Grandelavoix

14 abr 2017

Preencheram o programa do agrupamento vocal dirigido por Björn Schmelzer duas missas fúnebres do início do século XVII, a primeira composta por Orazio Vecchi e a segunda por Duarte Lobo e ainda uma terceira, “Praeter Rerum Seriem”, de George de La Hèle. Em 1999, o maestro e etnomusicólogo fundou o coletivo flamengo Grandelavoix, um grupo com uma original trajetória onde se encontram 12 gravações com um caleidoscópio de músicas que passa por peças de místicos, monges e ministreis ativos no Brabante do século XIII. O nome inspira-se num conjunto de entrevistas a Roland Barthes, “Le grain de la voix” (“Le grain c’est le corps dans la voix qui chante, dans la main qui écrit, dans le membre qui exécute”), ocasião em que o semiólogo francês enquadra o significado intangível do grão da voz, a materialidade da voz e do corpo. A mú- sica é cantada num espaço muito preciso em que uma língua (o latim) encontra as vozes dos corpos que experimentam e improvisam cânticos. Na folha de sala onde expõe uma visão inovadora sobre aspetos ocultos do barroco flamengo, Schmelzer conta as investigações que o levaram a recriar os ritos funerários que, em 1640, poderão ter acompanhado a cerimónia do enterro de Rubens em Antuérpia. Se a gestualidade de Schmelzer é algo desengonçada, em contrapartida, o resultado que ele obtém dos nove cantores, de estilos muito diferentes, é de elevada qualidade. Quanto ao estilo de execução, por vezes, nos interstícios dos seus discursos, surge uma discreta respiração que aparece como benfazeja e generosa. Schmelzer quer uma “voz contínua” em que as notas se seguem de tal maneira que o fim de uma nota não consegue distinguir-se facilmente do início da nota seguinte. Passa-se algo idêntico com as cores do arco-íris: vemos uma parte de vermelho mas não conseguimos discernir exatamente onde começa e onde acaba. Dentro das tradições da música antiga e das sucessivas gerações dos seus intérpretes, é forçoso pensar que, nas tradições, há todo um aspeto de património imaterial que é recebido. Em tempos, Schmelzer declarou a sua intenção de “libertar a música antiga e a polifonia dos séculos passados das suas conotações pseudoetéreas, da sua correção pseudoprofissional e da sua monotonia pseudo-histórica”. Missão cumprida.

 

Ana Rocha

Expresso – 14 de abril 2017

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