Busoni: Concerto para Piano
Coro e Orquestra Gulbenkian / Hannu Lintu / Kirill Gerstein
No centenário da morte de Ferruccio Busoni, assinala-se o percurso idiossincrático deste compositor, que marcou o século XX. Compositor, professor, pianista e teórico musical, deixou um legado nessas áreas. Nascido em Empoli, na Itália, a sua fama de menino-prodígio permitiu-lhe estudar no Conservatório de Viena e apresentar-se em concerto desde cedo. Após esse período de formação, fixou-se em Helsínquia, então Helsingfors, para lecionar piano no Instituto de Música dessa cidade. Nesse breve período, tornou-se amigo de Sibelius (que pode ter conhecido quando o finlandês se encontrava no Império Alemão) e estabeleceu uma forte e duradoura relação. O impacte de Busoni em Sibelius foi profundo e os seus encontros frequentes prolongaram-se. Nessa altura, o italiano começou a preparar as suas edições de obras de J. S. Bach, que marcaram a visão que se tinha da música desse compositor no início do século XX. Posteriormente, Busoni dedicou-se às digressões, que lhe deixaram pouco tempo para a composição. Assim, aproveitava as interrupções dos périplos europeus e americanos para escrever. O Concerto para Piano e Orquestra, op. 39, é uma obra ímpar da literatura para o instrumento. Fundindo monumentalidade e virtuosismo, afasta-se da forma tradicional, pois contém cinco andamentos e inclui um coro masculino no último. Escrita em 1904, a obra foi estreada em Berlim a 10 de novembro de 1904, com o compositor como solista e a Orquestra Filarmónica de Berlim, dirigida por Karl Muck.
Começa com um prólogo solene, misterioso e de atmosfera enigmática, interpretado pelo tutti da orquestra. O agrupamento apresenta três temas, tensos e carregados de pathos. O pianista faz uma entrada heroica, elaborando os elementos de um novo tema em acordes densos que atravessam o teclado. Dois temas, aparentados com os previamente apresentados pela orquestra, são dominados pelo solista até às intervenções esparsas do agrupamento. A tensão cresce numa secção com caráter de desenvolvimento que desemboca em passagens delicadas e solenes. A leveza movimentada de Pezzo giocoso assenta num ritmo principal, sobre o qual são apresentadas duas melodias contrastantes. Após a introdução, Busoni alterna scherzi e trios que misturam longas linhas melódicas com elementos percussivos. A alternância entre orquestra e solista sublinha o encontro de forças sob o espírito do estilo concertante. Danças, melodias de sabor tradicional, rusticidade, fanfarras, ambiguidade tonal e modalismo orientalizante são alguns dos elementos que Busoni integra num andamento de caráter leve.
A complexidade de Pezzo serioso sobressai nesta obra ímpar numa síntese entre lirismo e tragédia. Recorrendo a grande quantidade e diversidade temática, o andamento começa com um baixo ostinato que apoia um recitativo. A angularidade misteriosa e cromática materializa-se, progressivamente, na primeira parte do andamento. O lirismo cantabile reminiscente da ópera italiana domina uma secção em que o piano se foca na subtileza dos seus timbres cristalinos. Segue-se uma longa segunda parte assente no ritmo repetitivo e em materiais de caráter dançável, cujo virtuosismo exigente conduz o concerto a um clímax em textura de marcha. A última secção do andamento é um retorno à calma, liderado pelo piano; o estatismo e a repetição centrados no registo grave até ao final brilhante.
All' Italiana encarna o excesso de uma tarantela italiana, com os seus rodopios estonteantes. O brilho animado, a rusticidade, e as tipologias militares apoiam o piano até uma passagem central misteriosa e cantabile. Seguidamente, regressa a textura de dança, acelerada caricaturalmente de forma a evocar os finais da ópera cómica italiana dos séculos anteriores. Atravessando texturas de marcha e canção popular, a tarantela obsessiva regressa, conduzindo à cadência final do solista.
Cantico inclui um coro masculino que interpreta Hino a Alá, da peça teatral incompleta Aladino, escrita pelo poeta romântico dinamarquês Adam Oehlenschläger. O apelo universal ao divino atravessa o poema, que contrapõe opostos numa síntese que evoca a filosofia hegeliana. A indefinição misteriosa introduz o andamento, num episódio grave e escuro que prepara a entrada do coro masculino. Essa atmosfera evoca a música da Igreja Ortodoxa e contribui para contextualizar o poema. Essas ressonâncias de hino dão lugar a uma passagem de orquestração leve, pontuada pelos instrumentos de bocal e pela percussão. O caráter meditativo é interrompido pela intromissão do piano, com figurações virtuosísticas que alternam percussividade com arpejos num percurso sinuoso que leva ao final deste monumental concerto, uma dialética sonora sem síntese final.
Intérpretes
- Maestro
- Piano
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Coro Gulbenkian
Fundado em 1964, o Coro Gulbenkian conta presentemente com uma formação sinfónica de cerca de cem cantores. Pode atuar em grupos vocais mais reduzidos, apresentando-se tanto a cappella como em colaboração com a Orquestra Gulbenkian ou com outros agrupamentos para a interpretação das grandes obras. No domínio da música contemporânea, tem apresentado, frequentemente em estreia absoluta, inúmeras obras de compositores portugueses e estrangeiros. Tem colaborado regularmente com prestigiadas orquestras, entre as quais a Philharmonia Orchestra de Londres, a Freiburg Barockorchester, a Orquestra do Século XVIII, a Filarmónica de Berlim, a Sinfónica de Baden‑Baden, a Sinfónica de Viena, a Orquestra do Real Concertgebouw de Amesterdão, a Orquestra Nacional de Lyon ou a Orquestra de Paris.
O Coro Gulbenkian participou em importantes festivais internacionais, tais como: Festival Eurotop (Amesterdão), Festival Veneto (Pádua e Verona), City of London Festival, Hong Kong Arts Festival, Festival Internacional de Música de Macau, ou Festival d’Aix-en-Provence.
A discografia do Coro Gulbenkian está representada nas editoras Philips, Archiv / Deutsche Grammophon, Erato, Cascavelle, Musifrance, FNAC‑Music e Aria‑Music, tendo ao longo dos anos registado um repertório diversificado, com particular incidência na música portuguesa dos séculos XVI a XX. Algumas destas gravações receberam prestigiados prémios internacionais. Entre 1969 e 2020, Michel Corboz foi o Maestro Titular do Coro. Desde 2024, Inês Tavares Lopes é Maestra Adjunta e Jorge Matta consultor artístico.
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Orquestra Gulbenkian
Em 1962 a Fundação Calouste Gulbenkian decidiu estabelecer um agrupamento orquestral permanente. No início constituído apenas por doze elementos, foi originalmente designado por Orquestra de Câmara Gulbenkian. Ao longo de sessenta anos de atividade, a Orquestra Gulbenkian (denominação adotada desde 1971) foi sendo progressivamente alargada, contando hoje com um efetivo de cerca de sessenta instrumentistas, que pode ser expandido de acordo com as exigências de cada programa. Esta constituição permite à Orquestra Gulbenkian interpretar um amplo repertório, do Barroco até à música contemporânea. Obras pertencentes ao repertório corrente das grandes formações sinfónicas podem também ser interpretadas pela Orquestra Gulbenkian em versões mais próximas dos efetivos orquestrais para que foram originalmente concebidas, no que respeita ao equilíbrio da respetiva arquitetura sonora.
Em cada temporada, a Orquestra Gulbenkian realiza uma série regular de concertos no Grande Auditório, em Lisboa, em cujo âmbito colabora com os maiores nomes do mundo da música, nomeadamente maestros e solistas. Atua também com regularidade noutros palcos nacionais, cumprindo desta forma uma significativa função descentralizadora. No plano internacional, a Orquestra Gulbenkian foi ampliando gradualmente a sua atividade, tendo efetuado digressões na Europa, na Ásia, em África e nas Américas. No plano discográfico, o nome da Orquestra Gulbenkian encontra-se associado às editoras Philips, Deutsche Grammophon, Hyperion, Teldec, Erato, Adès, Nimbus, Lyrinx, Naïve e Pentatone, entre outras, tendo esta sua atividade sido distinguida, desde muito cedo, com diversos prémios internacionais de grande prestígio. O finlandês Hannu Lintu é o Maestro Titular da Orquestra Gulbenkian, sucedendo a Lorenzo Viotti.
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Hannu Lintu
Maestro Titular
O maestro finlandês Hannu Lintu é o atual Maestro Titular da Orquestra Gulbenkian. Em paralelo, prossegue o seu trajeto como Maestro Principal da Ópera e Ballet Nacionais da Finlândia. Estas responsabilidades surgiram na sequência dos grandes sucessos obtidos na direção da Orquestra Gulbenkian, bem como na liderança de produções com a Ópera e Ballet Nacionais da Finlândia. Na temporada 2023/24, foi anunciada uma futura parceria artística com a Orquestra Sinfónica de Lahti, com início no outono de 2025.
Os compromissos do maestro em 2024/25 incluem a sua estreia no Festival de Bergenz (Oedipe de Enesco), bem como regressos à Sinfónica de Chicago, à Sinfónica da BBC, à Sinfónica da Rádio Finlandesa, à Filarmónica de Londres, à Sinfónica de St. Louis e à Sinfónica de Oregon.
Nos últimos anos dirigiu, entre outras orquestras, a Filarmónica de Nova Iorque, a Filarmónica de Berlim, a Orquestra de Cleveland, a Sinfónica da Rádio da Baviera, a Orquestra Nacional da Radio France, a Sinfónica de Boston, a Sinfónica da Rádio Sueca, a Deutsches Symphonie-Orchester Berlin, a Radio Filharmonisch Orkest, a Sinfónica de Atlanta, a Orquestra do Konzerthaus de Berlim, a Orquestra de Câmara de Lausanne e a Sinfónica de Montreal, bem como solistas como Gil Shaham, Kirill Gerstein, Daniil Trifonov ou Sergei Babayan.
Para além das grandes obras sinfónicas, dirige regularmente repertório de ópera. Neste domínio, os destaques recentes incluem O Navio Fantasma de Wagner, na Ópera de Paris, e Pelléas et Mélisande de Debussy, na Ópera Estadual da Baviera, bem como várias produções para a Ópera e Ballet Nacionais da Finlândia, incluindo o ciclo O Anel do Nibelungo de Wagner, Dialogues des Carmélites de Poulenc, Don Giovanni de Mozart, Turandot de Puccini, Salome de R. Strauss, Billy Budd de Britten, e uma versão coreografada da Messa da Requiem de Verdi.
Hannu Lintu gravou para as editoras Ondine, Bis, Naxos, Avie e Hyperion. Recebeu vários prémios, incluindo dois ICMA para os Concertos para Violino de Béla Bartók, com Christian Tetzlaff, e para a gravação de obras de Sibelius, com Anne Sofie von Otter. Estas duas gravações, bem como Kaivos, de E. Rautavaara e os Concertos para Violino de Sibelius e de T. Adès, com Augustin Hadelich e a Royal Liverpool Orchestra, foram nomeados para os prémios Gramophone e Grammy.
Hannu Lintu estudou violoncelo e piano na Academia Sibelius, em Helsínquia, instituição onde mais tarde se formou em direção de orquestra com Jorma Panula. Estudou também com Myung-Whun Chung na Accademia Musicale Chigiana, em Siena. Em 1994 venceu o Concurso Nórdico de Direção de Orquestra, em Bergen.
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Kirill Gerstein
Piano
A herança musical do pianista Kirill Gerstein combina as tradições russa, americana e da Europa central com uma insaciável curiosidade individual. Estas qualidades e as relações que desenvolveu com orquestras, maestros, instrumentistas, cantores e compositores conduziram-no à exploração de um vasto repertório, desde J. S. Bach a T. Adès. As suas atuações são caracterizadas por uma técnica irrepreensível, uma invulgar inteligência artística e uma enérgica e imaginativa presença musical. A interpretação de novas obras tem sido uma constante na sua vida artística. Nos últimos anos estreou dois novos concertos para piano, escritos especialmente para ele por Thomas Adès e Thomas Larcher.
Kirill Gerstein nasceu em Voronezh, na então União Soviética, mas é cidadão americano e reside em Berlim. Estudou repertório clássico e jazz e, em 1993, mudou-se para Boston, onde se tornou no mais jovem aluno a ingressar no Berklee College of Music. Estudou também com Solomon Mikowsky (Nova Iorque), Dmitri Bashkirov (Madrid) e Ferenc Rados (Budapeste). Em 2001 venceu o Concurso Arthur Rubinstein, em Telavive, e em 2002 o Gilmore Artist Award. Em 2010 foi distinguido com o Avery Fisher Career Grant e o Gilmore Artist Award.
A carreira de Kirill Gerstein evoluiu solidamente a nível internacional, com frequentes apresentações na Europa, nos EUA, no Extremo Oriente e na Austrália. Na temporada 2022/23, destaque-se uma residência com a Sinfónica da Rádio da Baviera, que inclui vários concertos sob a direção de Alan Gilbert, Daniel Harding, Antonello Manacorda e Erina Yashima, para além de um ciclo de três concertos, no Wigmore Hall de Londres, intitulado “Busoni and His World”.
Kirill Gerstein é também um dedicado professor e pedagogo. Lecionou na Stuttgart Musik Hochschule (2007-2017) e é atualmente professor de piano na Hanns Eisler Hochschule, em Berlim, e integra o Performance Programme for Young Artists da Kronberg Academy. Em 2021, a Manhattan School of Music concedeu-lhe um Doutoramento Honorário em Música.
Programa
Ferruccio Busoni
Concerto para Piano e Orquestra, com Coro Masculino, em Dó maior, op. 39
– Prologo e Introito: Allegro, dolce e solenne
– Pezzo giocoso: Vivacemente, ma senza fretta
– Pezzo serioso
Introductio: Andante sostenuto
Prima pars: Andante, quasi adagio
Altera pars: Sommessamente
Ultima pars: a tempo
– All’ Italiana, Tarantella: Vivace, in un tempo
– Cantico: Largamente
– Allegro scherzando