‘Minis’ para Beaumarchais

01 jul 2017

A démarche pode parecer estafada: utilizar a trilogia de um autor revolucionário como Beaumarchais para a colocar numa moldura contemporânea. Ou então pode ser vista como manipuladora: extirpar a sátira política a três peças do dramaturgo setecentista que, através da família aristocrática de Almaviva e dos seus serviçais, lidam com o tema dos privilégios hereditários, dos direitos senhoriais, da autoridade dos patrões e dos interesses antagónicos de classes sociais. Ou então redutora: numa amálgama light, desestruturar “As Bodas de Fígaro”, “O Barbeiro de Sevilha” e “A Mãe Culpada”, o que pode limitar a capacidade de significação das peças. A cenografia de José Capela simula um estúdio de gravação de ópera onde se instalam seis dos atores da companhia teatral Mala Voadora para dar instruções a oito cantores (Luís Rodrigues, Joana Seara, Marco Alves dos Santos, Eduarda Melo, Carolina Figueiredo, André Henriques, Manuel Rebelo, Pedro Cachado), os intérpretes da partitura de extrema sofisticação de Pedro Amaral. O encenador Jorge Andrade condensou a trilogia de Beaumarchais em 100 minutos de uma narrativa dramática não-linear, insinuando-se nas obras como se estivesse colado à personagem de Bégearss, o perverso irlandês que, na “Mãe Culpada”, engendra intrigas e farsas na família do conde libertino. Num texto em português, em francês e em italiano, o público é confrontado com um labirinto recheado de fragmentos das três peças, num caos onde um serviço de catering distribui ‘minis’ aos intérpretes, como se, através de réplicas regadas a cerveja, houvesse uma purgação e purificação, numa tentativa de katarticon graças ao qual todos se libertassem de vícios, extinguindo as falácias e ilusões que embaraçam o conhecimento e impedem a observação sem preconceitos das sociedades. Ao longo do espetáculo, cantores e atores questionam-se sobre as contradições do enredo e fica a pairar a dúvida: devem acumular-se as incoerências ou devem resolver-se os problemas criados pelo próprio texto dramático? Quando todo o elenco se agrega para entoar um hino reconciliatório no desfecho deste teatro-ópera, há uma investida para realizar a convergência de universos paralelos (Beaumarchais/Mozart; Andrade/ Amaral). O maestro e a Orquestra Gulbenkian mantêm-se à distância, remetidos para uma parte subalterna do palco de onde se eleva a música do antigo aluno de Emmanuel Nunes e ex-assistente de Stockhausen. Funcionou em pleno o momento de ‘Non so più cosa son’ de “As Bodas de Fígaro”, a ária de Cherubino interpretada pela voz aguda do ator Bruno Huca, de rosto glabro e com uma imagem de ambiguidade sexual bem explorada, tal como se apresentou como uma boa ocasião musical a ária cantada por Eduarda Melo que assumiu a personagem de Florestine. Em Beaumarchais, elementos lúdicos e o material cómico são tão intrínsecos a Fígaro, Almaviva, Susana, Bártolo, Marcelina e Cherubino, que não são necessários grandes artifícios para provocar risadas na plateia. Nas suas memórias, Lorenzo da Ponte, o libretista de Mozart nas “Bodas de Fígaro”, indicou como deveria ser o final de uma obra: “Estrepitoso, arque-estrepitoso, estrepitosíssimo.” Faltou estrépito a este “Beaumarchais”.

 

Ana Rocha

Expresso – 01 de julho 2017

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