O Poder da Palavra I / Peregrinação / Hajj

23 abr 2020

Um grupo de falantes de árabe residente em Lisboa reuniu-se recentemente para decifrar algumas das inscrições presentes nas obras da galeria do Médio Oriente, na sua maioria religiosas. Entre estes participantes encontravam-se artistas, estudantes, professores, tradutores, académicos religiosos e ateus. Juntos, revelaram e partilharam palavras, associando posteriormente uma seleção das mesmas a sete objetos aqui presentes. 

O sete é um número inteiro especial. É o número de versos no capítulo inicial do Alcorão (al-Fatiha), recitado por todos os muçulmanos, e o número de pilares da peregrinação anual até Meca (Hajj), que consiste tanto numa viagem real, feita uma vez na vida, como numa metáfora para o movimento da vida.

Muitas culturas e religiões têm as suas próprias viagens e este projeto foi criado com a palavra «coexistência» em mente. Na vitrina, na galeria, esta mostra pode ser lida a partir da esquerda, como este texto (n.os 1-7), ou a partir da direita, de acordo com a escrita árabe (n.os 7-1), como é explicado em baixo.

 

Manifestar e Ocultar / Kashf wa hajb

A presente encadernação continha, em tempos, uma preciosa cópia do Alcorão e foi escolhida pelo grupo para servir como metáfora: um objeto que revela e oculta o seu conteúdo. Para os muçulmanos, o Alcorão é a Palavra de Deus, revelada em árabe ao profeta Maomé pelo arcanjo Gabriel, entre c. 610 e 632. É, antes de mais, uma tradição oral, e a palavra alcorão significa literalmente «a recitação». O espaço vazio oculto pela encadernação evoca essas origens na oralidade.

Encadernação de um Alcorão. Irão, século XVI, período safávida. Couro dourado e moldado sob pressão, trabalho em filigrana. Museu Calouste Gulbenkian

A Abertura / Al-Fatiha

Esta cópia iraniana do Alcorão contém as palavras reveladas ao profeta Maomé na cidade de Meca, antes da sua fuga para Medina em 622. O primeiro capítulo (al-Fatiha), aqui apresentado, é uma oração que roga orientação, soberania e misericórdia a Deus (Allah), abrindo com o Bismillah (Em nome de Deus), repetido abundantemente pelos muçulmanos. Allah é o nome árabe para Deus, equivalente a Yahweh em hebraico, God em inglês ou Dieu em francês.

Manuscrito parcial de Alcorão. Irão, Shiraz (?), sem data [c. 1570], período safávida. Tinta, ouro e guache sobre papel. Museu Calouste Gulbenkian

Doação / Waqf

O grupo fez uma descoberta importante: este Alcorão foi oferecido por uma mulher a uma mesquita no Cairo, em 1622-1623. A oferta de livros do Alcorão é uma prática comum e a palavra árabe waqf (doação) encontra-se repetida ao longo da parte superior deste exemplar. O vigésimo segundo capítulo, aqui exposto, convoca os fiéis para se juntarem ao Hajj(peregrinação). Espera-se que tanto as mulheres como os homens façam esta viagem, e as autoridades do Hajj estão atualmente a ponderar se devem permitir que as peregrinas o façam sem supervisão.

Alcorão. Irão, 1622-1623 (datado AH 1032), período safávida. Tinta, guache e ouro sobre papel. Museu Calouste Gulbenkian

Cubo e Círculo / Ka’aba wa dayira

É em torno da Caaba (literalmente, o cubo), um santuário feito de pedra negra e tijolos, que tem lugar o denominado tawaft, o primeiro e último ritual do Hajj que consiste na perambulação dos peregrinos à sua volta, efetuando sete rotações no sentido dos ponteiros do relógio, com as cabeças rapadas e usando uma veste branca (ihram). A sensação intensa da aproximação à Caaba é descrita como «magnética». A deambulação é também parte integral de práticas de culto budistas e hindus.

«A peregrinação a Meca». Antologia do sultão Iskandar copiada por Mahmud ibn Murtaza Al-Husayni e Hasan al-Hafiz. Irão, Shiraz, 1411 (datado de AH813), período timúrida. Tinta, guache e ouro sobre papel. Museu Calouste Gulbenkian

Luz / Nur

A forma de uma lâmpada incluindo dois dos noventa e nove nomes de Deus – Ya Rahman[Misericordioso] e Ya Mannan [Perfeição] – encontra-se finamente tecida neste têxtil. No Alcorão, Deus é comparado a uma lâmpada que ilumina como uma estrela cintilante. Sedas vermelhas deste tipo eram penduradas dentro da Caaba [o cubo] que, apesar do seu exterior escuro, é entendida como fonte de luz. A organização dramática das inscrições religiosas no têxtil, em ziguezague acentuado, transmite de forma admirável a luz cintilante de chamas em movimento.

Tecido de seda com inscrições em árabe. Turquia, séculos XVII-XVIII, período otomano. Lampasso de seda. Museu Calouste Gulbenkian

Multicultural / Mataadid attakafat

Durante o Hajj, os peregrinos chegam a Meca vindos «de todos os lugares distantes», reunindo-se assim uma pluralidade de idiomas, etnias e nações que resulta num intercâmbio cultural vibrante. O presente Alcorão foi feito em Achém, Sumatra (Indonésia), um porto histórico importante desde o século XIV de onde embarcam muçulmanos asiáticos na sua peregrinação, o que lhe conferiu o epíteto de Serambi Mekah (a Varanda de Meca). Atualmente, três milhões de muçulmanos de todo o mundo juntam-se anualmente em Meca.

Alcorão. Indonésia, Sumatra, séculos XVII‑XVIII, Sultanado de Aceh. Guache e tinta sobre papel. Museu Calouste Gulbenkian

Súplica / Duaa´e

Na presente taça foram inscritas bênçãos que funcionam como amuletos, rogando saúde, felicidade e descendência duradoura. Escritas de forma invertida, apenas podem ser lidas quando nos inclinamos sobre a taça, tal como durante a ablução que precede as orações. Calouste Gulbenkian (1869-1955) era um arménio cristão e não sabia ler árabe, mas nasceu em Istambul que, na altura, era metade muçulmana e metade cristã e judaica. Este contexto de coexistência religiosa explica, em grande parte, o seu interesse pela arte islâmica.

Prato fundo com motivo de arabesco e inscrição Síria, Raca (?), final do século XII ou início do século XIII, períodos zengida e aiúbida. Cerâmica siliciosa pintada sobre engobe e sob vidrado transparente com reflexo metálico. Museu Calouste Gulbenkian

 

A Viagem Espiritual | Hajj

Surpreendentemente, as discussões do grupo revelaram que esta apresentação também pode ser lida na direção oposta, da direita para a esquerda, na galeria, como acontece com a escrita árabe, tomando a forma de uma viagem espiritual individual: começa-se com a taça de cerâmica, com as suas frases de súplica pedindo a intervenção de Deus, o que é o primeiro passo para a fé; segue-se o Alcorão indonésio que nos lembra como a fé pode surgir em qualquer lugar; depois, admira-se o têxtil de seda vermelha inscrito com a Shahada (profissão de fé), o primeiro dos cinco pilares do Islão; de seguida, surge a imagem de Meca, o coração da religião, bem como o manuscrito de waqf (doação), que remete para o terceiro pilar, Zakat (esmola); termina-se com o capítulo mais importante do Alcorão – al-Fatiha (a Abertura) –, o guia da vida espiritual, enquanto a encadernação, no fim da visita, «oculta» metaforicamente a Palavra de Deus e o agora muçulmano devoto.

 

Curador convidado: Hassane Ait Faraji
Faculdade de Belas Artes, Universidade de Lisboa.

Coordenação: Jessica Hallett (curadora) e Diana Pereira (Serviço Educativo) 
Museu Calouste Gulbenkian

Colaboradores: Fabrizio Boscaglia, Jad Khairallah, Maryam Loutfi, Rahman Nighighi, Shahd Wadi, Sheila Namazi, Sheikh Zabir Edriss e Yasir Aboobakardaud.


O Poder da Palavra é um projeto do Museu Calouste Gulbenkian que reúne um grupo abrangente em torno do estudo da Arte do Livro e de outros objetos da coleção do Médio Oriente, membros da comunidade local, colaboradores da equipa de curadores e do Serviço Educativo e investigadores. O seu objetivo é potenciar a experiência destas obras conduzindo os participantes a uma pesquisa colaborativa e à criação de novas e vibrantes interpretações contemporâneas, numa afirmação do valor da cultura imaterial. 

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