As rosas de Adriana e as lições de Coimbra

05 fev 2017

Quem, como nós, assistiu ao recital de Adriana Calcanhotto e Arthur Nestrovski na Biblioteca Joanina de Coimbra, em Dezembro de 2015, pôde comprovar que ele efectivamente cresceu de então para cá: o conceito inicial, de envolver poéticas e música numa cuidadosa teia de relações históricas que se revelam também afectivas, foi desenvolvido de modo a abarcar outros temas e autores, mas mantendo vivo, e reforçado, o propósito inicial. Na verdade, cruzar numa mesma noite Amália e D. Dinis, Camões e Caymmi, Pessoa e Vinicius, Fiama e Bob Dylan, Caetano e Sá-Carneiro, Chico Buarque e Adília Lopes, o provençal Arnaut Daniel e o baiano Gregório de Matos é obra a que não se mete ombros sem destemor, num pacto entre conhecimento e criatividade. E isso, Adriana Calcanhotto conseguiu-o; primeiro em Coimbra, onde o projecto ganhou forma, e agora nesta sua transposição para palcos maiores, já a pensar num espectáculo aberto ao público.

Por aqui, parabéns. Mas algo falhou nesta transposição: em lugar de se atenuar o tom de recital em benefício da estruturação de um concerto (e isso era, e é, perfeitamente possível a partir do repertório escolhido), agravou-se o didactismo da apresentação com extensas intervenções explicativas de Arthur Nestrovski que, por demais interessantes (e sê-lo-iam numa aula, em sessões de música comentada ou em mostras de canções com história), ali quebraram o ritmo do espectáculo de forma às vezes penosa. Adriana, neste particular, foi bem mais comedida e soube dizer o que era preciso quando era preciso e sem arrastamentos desnecessários.

Aliás foi ela que começou sozinha o espectáculo que agora apresentou em Lisboa, na Fundação Calouste Gulbenkian, na noite de 3 de Fevereiro. Longo vestido negro, violão a tiracolo, transformou numa doce balada o muito belo (e dilacerante) fado de Amália Tive um coração perdi-o, fado que ela conheceu através de Mísia (que nomeou e estava na assistência) e que, no programa, por lapso, viu omitida a autoria da música, do grande guitarrista Fontes Rocha (1926-2011).

A Amália seguiram-se Dylan, em português (It’s all over now baby blue, transformado em Negro amor por Caetano Veloso e Péricles Cavalcanti) e Mário de Sá-Carneiro, com dois poemas musicados por Adriana: O outro (estreado em Público, 2000) e Senhora dos olhos lindos. Mantendo a pose trovadoresca, num bom sentido, Adriana passou então a D. Dinis (com a cantiga de amor O que vos nunca cuidei a dizer, cantada em português arcaico), ao poeta provençal Arnaut Daniel (Canso do ill mot son plan e prim, que ela cantou em occitano e também em português, numa tradução de Augusto de Campos) e depois à poesia de Fiama Hasse Pais Brandão e à de Camões, esta feita fado por Oulman para Amália: Com que voz.

Foi com Mortal loucura, de Gregório de Matos, poema com estrutura em eco (“Ó voz zelosa, que dobrada – brada/ Já sei que a flor da formosura – usura/ Será no fim dessa jornada – nada”) um pouco à semelhança do que sucede nos fados portugueses em versículos, que entrou em cena o violonista Arthur Nestrovski. Adriana trocara o violão pelos óculos, para melhor ler os versos, e foi ele que fez a ponte entre poema e canção (com música de Zé Miguel Wisnik).

A partir daí, Nestrovski tornou-se omnipresente, menos pelo violão (que domina com destreza académica) do que pelos extensos enquadramentos, explicações e contextualizações. O período dedicado a Vinicius de Moraes (com Soneto do corifeu – “São demais os perigos desta vida…”–, Valsa de Eurídice e Medo de amar, sequência perfeita) abriu as portas à criação essencialmente brasileira, com um apropriado “gancho” português: Fernando Pessoa em dois heterónimos musicados por brasileiros, Noite de São João de Alberto Caeiro por Fred Martins e Segue o teu destino de Ricardo Reis por Suely Costa; e um poema de Adília Lopes, As rosas com bolores, contraponto lusitano a essa obra-prima a que Caymmi chamou Das Rosas e que ele começou a escrever em Portugal, nas Caldas da Rainha, em final dos anos 1950, quando se encaminhava com a cantora Dóris Monteiro para Coimbra. A escolha desta canção para dar título ao recital explica-se por esse facto e as várias rosas vermelhas ali compostas numa jarra, em pleno palco, foram a concretização física desse jogo entre a beleza e a fragilidade da flor e a correspondente condição humana. Por falar nela: Cajuína, de Caetano Veloso, levou Nestrovski não só a contar a história da sua criação (o encontro de Caetano com o pai do seu amigo e compositor Torquato Neto, em Teresina, anos depois de ele se ter suicidado, em 1972) mas também a relacionar a interrogação nela explícita (“Existirmos – a que será que se destina?”) com questões levantadas por Guimarães Rosa e até por Heidegger nas suas obras. Já estávamos, nessa altura, em plena universidade, quando a música, subitamente, regressou. Primeiro com Morro dois irmãos, de Chico Buarque, depois com o Sabiá de Chico e Jobim enlaçado ao poema que lhe serviu de inspiração, Canção do exílio, de Gonçalves Dias (1823-1864), também escrito em Coimbra. Mais um achado, entre tantas coincidências (de notar que, mais recentemente, Carminho, no disco onde canta Tom Jobim, fez também a mesma associação entre tal canção e tal poema).

Por fim, quando Coimbra já nos chegara nas mais variadas composições, a noite fechou com a célebre Coimbra de Raul Ferrão e José Galhardo, cruzada com Chega de saudade de Tom e Vinicius. “Aprende-se a dizer saudade”, “chega de saudade”, uma contradição apenas aparente.

No primeiro encore, Adriana homenageou, naturalmente Lupicínio Rodrigues (“o grande compositor de Porto Alegre”, a quem ela dedicou o seu mais recente trabalho) e dele cantou Nunca e Se acaso você chegasse. No segundo encore, depois de perguntar graciosamente à audiência “em que posso ser útil?”, cantou Esquadros e Inverno. Uma última nota: apesar de todo o investimento emocional de Adriana neste projecto (e na sua ligação à Universidade de Coimbra, onde ficará um semestre como professora convidada da Faculdade de Letras), a sua voz não esteve nos melhores momentos. Quem ouviu Olhos de Onda (2014) e Loucura (2015), brilhantes exemplos da sua entrega à arte do canto, entenderá esta fase (com um maior recurso a vocalizações veladas, uma espécie de recolhimento que lhe tolhe a expressividade, só vencido por alguns momentos onde ela verdadeiramente se ilumina e deixa vir à tona o melhor de si) como um interregno num caminho demasiado prometedor para não ter sequência. Das Rosas, o actual projecto, pode ser visto como uma jóia por lapidar, onde a música e a poesia só terão a ganhar com um corte drástico no didactismo. Pelo que já fez, pela relevância da sua obra e pela força interior que a move, Adriana Calcanhotto ainda nos reserva, decerto, muitas surpresas.

Depois da sua apresentação em Lisboa, na noite de 3 de Fevereiro, no Grande Auditório da Fundação Calouste Gulbenkian, Das Rosas seguiu depois para Coimbra (dia 4, no Teatro Académico Gil Vicente) e para o Porto (este domingo, na Casa da Música, às 21h30).

 

Nuno Pacheco

Público – 5 de fevereiro 2017

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