“Como no teatro, nós vamos falhar, e depois falhar melhor”

Conheça a história de I., uma jovem residente no Centro Educativo Navarro de Paiva que descobriu a sua paixão pelo teatro através do projeto Mare Liberum, apoiado pela iniciativa PARTIS.
© Carlos Porfírio
11 jan 2021

I.[*] foi uma das participantes no primeiro ano do Mare Liberum, um projeto-piloto de capacitação de um grupo de jovens residentes no Centro Educativo Navarro de Paiva, em Lisboa, que acolhe jovens com idades compreendidas entre os 12 e os 21 anos a quem tenha sido aplicada uma medida tutelar de internamento pela prática de crime. Desenvolvido pela Aporvela – Associação Portuguesa de Treino de Vela e a CUSCA – Cultura e Comunidade, este projeto pretende, através do estímulo físico (a navegação) e artístico (oficinas de escrita criativa e do teatro), fornecer-lhes ferramentas que contribuam para a sua reinserção na sociedade. Do primeiro ano resultaram duas apresentações públicas do espetáculo “Monstro em Mim”: a primeira, na Caravela Vera Cruz, em outubro de 2019, e a segunda na Fundação Calouste Gulbenkian, no âmbito da mostra Isto é PARTIS, em janeiro de 2020.

© Márcia Lessa
© Márcia Lessa
© Márcia Lessa

Falámos com I. em dezembro, a duas semanas do Natal. Sentada no sofá de uma das salas de convívio do Centro Educativo Navarro de Paiva, de pernas cruzadas – o seu “tique de nervosismo”, como viemos a saber durante a entrevista – encontramos uma rapariga de 17 anos de ar confiante, cordial e assertiva. Começou em setembro as aulas do Curso Profissional em Artes de Espetáculo-Interpretação, no Instituto de Desenvolvimento Social (IDS), que, nas suas palavras, estão a correr “muito bem”. “É muito puxado”, desabafa. “Mesmo quando penso que as coisas estão perfeitas, falha sempre alguma em que nem sequer tinha pensado”.

Mare Liberum ©Márcia Lessa
Na Caravela durante a primeira apresentação de "Monstro em Mim"©Márcia Lessa
Mare Liberum ©Márcia Lessa
Na Caravela durante a primeira apresentação de "Monstro em Mim"©Márcia Lessa

Acordar o monstro do palco

“No início não estava a ligar muito àquilo”, conta-nos I. “Era um passatempo para poder sair da Unidade [Residencial], um projeto, uma brincadeira”. Foi no dia da primeira atuação, na Caravela, que tudo mudou. “Fiquei muito emocionada com as palmas, e eu não me emociono facilmente. Comecei a tentar perceber, aqui dentro de mim, porque é que aquilo estava a mexer tanto comigo”.

A atuação na Gulbenkian, a que assistiram mais de 100 pessoas, foi outro desafio decisivo. “Por ser muita gente, pedi mais de mim e vi de que era capaz”, confessa. “Em janeiro, após o espetáculo, várias pessoas vieram dizer-me que gostaram muito, outras que ouviram falar e adoraram, e eu comecei mesmo a pensar nisso, a lembrar-me daqueles momentos, e decidi que ia para teatro”.

Isto é PARTIS 2019 © Carlos Porfírio
Isto é PARTIS 2020 © Carlos Porfírio
Isto é PARTIS 2019 © Carlos Porfírio
Isto é PARTIS 2020 © Carlos Porfírio

Em junho/julho, com a ajuda da equipa artística da CUSCA (Catarina Aidos e João Custódio), filmou um vídeo de apresentação – em que interpreta um excerto de “Angel City”, de Sam Shepard – e candidatou-se a duas escolas: Dom Pedro V, nas Avenidas Novas, e IDS, no Largo da Luz. Entrou nas duas, acabando por escolher o IDS.

Com as aulas a começar e a medida tutelar a chegar ao fim, os planos para o futuro vão tomando forma. “Já estou a pensar ir para a Faculdade de Teatro e Cinema, na Amadora, quando acabar a escola”. A longo prazo vê-se em novelas, filmes e teatro. Escreve livros (e espera vir a publicá-los) e recentemente descobriu que também gosta de dança contemporânea.

À pergunta sobre o que aprendeu ao longo do caminho, I. responde prontamente: “ajudou-me bastante na autoestima, a acreditar em mim, a não pensar que a outra pessoa é melhor do que eu ou inferior, mas sim que somos iguais; diferentes mas iguais”. O outro grande ensinamento foi o de que “não tem mal” se falhar. “É como no teatro: nós vamos falhar, e depois falhar melhor e falhar melhor, mas vamos sempre falhar, porque falhar é normal”.

I. na Caravela durante os ensaios para "Monstro em Mim" © Márcia Lessa

Aprender a ir, mesmo com medo

“No início, I. tinha uma resistência enorme a expor-se, a participar, e dizia claramente que não ia para palco” conta Catarina Aidos. “Depois de ela arriscar, aquilo que vimos revelar-se foi um monstro, um monstro bom, uma miúda cheia de talento, efetivamente”. Além da sua expressividade, mostrou também uma “capacidade incrível: I. sabia todos os textos, de toda a gente. No espetáculo da Gulbenkian fez três personagens, a dela e a de mais duas que ao longo do tempo foram saindo do projeto”.

Já João Custódio descreve o processo como um “apaziguamento”. “Foi-se apaziguando com ela mesma. Foi canalizando as recompensas que ia tendo pelo seu desempenho e hoje é uma miúda que venceu em todos os aspetos. É um orgulho imenso para nós porque sentimos que fizemos algo para que isso acontecesse, mas a maior parte é genuinamente dela”.

Catarina Aidos e João Custódio © Márcia Lessa
Catarina Aidos e João Custódio © Márcia Lessa

Se para Catarina e João, o exemplo de I. é a razão pela qual estes projetos existem, I. também atribui ao projeto toda a responsabilidade pelo caminho que acabou por tomar, reconhecendo a importância deste tipo de estímulos dentro do Centro Educativo. “Nós entramos aqui com a cabeça um bocado desviada do caminho certo e ao fazermos coisas diferentes vamos perceber que há alguma para a qual temos um dom, que fomos mesmo feitos para aquilo. Só que lá fora se calhar não conseguimos entender, não vamos saber que aquele é o caminho”.

“Aprender a dominar o medo” é o que Catarina Aidos acredita ser “o mais fundamental que I. vai ter na vida, no teatro, no cinema, na televisão ou fora disso”. É também isso que nos diz I. no conselho que deixa a todos os que, como ela, se terão perdido no caminho: “Se tiver oportunidades, aproveite todas, tudo. Mesmo que não goste, depois pode começar a gostar na mesma”.

[*] Para proteção da identidade da pessoa em causa, não é referido o seu nome completo

 

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