Fado Barroco, uma semente que deu fruto

17 dez 2016

Desde a edição de Sementes do Fado, disco muito bem recebido pela crítica, em 2007, que Os Músicos do Tejo têm mantido viva a procura de ligações, na música, entre o barroco português e as origens do fado. E se Sementes do Fado contava com a guitarra portuguesa de Ricardo Rocha, a par da voz de Ana Quintans, o mais recente Fado Barroco (estreado em Helsínquia, no dealbar do ano de 2016 e agora apresentado pela primeira vez em Portugal, na Gulbenkian, na noite de 14 de Dezembro) junta à voz da soprano uma outra, a do fadista Ricardo Ribeiro, tendo na guitarra portuguesa Miguel Amaral e na viola o também fadista Marco Oliveira, que em Junho passado tocara com Os Músicos do Tejo em Modinhas-Luso Brasileiras, também na Gulbenkian.

Isto anda tudo ligado? Sim, anda. Até porque, para a estrutura de Fado Barroco (apresentado em seis capítulos, cada qual com uma designação histórico-musical específica) concorreram “peças” dos trabalhos anteriores, sendo este uma natural (e, em geral, feliz) síntese das pesquisas feitas, sob a direcção do maestro Marcos Magalhães e da cravista Marta Araújo. Mas a ligação não se ficou pelo barroco, recuando até à Idade Média, e, aproveitando a “boleia” da experiência do cruzamento do canto de Ricardo Ribeiro com a música do libanês Rabih Abou-Khalil, também às influências árabes-andaluzas na cultura portuguesa. O início, ou primeiro capítulo, dedicado à guitarra portuguesa como “símbolo”, abriu com Carlos Paredes, o incontornável Verdes Anos, (que Miguel Amaral tocou de forma escorreita, mas sem ombrear com a magia do seu autor), prosseguiu com um Minuete de António da Silva Leite (1759-1833), que no disco Sementes de Fado coube a Ricardo Rocha tocar; e terminou com Luz de Outono, uma peça do próprio Miguel Amaral com arranjo orquestral, num meio-termo entre a bela melancolia do tema de Paredes e a vivacidade do instrumental de Silva Leite. Um bom começo, com a “voz” entregue às cordas.

O capítulo segundo, Portugal medieval, raízes árabes e galaicas, recuou ao século XIII, à 23.ª das Cantigas de Santa Maria, Como Déus fez vinno d’agua ant’Arquetecrinno, cantado num coral a várias vozes, seguindo-se Bach (a Sinfonia da cantata Mer hahn en neue Oberkeet BWV 212) e José Régio musicado por Rabih Abou-Khalil para Ricardo Ribeiro, Soneto de Amor. Uma viagem de séculos, para estabilizar no barroco, ao terceiro capítulo, todo ele preenchido com obras de Francisco António de Almeida (1702-1755), primeiro com o Venerandum do Te Deum, depois com dois excertos de obras que Os Músicos do Tejo já apresentaram na íntegra: Il Trionfo d’Amore (In queste lacrime, Arsindo, specciati) e La Spinalba (Un cor, ch’ha per costume). Ana Quintans, apesar de constipada (como Marcos Magalhães fez questão de avisar, no início do espectáculo), suportou estoicamente o esforço vocal e “venceu” com brio a indesejada maleita.

O quarto capítulo foi entregue, por inteiro, ao fado. E só foi pena que o microfone de Ricardo Ribeiro estivesse abaixo (até fisicamente) do desejado. O Fado Menor de Destino Marcado (de Fernando Farinha) soou demasiado longínquo, embora emotivo e pungente; o Fado Corrido de Olhos Estranhos (do conde Sobral) teve mais sorte; o Fado Cravo De Loucura em loucura, de Marceneiro, teve direito a um sonoro “Bravo!”; e o Fado do Alentejo, que Ricardo tão bem canta e se emociona a cantar, foi parcialmente “roubado” pelo microfone, que não estava em condições de captar as frases mais graves e assumidamente sotto voce. Mesmo assim, uma excelente prestação, onde Ricardo, acompanhado à guitarra e à viola, destilou espírito fadista, mesclado em modulações que lembram, a espaços, o voo dos cantos árabes e o fraseado do melhor flamenco.

Aqui, quebrou-se a natural disciplina da clássica e vingou a emotividade do fado, passando os restantes trechos a serem aplaudidos um a um e não no final de cada capítulo, como mandam as regras do meio. Seguiram-se, numa cambalhota temporal, lunduns e modinhas. A eles dedicado, o quinto capítulo abriu com Sinfonia em Ré, de António Cláudio Pereira (1780-1820), continuou com um inusitado (mas divertido) dueto vocal entre Ana Quintans e Ricardo Ribeiro, da opereta setecentista-oitocentista (estreou-se em 1801!) Entremez das Regateiras Zelozas, precisamente o Dueto de marujo e regateira; e fechou com o belíssimo lundum Os efeitos da ternura, a que Ricardo, com a viola e também a voz de Marcos Oliveira, deu o embalo de uma cantiga de roda.

O sexto capítulo abriu com Camões, Oulman e Amália unidos nesse tema maior que é Com que voz mas que, ajustado ao timbre de Ana Quintans, resultou num equívoco. Ela não merecia tal “partida”, constipada ou não, porque os graves e médios que o tema exige soaram desajustados na sua voz de soprano. Ajustado, isso sim, foi O Pastor, dos Madredeus, que encerrou o capítulo depois do Romance de Afonso Lopes Vieira (1878-1946): o cruzamento nele contido entre o fado e a pop, escolhido para fechar o espectáculo, teve em Ana Quintans uma intérprete ajustadíssima, em termos tonais, lá onde a nossa memória revê ainda o timbre cristalino de Teresa Salgueiro.

E como o fado vinha levando os hábitos de vencida, houve dois encores exigidos pelos aplausos. Primeiro, com uma repetição do Dueto de marujo e regateira, de novo Ana Quintans e Ricardo Ribeiro “atirados” para os alvores do século dezanove. Depois, com um inesperado solo absoluto de Marco Oliveira (cuja vocalização foi deveras impressionante, perante o devoto silêncio da audiência) na modinha Hei de amar-te até morrer, cuja origem e criação ainda hoje é motivo de controvérsia mas que terá sido composta no Brasil (há quem diga que na Bahia) no século XIX. Esta modinha fizera parte do repertório do espectáculo Modinhas Luso-Brasileiras, onde Marco Oliveira também participou. Espantosamente, ou talvez não, a estrutura vocal e melódica desta modinha revela um claro parentesco com o chamado Fado de Coimbra, que não é mais do que a única canção estudantil do mundo cuja existência se conhece, se comprova e se mantém e que, por isso, deveria ser reconhecida como Património Imaterial da Humanidade pela Unesco.

Em Helsínquia, o espectáculo teve como subtítulo Do século XIII até anteontem. Mesmo que pudesse ter arriscado outro repertório ou configuração, Fado Barroco fica como o espectáculo de síntese onde Os Músicos do Tejo mais se aproximaram ao fado. O que virá a seguir não se sabe, mas valeu a iniciativa, que acabou por ser um interessante momento de partilha com o público.

 

Nuno Pacheco

Publico – 17 de dezembro 2016

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