Geometrias variáveis

04 fev 2017

Com três concertos no espaço de duas semanas — dois com a Cappella Andrea Barca e um recital —, quase que se pode falar de uma residência de Sir András Schiff na Gulbenkian. Nascido em Budapeste, Sir András é hoje cidadão britânico (enobrecido com o grau de Cavaleiro). Recusa-se a regressar à Hungria, não apenas em protesto contra as políticas xenófobas e racistas de Viktor Orbán mas também desgostoso com a falta de coragem do povo húngaro em as combater. Se voltar, corre o risco de lhe cortarem ou partirem as mãos! Precisamos de gente desta estirpe, se quisermos resistir aos ciclones xenófobos que varrem atualmente o Ocidente. Depois dos judeus, os muçulmanos. O fascismo está de regresso. Em italiano, András (André) é Andrea e Schiff (barco) é Barca. Percebe-se a piada do nome da orquestra de câmara fundada em 1999 pelo ilustre pianista: um coletivo de instrumentistas freelancer, não associados a nenhuma formação orquestral consolidada. Une-os o prazer de fazer música sob a inspiração de Schiff — uma alegria mais do que óbvia nestes dois concertos de geometria variável. Notei que quem virava as páginas ao pianista no primeiro concerto era um dos violinistas da orquestra. Programa suculento de mais de duas horas de música: o “Quinteto para piano e sopros” (oboé, clarinete, fagote e trompa), uma obra de juventude de Beethoven, seguido pelo sublime “Quinteto para cordas nº 2”, de Dvorák, e depois pelo Panocha Quartet aumentado com o extraordinário contrabaixista Christian Sutter; a rematar o concerto, o monumental “Quarteto para piano e cordas nº 2”, de Brahms. Por uma vez, Beethoven fez figura menor (e primitiva), quando comparado com a genial fluência integrada das obras de Dvorák e Brahms. O segundo concerto distribuía-se simetricamente por Haydn e Mozart, com uma sinfonia e um concerto para piano, cada. Agora vi os membros do Panocha Quartet (formado em Praga em 1968) distribuídos pela formação global da Cappella Andrea Barca. De Haydn ouviu-se o “Concerto para piano em Ré maior” e a “Sinfonia nº 101” (“O Relógio”); de Mozart, a “Sinfonia nº 38 em Ré maior” e o “Concerto para piano nº 23”. Sem espaço para grandes comentários, resta-me acrescentar alguns apontamentos: a direção discreta (do piano) de Schiff; a beleza das cordas graves na introdução ao Quinteto de Dvorák, e o hipnotizante último andamento; as delícias rítmicas das obras de Haydn e a alegria distendida em Mozart. Com Brendel fora de jogo, Schiff é hoje o grande pensador musical (ativo). A senioridade de muitos membros da orquestra foi outra mais-valia reconfortante. Como dizia Schnabel, Mozart é fácil para crianças, mas difícil para adultos. Volta a ser fácil para os velhos, que lhe acrescentam também a sabedoria da vida. Dois concertos memoráveis, onde o júbilo de fazer música contagiou o prazer de a ouvir. Ah, é verdade! Ia-me esquecendo dos instrumentos extrapartitura: as gargantas dos espectadores que ainda não aprenderam a controlar e a abafar as tosses. Por favor, usem o lenço!

 

Jorge Calado

Expresso – 4 de fevereiro 2017

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