O Gosto pela Arte Islâmica

A curadora Jessica Hallett fala sobre a exposição do Museu Calouste Gulbenkian, que ocupa a Galeria de Exposições Temporárias do Edifício Sede até outubro.
06 ago 2019

Cento e cinquenta anos após o nascimento de Calouste Gulbenkian, esta exposição lança um novo olhar sobre a sua coleção, à luz do contexto histórico em que as obras foram adquiridas.

Jessica Hallett, curadora da exposição e uma das responsáveis pelo núcleo islâmico do Museu Gulbenkian, fala-nos desta mostra que está a ser preparada há um ano e meio e que vai contribuir para melhor conhecermos o inestimável património oriental reunido por Calouste ao longo da sua vida.

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Como descreveria esta exposição em poucas palavras?

É um dos momentos altos da celebração dos 150 anos do nascimento de Calouste Gulbenkian e debruça-se sobre a sua coleção de arte islâmica, uma coleção mundialmente importante e merecedora de novas leituras.

Seguindo os passos de Calouste, vamos conhecer alguns momentos fundamentais da história da sua vida e da sua coleção.

Que momentos são evocados?

Calouste Gulbenkian viveu tempos muito turbulentos: o fim do Império Otomano, as duas guerras mundiais na Europa, o colonialismo no Médio Oriente e a tragédia da perseguição aos arménios.

Nesta exposição, o encontro com os objetos da sua coleção terá como pano de fundo estes acontecimentos históricos que marcaram a sua vida e a sua atividade de colecionador, na altura em que a categoria de “arte islâmica” foi criada.

Como é que esses acontecimentos se refletiram na coleção?

Por exemplo, o declínio do Império Otomano teve efeitos no mercado da arte da época e, consequentemente, na coleção de Calouste Gulbenkian.

Os arménios ocupavam lugares-chave na corte otomana ou em negócios de exportação e, quando o Império se desmoronou, muitos procuraram outros modos de vida, alguns dedicando-se ao comércio de obras de arte. Dispunham de uma forte rede de contactos, desde o Médio Oriente até à China, e utilizaram-na para fazer chegar as obras de arte à Europa.

Os massacres de que foram alvo em 1894-1896 levaram ao surgimento da diáspora arménia, que acabou por desempenhar um papel importante no mercado da arte mundial.

Calouste Gulbenkian utiliza esta rede arménia para adquirir obras?

Com muita frequência. Podemos dizer que um quarto da sua coleção de arte islâmica foi adquirido através de antiquários arménios e um terço das obras foi negociado por arménios em leilões.

Consultando as cartas de Gulbenkian, tornou-se possível traçar os movimentos destas pessoas. Há um mapa que mostra o itinerário destes comerciantes à procura das peças de arte islâmica para Calouste Gulbenkian.

Calouste Gulbenkian utilizava a expressão arte oriental e não arte islâmica…

O conceito de arte islâmica é posterior. Calouste Gulbenkian considerava-se um oriental e falava em “arte oriental”, mas, no final do século XIX, com o crescimento dos nacionalismos, tornou-se habitual categorizar estas artes em termos de etnia.

Surgiram então outras designações como “arte persa”, “arte árabe” ou “arte sarracena”. O termo “arte muçulmana” foi usado numa exposição realizada em 1893 e, mais tarde, ensaiou-se o termo “arte maometana”, o que não foi considerado rigoroso porque, na verdade, a arte não religiosa ficava fora dessa designação.

Na década de 1920, é utilizado pela primeira vez o termo “arte islâmica” que, após a II Guerra Mundial, passa a ser geralmente adotado.

Chegou-se a um consenso geral?

Não propriamente. Este conceito continua a ser discutido, porque os académicos usavam-no para descrever a região que vai do Sul de Espanha à Índia, do tempo de Maomé até ao século XVIII, o que deixa regiões e épocas à margem.

Uns consideram o termo “arte islâmica” capaz de abraçar uma grande diversidade, outros veem nele um conceito muito eurocêntrico. Foi também usada a designação de “arte do Médio Oriente” mas a discussão continua.

A minha opinião é que a multiplicidade artística sugerida por este conceito é tão ampla que devemos, sempre que possível, especificar de que arte estamos a falar.

Quando é que a arte islâmica passou a suscitar interesse na Europa?

Podemos apontar dois momentos: o primeiro no final do século XIX, quando a arte islâmica se torna fonte de inspiração para as artes europeias, como é demonstrado pela Arte Nova; o segundo ocorre após 1920, com a exploração do petróleo, numa altura em que o interesse dos investidores se vira também para a arte das zonas geográficas de onde extraem “ouro preto”.

Os magnatas do petróleo passam também a disputar entre si os recursos artísticos dessas zonas?

Começa a haver um grande interesse, em especial por um dos artefactos mais emblemáticos do Médio Oriente: os tapetes, sobretudo os persas.

A competição começa a ser grande, o que leva a que Gulbenkian tenha de agilizar algumas compras em antiquários para conseguir garantir peças muito cobiçadas.

Há registo de, pelo menos, dois tapetes que Gulbenkian poderia ter comprado mas não o fez por já ter alguns exemplares na sua coleção e que acabaram por ser adquiridos por J. D. Rockefeller Jr., estando hoje no Metropolitan Museum of Art de Nova Iorque.

Sabe-se também que Gulbenkian esteve em competição com J. P. Getty por um tapete que esteve exposto na coroação de Eduardo VII, e que acabou por ser comprado pelo americano que desembolsou uma fortuna por ele. É apenas um exemplo do grande interesse que estas peças suscitaram entre os magnatas do petróleo.

Como está organizada a exposição?

Logo no início, apresentam-se quatro peças-chave de museus da Europa e dos Estados Unidos, que remetem para o passado histórico e artístico de cidades como Damasco, Mossul ou Raca, hoje cenários de guerra, e que têm, por isso, um valor ímpar.

Seguem-se cinco núcleos temáticos, ao longo dos quais serão mostradas cerca de 150 peças, a maioria pertencente à coleção do Museu Gulbenkian. A elas juntam-se mais de cinco dezenas de peças vindas de museus de todo o mundo.

Apesar de não ser uma exposição biográfica, seguimos a vida de Gulbenkian e encontramos momentos que abrem janelas para diversos contextos.

A que contextos se refere?

Vários, marcados por algumas datas-chave: 1869, ano do seu nascimento, em pleno Império Otomano; depois 1898, altura em que, já na Europa, Calouste Gulbenkian começa a colecionar obras do Médio Oriente.

O ano de 1907 remete-nos para Raca, onde foram encontradas cerâmicas intactas do século XII e XIII que chegaram à Europa pela já referida rede dos negociantes arménios. Crê-se que Gulbenkian tenha sido um dos primeiros colecionadores a adquirir peças deste “grande achado”, como ficou conhecido.

É também destacado o ano de 1914, em que se dá o acordo de Calouste Gulbenkian com a Turkish Petroleum Company e tem início da I Guerra Mundial, que teve grandes repercussões no Médio Oriente, com criação de novos Estados.

O ano de 1918 assinala o final da Guerra e também o reforço da fortuna de Calouste, que, num período de cinco anos, adquire duas centenas de peças de arte islâmica.

E como termina a exposição?

Termina com a vinda de Calouste para Lisboa, dando conta das suas últimas aquisições de arte islâmica, incluindo o célebre vaso da coleção que remete para o poema sufi A Conferência dos Pássaros.

Neste poema, os pássaros reúnem-se para encontrar um novo líder e, para tal, decidem iniciar uma longa viagem em busca do pássaro mítico Simorgh. Após uma árdua viagem através de sete vales e sete montanhas, as aves veem-se refletidas nas águas de um lago e compreendem que são elas mesmas o soberano que procuravam.

É com esta belíssima peça, inspirada neste sugestivo poema, que a exposição termina, em 1949, precisamente numa altura em que começa a ser fundada uma nova ordem mundial. 

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