Uma Espiral Entre o Céu e a Terra

“Um triunfo da mente sobre a matéria.” Com estas enfáticas palavras, Philipp Spitta, biógrafo de Bach, descrevia a música para cordas composta por Johann Sebastian Bach entre 1717 e 1723. Este trabalho inclui não só as Seis Suites para Violoncelo, mas também várias sonatas e partitas destinadas ao violino. Em cada uma das seis suites, Bach demonstra consistentemente não só o seu completo conhecimento das possibilidades técnicas do violoncelo, mas também a capacidade deste instrumento, genericamente visto como exclusivamente “monofónico”, para transmitir a abundância polifónica e harmónica da linguagem musical do compositor. Acordes ou contraponto polifónico são elementos, de facto, difíceis de tocar num violoncelo. No entanto, dentro dos limites que Bach impôs a si próprio, o compositor conseguiu escrever música que soa tão rica e desafogada como as suas grandes obras para tecla ou para coro. Foi precisamente este aspeto que tornou as suites para violoncelo num marco da música ocidental.

Como coreógrafa e bailarina, Anne Teresa De Keersmaeker é fascinada por Bach, nomeadamente pela sua capacidade de criar ciclos monumentais a partir de uma grande austeridade de meios. Sem surpresa, o trabalho de De Keersmaeker exibe uma semelhante procura pela “substância” e pela “essência.” Em entrevistas, ela descreve invariavelmente a coreografia como “a organização do movimento no tempo e no espaço.” O eixo horizontal é o social, e nele os seres humanos aproximam-se ou evitam-se. O eixo vertical é espiritual, estendendo-se entre o céu e a terra, a mente e a matéria. A música de Bach determina não só a noção de tempo, mas também o uso do espaço na coreografia de De Keersmaeker das seis suites para violoncelo. No palco descobrimos o plano do chão, colorido e geométrico e formado por um conjunto de pentagramas, círculos e espirais, todos ligados entre si de forma a parecer que não têm fim. Aspeto fundamental para esta organização espacial da coreografia, acima de tudo, foi a decisão de colocar o violoncelista Jean-Guihen Queyras no mesmo espaço dos bailarinos. Como violoncelista, Queyras não está posicionado de frente para o público como é tradicional numa sala de concertos. Em vez disso, a sua localização no palco é diferente no início de cada uma das suites. À medida que a performance se desenrola, esta opção abre a espiral no plano do chão, resultando em pentagramas que aumentam em tamanho. Isto permite ter uma perspetiva diferente da presença física do violoncelista e dos bailarinos em cada suite. Da magistral estrutura do ciclo em seis partes de Bach surge a estrutura arquitetónica da coreografia.

Durante os ensaios com Queyras e os seus bailarinos, De Keersmaeker analisou as frases e a estrutura harmónica nas quais está baseada a arquitetura e a retórica das suites. Atrás da linha melódica principal do violoncelo podemos detetar uma inaudível linha de baixo que é a força motriz da evolução harmónica da peça. De Keersmaeker tenta integrar os movimentos dos bailarinos na estrutura harmónica da peça de Bach. Modulações ou mudanças de modo maior para menor afetam o desenvolvimento no eixo vertical, que se alinha com o movimento em espiral da coluna vertebral humana.

Num nível mais formal, as seis suites para violoncelo tendem a assemelhar-se às Suites Inglesas de Bach, escritas para o cravo. Cada uma das seis suites é constituída por seis partes. As danças tradicionais da suite barroca – allemandes, courantes, sarabandes e gigues – são todas precedidas por um extenso prelúdio. Entre as sarabandes e as gigues, Bach adiciona as ditas “gallantries”: minuets, bourrées e gavottes. Apesar da sua composição semelhante, cada uma das suites possui o seu próprio caráter, distinguindo-se umas das outras. Foi por esta razão que De Keersmaeker decidiu ligar cada uma das primeiras quatro suites à personalidade de cada um dos seus quatro bailarinos.

No prelúdio de cada suite, De Keersmaeker apresenta a personalidade individual do bailarino, começando com um movimento em espiral da coluna vertebral. O material coreográfico de cada bailarino está ligado ao carácter, à cor específica e à tonalidade musical da suite. Cada bailarino parte da mesma posição, frente a frente com Queyras, adotando o violoncelista um posicionamento diferente na geometria do palco em cada suite.

A decisão de ligar as primeiras quatro suites a diferentes bailarinos introduz-nos numa coreografia que, à primeira vista, parece ser principalmente monofónica, à semelhança da música de Bach. No entanto, à medida que a peça progride, De Keersmaeker introduz cautelosamente um elemento polifónico na coreografia. Nas allemandes que se seguem aos prelúdios, ela junta-se aos seus bailarinos e dança exatamente as mesmas frases coreográficas. Todos os bailarinos lhe respondem, mas cada um à sua maneira. Novas combinações são testadas de acordo com a frase de De Keersmaeker: “o resultado é um contraponto fluido, no qual os bailarinos copiam o material da minha frase com uma ligeira variação”. É um continuum quase perfeito entre as partes dançadas em uníssono e as partes dançadas em contraponto.

Nas outras danças que constituem cada uma das suites, De Keersmaeker e os seus bailarinos utilizam tipologias coreográficas contemporâneas em conjugação com os estilos clássicos de dança subjacentes à música original de Bach. Nas courantes, por exemplo, “correr” é o ponto de partida da coreografia. O nome desta dança de ritmo vivo tem origem na palavra francesa courir. Na obra, os bailarinos parecem, de facto, “correr” ao sabor da música nos círculos do plano geométrico do chão: no sentido dos ponteiros do relógio nas partes A e no sentido inverso nas partes B; em frente nas passagens em modo maior e para trás nas passagens em modo menor.

O andamento lento das solenes sarabandes, por seu lado, convida a posturas mais esculturais. Os bailarinos regressam ao coração do plano espacial do chão – o coração da espiral de abertura ligado a um pentagrama mutante. Tal como nos prelúdios, a coreografia começa a partir do eixo vertical, enxertada na estrutura harmónica da música.

Nos minuets, bourrées e gavottes a dança segue uma linha diagonal, formando uma tangente com a espiral desdobrada no plano do chão. O princípio subjacente a estas passagens – a que De Keersmaeker várias vezes se referiu como “o meu andar é a minha dança” – e a trajetória na qual os bailarinos caminham é a linha do baixo, o geralmente inaudível esqueleto musical das suites para violoncelo. O plano circular do chão também aparece nas gigues, onde a coreografia funciona como uma resposta ao caráter brilhante e virtuoso destas rápidas danças conclusivas.

É típico da natureza sistemática do pensamento de Bach que as seis suites tenham sido planeadas como um ciclo. Isto torna-se evidente, por exemplo, no facto das penúltimas partes serem minuets nas primeiras duas suites, bourrées na terceira e quarta suites, e gavottes nas duas suites finais. Enquanto De Keersmaeker atribui os minuets a um só bailarino, as bourrées são dançadas por dois e três bailarinos respetivamente, e a gavotte por cinco.

A partir da quinta suite, Bach empreende uma mudança de rumo. O extenso prelúdio bipartido remete para a abertura francesa, na qual uma longa e imponente introdução precede uma fuga. Isto parece iniciar um novo capítulo no ciclo de seis partes. O facto de Bach ter escrito uma fuga para um instrumento essencialmente monofónico demonstra o feito único desta obra. Toda a Suite em Ré menor é impregnada com uma sonoridade incomum, uma vez que Bach definiu que a corda Lá fosse afinada em Sol. Isto permitiu-lhe gerar harmonias e ressonâncias diferentes das habituais com a afinação usual. A melancólica sarabande é o coração negro não só da quinta suite, mas de todo o ciclo. Neste ponto, a coreografia é caracterizada pela escuridão, pelo vazio e pela ausência.

Por contraste, a sexta suite, em Ré maior, exibe um espírito mais exuberante, claramente escolhido por Bach como uma coroa para todo o ciclo. Embora construindo ainda sobre os modelos que serviram de base às suites anteriores, Bach dirige-se agora, de forma significativa, em direção à expressividade e à dificuldade técnica da música. A sexta suite requer um violoncelo equipado com uma quinta corda, afinada em Mi agudo. Desde o início, a suite partilha as sonoridades de uma festa animada. Seguindo o simbolismo de uma maré alta, a sexta suite é sentida como uma ressurreição depois do escuro de profundis da quinta suite. O triunfo de Bach da “mente” sobre a “matéria” surge agora como nada menos do que um triunfo da vida sobre a morte. Com a própria De Keersmaeker incluída, a sexta suite transforma-se numa dança coletiva na qual os seis intérpretes – cinco bailarinos e um violoncelista – estão juntos no palco. “Para mim, o génio de Bach reside no facto de ele ser não só um grande músico, mas também um arquiteto, um pintor e um poeta” diz a coreógrafa. “Num ciclo como o das Seis Suites para Violoncelo há uma narrativa discernível que sublinha toda a obra, uma história de experiência existencial e de sentimento humano. É a história de uma condition humaine com que todos se podem identificar.”

Jan Vandenhouwe

Atualização em 05 janeiro 2022

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