De 29 de abril a 27 de maio de 2003, o Centre Culturel Calouste Gulbenkian apresentou a exposição «Imaginary Homelands & Domestic Missiles», de Ruth Rosengarten (1954).

Apesar de ser mais frequentemente associada à prática teórica, especialmente nos âmbitos da história e da crítica de arte, com contribuições recorrentes na imprensa e no mundo académico, a obra de Ruth Rosengarten compreende uma faceta plástica, que parte do desenho e da fotografia para expressar uma reflexão profunda sobre questões como a memória, a fotografia e o arquivo. Temas ligados ao mundo contemporâneo e a questões de género, como a da distribuição de tarefas do quotidiano, são igualmente objeto de exploração artística, estando presentes nos trabalhos apresentados no número 51 da Avenue d'Iéna.

O nome da exposição remetia para os dois conjuntos de trabalhos a aguarela e tinta-da-china apresentados em Paris: Imaginary Homelands (2001) e Domestic Missiles (2001), ambos previamente apresentados na Galeria Gomes Alves, em Guimarães, em 2002.

Nos trabalhos da primeira série, produzida em 2001, a artista desenhou órgãos do corpo humano – copiados de livros antigos de anatomia – sobre mapas das cidades onde viveu: Lisboa, Macau e Londres. Ruth Rosengarten refere-se-lhes da seguinte forma: «Walking the streets of a city (Lisbon, Macau, London) with teeth on edge, heart in mouth. Eyes peeled. The names of streets weave a haiku of sorts. Walk walk walk. Geographies and anatomies have secret affinities.» (Ruth Rosengarten, 2020)

Trata-se de imagens convencionais de partes do corpo humano – reconhecíveis como corações, dentes, orelhas – justapostas a uma cartografia abstrata, onde se depreende uma afinidade secreta entre geografia e anatomia. A aura enigmática que envolve estes trabalhos emana das sugestões geradas pelas associações, convocando no público as suas próprias memórias associativas.

Ruth Rosengarten mapeia assim as suas próprias vivências, ancorando-as no desenho técnico, no qual inscreve palavras aparentemente aleatórias, mas que se oferecem como alusões ao seu quotidiano. Para Luísa Soares de Oliveira, que assina o texto do catálogo, esta transformação de uma ferramenta técnica e impessoal num instrumento de medição da própria vida poderá ser vista como uma subversão feminista do mundo contemporâneo: «Comme si elle accomplissait le minage secret, astucieux et efficace d'un système crée et développé dans la société occidentale, inventé par une volonté toujours masculine et transformée ici par une action féminine.» (Ruth Rosengarten. Imaginary Homelands & Domestic Missiles, 2003, p. 2)

A relação entre os dois sexos como modo de entender a cidade moderna é uma constante no trabalho da artista, para o qual se serve quase exclusivamente da aguarela. Recusando a sua associação ao registo rápido de um momento ou da paisagem, a técnica da aguarela surge como modo de reverter os códigos institucionalizados, sociais, técnicos e científicos, mantendo-se com os mesmos princípios na série Domestic Missiles.

Segundo Luísa Soares de Oliveira, no texto que assina para o catálogo, a outra série de desenhos apresentados nesta exposição, datados de 2001 e intitulados Domestic Missiles, remetem igualmente para o tema da guerra de sexos, já aflorado em Imaginary Homelands. Neste caso específico, a artista recorre à representação de objetos vulgares do universo feminino (sapatos e malas de mão), agrupados de acordo com a sua função e estilo e em que o título de cada um dos conjuntos criados é também ele um sinal revelador da importância da ironia e do poder da palavra escrita na obra de Ruth Rosengarten.

A publicação produzida pelo Centre Culturel Calouste Gulbenkian que acompanhou a exposição incluiu um texto assinado por Luísa Soares de Oliveira, crítica de artes plásticas, e a reprodução de algumas obras expostas. No texto, intitulado «Guérilla urbaine», Luísa Soares de Oliveira analisa o trabalho de Ruth Rosengarten através da analogia entre as vias de comunicação do corpo humano e a topografia das cidades, construídas como sistemas orgânicos, com fluxos de informação e órgãos vitais, e da descrição da crescente dificuldade em definir os limites de um e de outro (Ruth Rosengarten. Imaginary Homelands & Domestic Missiles, 2003, p. 1).

Carolina Gouveia Matias, 2019