”, diz Ulyana Kucheras. Para a diretora, a comunidade ali criada é “uma grande família”. Em tempos de guerra e desolação, os momentos de convívio são o que há de mais valioso.
-
Com a psicoterapeuta Iuliia Kutsenko, as crianças falam sobre emoções ©Ricardo Lopes
-
As sessões terapêuticas acontecem à roda de uma mesa ©Ricardo Lopes
-
Nestas sessões, os alunos são convidados a expressar-se criativamente ©Ricardo Lopes
-
A aula de português fica a cargo de Zahar ©Ricardo Lopes
-
Os alunos leem textos e fazem exercícios de português. A língua é difícil, mas há muita vontade de aprender ©Ricardo Lopes
-
Noutra sala, Oleksandra Jordão, terapeuta da fala, usa o espelho como ferramenta para trabalhar a dicção com os seus alunos ©Ricardo Lopes
“Como uma pequena casa num outro país”
Na escola Oberig, mesmo em número reduzido, as atividades não param: ao longo do dia decorrem aulas de português, sessões de terapia da fala, aulas de inglês com teatro de fantoches, “Arte Terapia” e sessões de grupo com uma psicóloga. Os alunos vão do 1º ao 11º ano, com idades entre os 6 e os 17 anos.
Os dois filhos de Natalia Nikonec integraram a escola uma semana depois de chegarem a Portugal. Os três aterraram no país a 5 de março de 2022, fugidos da cidade de Bucha, uma das primeiras áreas da periferia de Kiev ocupadas pelas forças russas quando a guerra estalou.
“Viemos para Portugal porque é o sítio mais longe da guerra onde posso viver em segurança”, explica. Para esta mãe, a escola ucraniana é muito importante porque permite não esquecer as raízes e manter o nível de estudos, em equilíbrio com momentos de convívio e lazer. E, sabendo que os filhos estão bem entregues, tem tempo para se focar noutras coisas, como a procura de emprego, ou descansar. “É como uma pequena casa num outro país. Os meus filhos sentem-se muito confortáveis aqui, e eu também”.
A língua portuguesa é difícil de aprender, mas os filhos já são fluentes. Para já, é por cá que Natalia planeia ficar, onde se sente segura e bem-vinda.
-
Natalia Nikonec é mãe de dois alunos refugiados ©Ricardo Lopes
-
Nas sessões de "Arte Terapia", as crianças pintam, desenham e dão asas à criatividade ©Ricardo Lopes
-
A professora Aleksandra Chemerys dá uma aula de inglês com recurso ao teatro de fantoches ©Ricardo Lopes
-
Cada grupo apresenta um pequeno teatro aos colegas ©Ricardo Lopes
-
Aprender a brincar é o mote destas aulas de inglês ©Ricardo Lopes
-
No total, há 16 professores para 250 crianças na escola Oberig ©Ricardo Lopes
A força de um Coração Bondoso
Valentyna Marko e a filha Virginia são voluntárias desde 2014 na associação “Coração Bondoso”, que colabora regularmente com a escola em S. João do Estoril e outras escolas de Lisboa. Em contacto com a Embaixada da Ucrânia, a associação recebe os pedidos de ajuda e procura soluções, promovendo recolhas de bens de primeira necessidade e acompanhando as famílias e crianças caso a caso. “No último ano, o telefone da minha mãe não parou de tocar”, conta Virginia.
O apoio que receberam da Fundação Calouste Gulbenkian foi aplicado, numa primeira fase, para a recolha e distribuição de bens como produtos de higiene. Na segunda fase, a prioridade passou para aquecedores, mantas e roupas quentes para o inverno. O que resta vai servindo para ajudar as famílias onde esse apoio faz mais falta, garantindo um mínimo de conforto a cada um e distribuindo sorrisos por entre sobrolhos carregados. É o caso da filha mais nova de Olga Kobzar, que vive num centro de acolhimento em Cascais com os dois irmãos: radiante, acaba de receber cadernos e livros para colorir e brincar.
-
Virginia, Mariya e Valentyna são voluntárias na associação Coração Bondoso ©Ricardo Lopes
-
Livros e cadernos são alguns dos recursos que o apoio da Fundação Gulbenkian permitiu adquirir para as crianças refugiadas ©Ricardo Lopes
-
Olga Kobzar vive num centro de acolhimento em Cascais com os seus três filhos ©Ricardo Lopes
-
Com 14 anos, Veronica, uma das crianças apoiadas pela associação, já é uma excelente pintora ©Ricardo Lopes
-
Valentyna criou a associação Coração Bondoso em 2019, mas já é voluntária desde 2014 ©Ricardo Lopes
-
Borys Kucheras é presidente da associação Fonte do Mundo ©Ricardo Lopes
Soubemos, entretanto, que o grupo de dança que partiu de manhã recebeu o 1º lugar no “Escalão Pequenos Bailarinos”, no IX Concurso de Dança de Casal de Cambra. Assim se vive o dia a dia destas associações: de pequenas vitórias, com entreajuda, força, ânimo e esperança.
Hoje, o cenário afigura-se um pouco mais estável, mas continuam a chegar famílias à procura de asilo e, sobretudo, de um lugar seguro onde possam voltar a encontrar uma ideia de normalidade, enquanto regressar a casa não é uma opção. Para Borys e Valentyna, há uma coisa que parece ir dando algum alento (e que afirmam várias vezes, com gratidão): “Portugal está cheio de pessoas boas”.
Sobre o apoio de emergência
De forma a responder à situação humanitária criada pela guerra na Ucrânia, a Fundação Gulbenkian apoiou, com um milhão de euros, organizações humanitárias que ajudam os refugiados nos países fronteiriços mais pressionados, bem como as associações ucranianas envolvidas no esforço de acolhimento em Portugal. No âmbito nacional foi concedido apoio a cinco associações ucranianas, que receberam até ao máximo de 50.000€, para responder a necessidades específicas como o reforço dos recursos humanos afetos, a aquisição de bens de primeira necessidade (material escolar e informático) e a aquisição de livros em língua ucraniana.