Uma orquestra cheia de afetos

Um projeto PARTIS usa a música para mitigar relações conflituosas e a agressividade com que crianças dos 3 aos 6 anos convivem diariamente.
Orquestra dos Afectos © Márcia Lessa
16 dez 2019

A sessão começa com a canção do Bom Dia. À volta de um círculo, cada um diz o seu nome e faz um gesto a seu gosto, que os outros imitam. Muitos ainda se apresentam em surdina, com as mãos enfiadas no meio das pernas, mas já há quem o faça alto e bom som, com braços no ar ou uma careta, prova de que simples brincadeiras são capazes de levar crianças dos três aos seis anos a vencer o desconforto da exposição. E se permitem isto, o que mais não haveriam de permitir?

Vânia Moreira, violoncelista, senta-se no meio deste grupo do Jardim de Infância Amélia Vieira Luís, em Carnaxide, para dirigir esta sessão da Orquestra de Afectos como uma verdadeira maestrina, dando espaço à expressão de cada um, mas pondo-os a todos a trabalhar na mesma direção. Distribui ovos musicais que são passados de mão em mão, orienta o ritmo, incentiva os miúdos a juntarem as suas vozes à sua, fala, ouve-os com atenção, teatraliza. E sugere ainda dinâmicas como a do condutor que ora está contente ora faz voz mais grossa, ou a da condutora mais tímida e daqueloutro mais… “Zangado!”, grita-se da roda. Vânia aproveita a deixa: “E a vocês, o que vos deixa zangados?”, pergunta ao grupo, inserido num território escolar onde a agressividade é um dado reconhecido.

“Quando queremos ver televisão e a mãe não deixa”, ouve-se. “Quando batem nas pessoas.” “O meu mano às vezes abusa.” A monitora cavalga a onda: “E o que podemos fazer para que fiquem menos zangados?” Sem respostas, Vânia engancha: “O que me ajuda a mim quando estou zangada é um abraço.” A resposta contenta o grupo, mas para a próxima, tentará abrir novos caminhos, apresentar soluções, ferramentas para as crianças saberem lidar com situações de zanga e agressividade, como lhe sugere, no fim da sessão, Daniela Leal, a psicóloga que acompanha o projeto.

Afinal, a Orquestra de Afectos candidatou-se à Iniciativa PARTIS – Práticas Artísticas para a Inclusão Social, financiada pela Fundação Gulbenkian, com esse propósito: “trabalhar a comunicação afetiva no jardim de infância através da música, como forma de mitigar relações conflituosas que resultam, em muito, numa transferência dos problemas dos bairros circundantes para a escola”, refere a candidatura. A música é, como na Orquestra Geração (a “irmã mais velha” da Orquestra de Afectos), a ferramenta para promover competências pessoais (afetividade, criatividade, comunicação, pensamento divergente) e sociais (relação afetiva aberta e diversa, baseada na calma e amabilidade) que lhes servirão para as suas vidas e para as dos que os rodeiam.

Porque se os miúdos são os beneficiários mais diretos das sessões, o projeto pretende envolver e desenvolver outras relações: das educadoras e auxiliares com os alunos, dos pais com a escola… A ideia é chegar ao maior número de pessoas, para que a dinâmica se estenda à comunidade educativa e sobreviva ao projeto.

O texto vai longo. Já se teatralizou a canção do girassol e a gambiarra de luz ténue que “traz calor”, conforto, passou por todos. Lá fora decorre uma rixa entre alunos mais velhos que passa despercebida. A sessão chega ao fim e despedimo-nos melodicamente: Está na hora do adeus / Para a sala vou voltar / Ao meu amigo do lado / Um abraço vou dar.

Orquestra dos Afectos © Márcia Lessa
Orquestra de Afectos © Márcia Lessa
Orquestra dos Afectos © Márcia Lessa
Orquestra de Afectos © Márcia Lessa

A música, como elo de ligação

Há dias em que alunas seniores da Orquestra Geração (OG) se juntam, com os seus instrumentos, às monitoras. O projeto Orquestra de Afectos nasceu quando Helena Lima, coordenadora artística do projeto, concluiu, através de atividades da Orquestra Geração nas escolas, que alguma da “agressividade observada tem origem numa idade prévia à entrada na OG e que a sua prevenção depende de uma abordagem que começa no jardim de infância”.

A realidade onde se insere o projeto não é desconhecida das alunas da OG. A sua presença é, pois, vista como uma grande mais-valia – “há uma proximidade etária e de contexto com a população que se pretende tocar”, explica Helena Lima. Em contrapartida, as alunas retiram da experiência valências importantes para a sua vida futura. Todos ficam a ganhar.

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