Metamorfoses handelianas

04 mar 2017

Não há nada a fazer; para a Gulbenkian, Handel é Händel. Que se lixe o facto de o compositor ter vivido quase meio século (dois terços da sua vida!) em Inglaterra, se ter naturalizado inglês, de assinar o nome sem trema (tanto em documentos como partituras) e de ter sido sepultado no panteão da Abadia de Westminster. Mas estou grato à Fundação pelas estupendas apresentações das obras de George Frederick Handel (1685-1759), desde a célebre “Alcina” com Teresa Stich-Randall num Festival Gulbenkian de Música há quase cinquenta anos! Desta vez tivemos uma produção quase-perfeita da masque “Acis and Galatea” (1716) — a primeira obra dramática handeliana sobre texto inglês. As credenciais literárias da obra são impecáveis: na origem, a tradução das “Metamorfoses” de Ovídio pelo grande poeta e dramaturgo John Dryden; o libreto, de carácter Metamorfoses handelianas arcádico, tem a dedada do genial Alexander Pope. Não era a primeira vez que o compositor tratava o tema; durante a sua estadia em Itália criara a serenata napolitana “Aci, Galatea e Polifemo” (1708). O curioso é que Handel não reciclou nenhuma música da serenata a tre italiana para a masque inglesa; apenas a primeira ária de Galatea inglesa, ‘Hush, ye pretty garbling quire!’, terá sido inspirada na ‘S’agita in mezzo’ da sua congénere italiana. (Handel viria a juntar as duas versões da obra em 1732, para se vingar dos abusos de um empresário desonesto.) Fiquei deslumbrado com a realização musical e cénica desta “Acis and Galatea”. Confesso até que nunca vi uma semiencenação tão depuradamente elegante e eficaz como esta, de Marie Mignot (também coautora do desenho de luz) — a começar no tratamento ambulatório e gestual do Coro e a acabar na metamorfose de Acis (com a ajuda da visão etérea dos jardins da Gulbenkian). Também não espero ver e ouvir melhor Galatea do que Ana Quintans, a grande estrela portuguesa do canto barroco. Tudo nela é perfeito: a voz, a dicção, o estilo, mas também a postura, o vestido, as entradas furtivas. No ‘As when the dove / Laments her love’ foi simplesmente sublime. Sim, todos os cantores atuaram de partitura na mão, mas nela era como se a música fosse uma extensão do corpo! Em Acis, Marco Alves dos Santos usou a primeira ária ‘Where shall I seek the charming fair?’ para aquecer a voz, mas depois foi num crescendo de qualidade, revelando em ‘Love sounds th’alarm’ uma heroicidade tenoril que eu não lhe conhecia. André Henriques está ainda verde para arrostar com a entrada feroz ‘I rage, I melt, I burn’ do monstruoso Polyphemus, mas mereceu a oportunidade de integrar este superlativo elenco português, nomeadamente com as interjeições do trio ‘The flocks shall leave the mountains’. João Miguel Rodrigues (Damon) foi a bela voz da razão e João Terleira (Coridon) completou com acerto a distribuição. A regência inspirada de Leonardo García Alarcón conseguiu extrair um som barroco da Orquestra Gulbenkian, e o Coro teve outra excelente prestação, provando também que é capaz de representar. A obra dura cerca de cem minutos. Para quê o intervalo?

 

Jorge Calado

Expresso – 04 de março 2017

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