Nos trópicos com a Orquestra Gulbenkian

13 nov 2016

Dia 9 de novembro. O mundo acordava com a notícia de que Donald Trump tomará posse como presidente dos EUA. A Orquestra Gulbenkian está a deixar São Paulo, onde deu três concertos, a caminho do Rio de Janeiro, onde se apresentaria na noite dessa quarta-feira. O assunto domina as conversas. É, também, o dia em que caiu o Muro de Berlim, há 27 anos. Mas só Varoujan Bartikian se lembra dessa data histórica, também na sua biografia de violoncelista. “Enquanto na Alemanha caía o muro, eu voava da Rússia para Lisboa.”

Vinha “por dois anos” e depois regressava a casa, onde fazia parte do quarteto de Yerevan, a capital da terra natal de Calouste Gulbenkian. “Para nós é motivo de orgulho, não há outra orquestra com o nome de um arménio”, diz. Não foi casualidade que Varoujan Bartikian e Levon Mouradian, os dois arménios da orquestra chegassem a Lisboa. Em 1989 a fundação abriu uma audição no país de origem do seu fundador, Calouste Gulbenkian. Eles, com 29 e 30 anos, já profissionais, aceitaram vir, tal como três outros músicos (um deles voltou à Arménia, outro saiu e um terceiro faleceu). “A situação ficou muito má na Arménia”, dizem ambos.

São, por esta altura, alguns dos artistas com mais experiência na Orquestra Gulbenkian, que nesta semana fez uma digressão brasileira quebrando um jejum que recuava a 1995, quando atuaram no Rio de Janeiro e em Curitiba, em Buenos Aires e em Montevideu.

A orquestra tocou no Parque do Ibirapuera, duas vezes na Sala São Paulo, antiga estação de comboios convertida em teatro e sede da Orquestra do Estado de São Paulo (OSESP) desde 1999, e uma vez, a última, no centenário Theatro Municipal do Rio de Janeiro. O violoncelista brasileiro António Meneses foi o solista convidado, Lawrence Foster, do diretor artístico, velho conhecido da Gulbenkian. Foi titular por mais de uma década, até 2013. Atualmente, e depois de Paul McCreesh, ninguém ocupa esse lugar.

Na noite de 8 de novembro, antes do segundo concerto da Orquestra Gulbenkian na Sala São Paulo, Foster trocou impressões com um nervoso André Cameron, violetista norte-americano da Carolina do Norte, sobre as sondagens nos EUA. “Não acredito nas sondagens”, disse e repetiu o músico, com a luz do telemóvel a refletir-se nos óculos, e o mapa dos EUA cada vez mais encarnado. Dizia que tinha medo do que aí vem, e, por essa altura, as contas finais não estavam feitas. “Com este gajo temos o Ku Klux Klan a aparecer em público com as bandeiras do Sul a intimidar as pessoas”, afirma o músico, de 59 anos.

Conta que tinha 14 anos quando foi pela primeira vez à escola com brancos. Apesar da ordem federal que abolia a segregação, só em 1970 foi aplicada na Carolina do Norte. Diz que vem de uma família privilegiada. O pai foi à universidade e a mãe também . Em 1944, um grupo de soldados destacados para a II Guerra Mundial, sem saber se voltariam, criou uma bolsa de estudos que lhe foi atribuída. No caso de André, em 1971 estava no conservatório em Boston e em 1978 fazia parte da orquestra do Scala, em Milão. De Itália que veio para Lisboa, após a saída do maestro Claudio Abbado.

A orquestra Gulbenkian, como quase todas, é um caldeirão cultural de nacionalidades. Nesta particular organização das nações unidas estão representados EUA, Espanha, Inglaterra, França, Uruguai, Alemanha, África do Sul, Venezuela, Roménia, China, Arménia e Rússia. Por esta altura, contratada por um ano, há uma violinista dinamarquesa e um concertino convidado sueco, Eric Heide. A pessoa mais jovem, 28 anos, é o trompa italiano Gabriel Amarù, que não foi o último a entrar. Esse papel cabe a Iva Barbosa, do Porto.

Tem 36 anos, é clarinetista, já tinha tocado com a orquestra no passado e em setembro começou o seu período experimental de um ano na Orquestra Gulbenkian. Passou as três provas da audição, atrás de uma cortina, até à final, com cinco pessoas, e ganhou. “Sempre quis isto.” Já tinha prestado provas quatro vezes, nas audições que a Gulbenkian organiza anualmente. Começou a tocar com 7 ou 8 anos, entrou no conservatório aos 10 e diz que até aos 18 esteve indecisa entre o curso de Música e Comunicação Social, conta após o primeiro concerto em São Paulo, na manhã de domingo, no Parque Ibirapuera, o único organizado neste local pela Sociedade de Cultura Artística de São Paulo, responsável pela digressão brasileira da Orquestra Gulbenkian.

Nos bastidores do concerto, os músicos reencontram António Anjos, violinista da orquestra até 2009. Depois de se reformar, aos 60 anos, idade prevista para quem toca instrumentos de corda (os sopros, por exemplo, podem terminar a carreira mais cedo, aos 55 anos), mudou-se para o Recife com a mulher e pensava não levar o instrumento. “Os meus filhos disseram-me que se não trouxesse o violino ia sofrer.” Fez-lhes a vontade e agora é primeiro-violino da orquestra do Recife. “A cidade é bonita, faço o que gosto, não é um trabalho, é um prazer. A nossa profissão é maravilhosa”, assegura. Pedro Pacheco diz isso mesmo: quando está num concerto continua a ser “o rapaz que gosta de tocar violino”. Ele tinha 3 anos quando começou.

Os músicos começam cedo, invariavelmente. “Quando olho à volta estou rodeado de pessoas que perderam a sua infância e juventude para tocar”, diz Pedro Pacheco, violinista, oriundo dos Açores, onde num concerto no Teatro Micaelense foi descoberto por dois profissionais, Vasco Barbosa e Alberto Nunes. É um dos mais bem-dispostos do grupo. E quando diz que se perde infância ou juventude não há amargura na voz. É uma constatação. Ele, por exemplo, era, e é, “o miúdo que gosta de tocar violino”. Depois de ir para o continente com a família, prosseguiu os estudos na Academia de Música de Santa Cecília, em Lisboa, onde hoje dá aulas, e, depois, em Paris, com uma professora norte-americana, como bolseiro da Fundação Gulbenkian. A orquestra veio logo depois, em 1990.

Houve um tempo, lembra Isabel Pimentel, viola de arco, que a orquestra tinha muito mais estrangeiros do que portugueses. Ela, que que faz 37 anos em janeiro que entrou para a orquestra, lembra-se como nos anos 1990, com a abertura do Leste, chegaram muitos, por exemplo. Antes dela, outras instrumentistas tinham chegado até mais jovens. “A Ana Bela Chaves, a Clélia Vital ou a Maria José Falcão entraram com 15 anos para a orquestra.”

Hoje, está feito o equilíbrio, ainda que não existam quotas. É consensual entre os músicos da digressão que a qualidade melhorou, como explica o trompetista inglês Stephen Mason, que em Portugal tocou na extinta Orquestra do Teatro de São Carlos e na Orquestra Sinfónica Portuguesa antes de se fixar na da Fundação Calouste Gulbenkian. “Em 1984 a qualidade era inferior. Também se vê na Gulbenkian. Os sopros mais antigos são estrangeiros”, nota, elogiando Pedro Ribeiro, primeiro-oboé. “Esses lugares não teriam sido preenchidos por portugueses há 20 anos.”

Pedro Ribeiro é, aliás, quase caso raro. Fez toda a formação em Portugal e ingressou na Gulbenkian em 2000. É ex-aluno da ARTAVE – Escola Profissional Artística do Vale do Ave, onde Vera Dias, fagotista, 30 anos, também foi aluna.

Está entre as mais jovens da atual orquestra. A violetista Isabel Pimentel diz que tanto Vera Dias e a violoncelista Raquel Reis, 33 anos, “entraram quando já não era tão fácil”. Vera Dias usa a expressão “quando a música me encontrou ou eu encontrei a música” para falar do seu percurso. Tornou-se fagotista porque o destino estava atento. Descobriu casualmente a existência da ARTAVE, que faziam música e que tinham uma carrinha que ia buscar os alunos a casa. Pediu à mãe para a frequentar. Tinha 12 anos e sobravam poucos instrumentos para tocar. Foi assim que foi parar ao fagote. Diz que o primeiro ano foi duro, mas superou a prova. Estudou em Estugarda. Teve de aprender alemão em três meses. “A ver televisão e desenhos animados.” Contra os planos do seu professor na Alemanha, que a via em concursos internacionais, fez audição para a Gulbenkian e entrou. Tinha 20 anos.

Hoje, a orquestra tem menos elementos fixos e mais músicos contratados. Dos 79 elementos que voaram para São Paulo na sexta-feira, dia 4, 16 eram reforços. Era o caso de Artur Mouradian, filho de Levon Mouradian, 25 anos, e terceira geração de músicos na sua família. Já os avós estavam ligados à música popular arménia. Artur não tem planos de ficar numa orquestra, organiza concertos na Holanda onde estudou violino e viola de arco e quer “improvisar com outros estilos de música”. “É o que gosto realmente de fazer”, conta.

 

Residência artística

A digressão converteu-se quase numa “residência artística”, segundo o seu superintendente da Cultura Artística, Frederico Lohman. A instituição, fundada em 1912, na época em que São Paulo tinha 500 mil habitantes e nenhuma atividade cultural. Hoje são 20 milhões na área urbana e só a Orquestra do Estado de São Paulo (OSESP) dá 200 concertos por ano. “Acreditamos no papel transformador da música”, defende.

No último dia de concertos, já no Rio de Janeiro, Risto Nieminen, diretor do serviço de Música, sempre presente, assume que uma digressão como esta não se faz a toda a hora. “É preciso que aporte algo localmente também”. Daí os workshops que tiveram lugar na Escola de Música de São Paulo Tom Jobim (EMESP), em que também participaram os percussionistas portugueses Rui Sul Gomes e Nuno Aroso, a fagotista Vera Dias, o contrabaixista uruguaio Pedro Vares de Azevedo, o trompetista britânico Stephen Mason e a venezuelana Ana Beatriz Manzanilla, violinista.

“Tem de procurar sempre esse som e essa afinação, não levante os dedos do arco”, diz, firme, a professora. Tem duas horas para passar informação, não perde um segundo. “Tens de te ouvir, porque às vezes ouvimos o que queremos, é preciso autocrítica”, aconselha. “A afinação não é negociável, custa ouvir um instrumentista desafinado”, diz. “Quem é responsável por levar isto [a música] a toda a gente? Você! Tem de ser gigante”, aconselha, no seu português com sotaque da Venezuela.

Não é casualidade que dê aulas. Além de pertencer à Orquestra Gulbenkian desde 1996, dá aulas na Escola Superior de Música, e tem pergaminhos no trabalho com jovens. Foi uma das fundadoras da Orquestra Geração e com o grupo Camerata Atlântica, de que é diretora artística, criou o concurso de cordas Vasco Barbosa, para jovens músicos. A recompensa é apresentar-se em palco. Nesta digressão teve outra: Francisco Lima Santos, vencedor deste ano, era um dos músicos que vieram reforçar o naipe dos violinos. É uma ideia que traz da sua própria escola de formação. El Sistema de orquestras da Venezuela, o mesmo que formou Gustavo Dudamel. Ficou no Sistema até aos 25 anos.

A violinista, casada com um violetista da Orquestra Sinfónica do São Carlos, Pedro Saglimbeni Muñoz, chegou a Portugal para tocar na Orquestra do Norte, em Guimarães, em 1996, após uma passagem por Cracóvia. Contava regressar à Venezuela, quando um fax da Orquestra do Norte os levou a Guimarães. “Eu vinha da Polónia e achei frio”, ri-se. “A orquestra não era o que queríamos artisticamente”, explica. Continuaram a procurar até surgir o São Carlos e, para ela, a Gulbenkian. Passaram-se 20 anos. Aos alunos insiste com a postura e na importância da técnica. “Um músico tem de poupar a sua carreira, é como um cantor com a voz.” E estudar. Sempre. “Se não tocas um dia, sentes; se não tocas dois, os amigos notam; se não tocas uma semana, o público percebe”, dizem os arménios.

 

Lina Santos

DN – 13 Novembro 2016

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