A História do Soldado

Orquestra Gulbenkian / Lorenzo Viotti

Lorenzo Viotti Percussão / Direção musical / Narração
Vadim Tsibulevsky Violino
Pedro Vares de Azevedo Contrabaixo
Iva Barbosa Clarinete
Vera Dias Fagote
Adrián Martínez Trompete
Sergi Miñana Trombone

Jean Paul Bucchieri Encenação / Figurinos
José Álvaro Correia Luz
Miguel Borges Soldado
João Lagarto Diabo
Ana Jezabel Figura Feminina

Teresa Silveira Machado Assistente de encenação
Bárbara Magalhães Figurinos / Assistente de guarda-roupa
Ricardo Junceiro Aderecista
Joana Cornelsen Maquilhagem e cabelos
Joana David Pianista correpetidora

Igor Stravinsky (1882 – 1971)
A História do Soldado

Encenar Stravinsky ou musicar Ramuz

Afinal L’Histoire du Soldat é uma obra de teatro ou uma obra musical? Stravinsky, a 13 de Fevereiro de 1913, confiava ao jornalista do Daily Mirror: “Je n’aime pas l’opéra. Ma musique peut se marier au geste ou à la parole mais non aux deux à la fois sans être bigame.“ E ainda: “Il est difficile de situer L’Histoire du Soldat dans une catégorie précise de théâtre musical mais l’opéra est au fond ce qui s’en rapproche le plus. Si dans L’Histoire du Soldat aucune note n’est chantée, le rythme de la déclamation est, à certains moments, écrit dans la partition.“ Pensei de imediato: porque não pedir ao maestro para assumir a narração da história enquanto dirige a orquestra e toca a percussão? Foi o que aconteceu, o desafio foi logo aceite: um contador de histórias que dirige a música das palavras.

A obra de Stravinsky, com textos de Ramuz a partir de dois contos russos, é ainda hoje uma história popular. Torna-se difícil não ser fiel à narrativa original e ao seu projecto inicial bem como difícil é esconder a moral que a história vai revelando. Penso que Stravinsky e Ramuz quiseram levar à cena a natureza humana em toda a sua fragilidade. O Soldado, nómada e frágil (o nosso, no entanto, também inconformado e algo rebelde), descobre, como nos contos de fadas repletos de magia, dotes extraordinários para tocar violino. É uma figura em constante deslocação (contamos várias reprise da Marche du Soldat), quase como se houvesse sempre uma espécie de inconformidade com os lugares que vai ocupando. O Diabo, irónico e incoerente, sem alma, revelado pela percussão, procura essa mesma alma nos outros e deseja, por exemplo, apossar-se da alma do soldado, que o seu violino manifesta. É um Diabo que aparece sempre quando menos estás à espera, sempre pronto a manipular-te, uma figura com a qual não é possível não te confrontar.

Stravinsky parece participar da desgraça e da solidão destas figuras, como símbolos da condição humana. Na nossa versão, procuramos dar vida a uma cumplicidade, talvez inimaginável, entre duas personagens tão aparentemente distantes. Depois, decidimos construir uma figura feminina que pudemos imaginar como foi concebida originalmente, princesa encantada, mas que quisemos imaginar também enquanto mãe, namorada do soldado ou ainda enquanto figura de um sonho, omnipresente e silenciosa, mas também inalcançável. Pensei em Chagall, tive o Dr. Fausto presente, reflecti o Stravinsky e o Ramuz com o maestro Lorenzo Viotti. Partilhei como sempre as ideias e as vontades com os actores, mais generosos e incansáveis do que nunca, para encontrar uma possível justa dimensão à dramaturgia. Fui ao encontro do Pasolini que, se não tivesse morrido tão precocemente, teria realizado um filme a partir de L’Histoire du Soldat. Recuperei, por isso, um ensaio que foi escrito para a dramaturgia deste mesmo filme que me ajudou a olhar transversalmente para a obra e a reforçar um conjunto de ideias que tinha construído.

Mas como ir ao encontro da vontade de uma ideia fundamental de “faire simple” de Stravinsky e Ramuz; ou seja, de conceber uma obra que pudesse “ser montada sobre cavaletes e desmontada a cada representação para ser levada a todas as aldeias enquanto espectáculo popular”? Como adequar o Auditório da Fundação Gulbenkian a este dispositivo simples e fundamental, às ideias dos dois criadores? Como mover um “teatro de rua” para dentro – ou fora – deste espaço tão poderoso? Ou como mover este espaço tão poderoso para este “teatro de rua”? Uma orquestra e um grupo de actores, que se fazem e desfazem a cada representação. Mantivemos a ideia de um teatro ambulante que passasse por nós, fizesse a sua representação e nos abandonasse, para seguir viagem.

Finalmente, mesmo que não quiséssemos, torna-se inevitável olhar para o panorama actual que situação pandémica nos obriga a viver. Inútil será discutir as suas consequências. Mas não quisemos deixar de observar a sua actualidade por duas razões. A primeira prende-se com uma curiosa coincidência: L’ Histoire du Soldat estreou-se a 28 de Setembro de 1918, mas logo a seguir, todos os espectáculos previstos na digressão foram cancelados por causa da gripe espanhola de 1918, que acabou por tomar conta progressivamente de toda a equipa. A segunda razão para falarmos ainda da pandemia prende-se com as limitações a que a encenação está sujeita, seguindo (justamente) as regras da DGS. Encenar é sempre uma aprendizagem sobre as relações humanas, um exercício acerca da liberdade, uma viagem com imprevistos, um percurso no desconhecido e nas incertezas que a criação pede. Mas as limitações impostas trouxeram ainda novos desafios que nos conduziram ao “caminho da aproximação”, necessário para a construção da obra, através do afastamento exigido pela regras e pelas formas de vida, a que o Covid-19 nos levou. Olhar para um actor num ensaio com máscara, não poder tocar ninguém, não poder passar os objectos de cena entre intérpretes ou ainda ver a orquestra, separada por painéis acrílicos, contraria a natureza desta arte. É uma sensação à qual não queremos acostumar-nos. O que mais precisamos é não nos determos neste lugar que põe em causa as nossas liberdades: olhar para a frente, atravessando a incerteza e a dúvida. Procurar compreender. Poder voltar a estar próximo do outro sem desconfiar do corpo do outro, do toque do outro e da legitimidade do abraço com o outro. Fazer teatro é justamente entrar em relação com outro, na sua plenitude. Desejo, por isso, que o rosto não seja mais feito de olhos só. Como dizia Aristóteles. Cada cidadão deve conhecer o rosto de todos os outros. 

Jean Paul Bucchieri

Texto de Charles-Ferdinand Ramuz
Composição: 1918
Estreia: Lausanne, 28 de setembro de 1918
Duração: c. 60 min.

Exilado na Suíça durante a Primeira Guerra Mundial, Igor Stravinsky travou conhecimento, logo em 1915, por intermédio do maestro Ernest Ansermet, com o romancista suíço Charles-Ferdinand Ramuz. Numa fase em que ambos atravessavam dificuldades financeiras, colaboraram inicialmente na elaboração das versões francesas de Renard e Les Noces, entre outras obras, e pouco depois partiriam mesmo para uma nova criação conjunta, que pudesse ser produzida de forma simples e económica. A sugestão de Stravinsky incidiu sobre um conto russo de Alexander Afanasyev, e foi a partir daí que Ramuz concebeu a sua narrativa. Terminada em 1918, L’Histoire du soldat requeria a participação de um narrador, dois atores (nos papéis do Soldado e do Diabo), uma bailarina silenciosa (no papel da Princesa), e ainda um ensemble, explorado com o engenho habitual, constituído por dois instrumentos de cada família: violino e contrabaixo, clarinete e fagote, trompete e trombone, para além da percussão. A primeira audição teve lugar em Lausanne, a 28 de setembro de 1918, sob a direção de Ansermet, com sucesso assinalável, mas a expectativa dos autores de apresentar a peça numa tournée, e assim obter alguma compensação financeira, depressa sairia frustrada, devido ao impacto que por essa altura a epidemia de gripe pneumónica tinha por toda a Suíça, e até em vários dos intérpretes envolvidos. Mais tarde, caberia também a Ansermet a direção da versão instrumental, com um final significativamente ampliado, a qual teve lugar em Londres, a 20 de julho de 1920.

A ação de L’Histoire du soldat é apresentada por meio de dança e mímica, numa sequência de quadros conectados pelas intervenções do narrador. A Parte I abre com a alegre “Marche du soldat”, que acompanha um soldado – não importa de que exército –a caminho de casa, em licença. Na primeira cena (“Petits airs au bord du ruisseau”), o Soldado detém-se à beira de um riacho, para descansar, tocando uma melodia no seu violino. Disfarçado de um velho caçador de borboletas, surge o Diabo tentando convencê-lo a trocar o instrumento (que aqui simboliza a sua alma) por um livro mágico que permite conhecer o futuro. Em seguida, tenta o Soldado com imagens luxuriantes, e após três dias condu-lo magicamente à sua aldeia natal. Uma reprise da “Marche du soldat” introduz a segunda cena, na qual o Soldado, encontrando-se na sua aldeia, compreende ter sido ludibriado: passaram três anos, não três dias, ninguém o reconhece e a sua noiva constituiu família. O Soldado questiona-se sobre o que fazer (“Pastorale”) e o Diabo volta a surgir, agora disfarçado de mercador de gado, tentando novamente convencê-lo de que o livro mágico pode torná-lo rico. A terceira cena começa quando o Soldado, desinteressando-se da riqueza que havia acumulado, desfaz o livro em pedaços (reprise de “Petits airs au bord du ruisseau”). O Diabo mostra-se novamente, mascarado de uma velha comerciante de roupas, e o Soldado recupera o seu violino, mas arremessa-o para longe quando descobre que já não é capaz de tirar som dele.

A Parte II inicia-se com uma repetição modificada da “Marche du soldat”, enquanto o Soldado caminha sem rumo. Na quarta cena, o personagem vê-se noutro país, onde um rei prometeu a mão da sua filha doente a quem a conseguisse curar, chegando ao palácio ao som da “Marche royale”. E na quinta cena, uma vez no local, depara-se outra vez com o Diabo, disfarçado desta feita de violinista virtuoso, perdendo propositadamente para este um jogo de cartas, fazendo-o beber até cair inconsciente e recuperando o seu violino. Na sexta cena, no quarto da Princesa, o Soldado toca um tango, um valsa e um ragtime enquanto a princesa dança e recupera. Quando o diabo entra sem disfarce, é também obrigado a dançar até à exaustão (“Danse du diable”), e depois Soldado e Princesa abraçam-se ao som de um célebre coral luterano “Deus é o nosso refúgio” (“Petit Choral”). O Diabo irrompe ainda uma vez, trazendo um aviso terrível (“Couplet du diable”): o Soldado não deverá cruzar a fronteira para a sua aldeia natal, sob pena de ver reclamada a sua vida. Uma vez afastado pelo violino do Soldado, as palavras moralizantes do narrador são ironicamente acompanhadas pelo mesmo coral, parodiado pelo compositor com um tratamento dissonante (“Grand Choral”). Na cena final, quando o Soldado e a Princesa cruzam a fronteira, o Diabo apodera-se definitivamente do violino, e a marcha que se segue (“Marche triomphale du diable”) vai definhando até à sua sinistra conclusão.

Luís M. Santos

 

 

 
 

 

Atualização em 02 fevereiro 2022

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