O poeta é uma sombra
um perfil

Ana Hatherly, O Cisne Intacto

 

O tema do Escritor atravessa toda a obra de Ana Hatherly. Retomá-lo, em diversos desenhos, denuncia a procura obstinada da artista pelo valor da escrita e do lugar do autor. O rosto do escritor é o rosto da escrita, o que significa que a figura tem de ser constantemente reinventada.

 

Nos vários desenhos que dedicou ao perfil imaginário do autor há a presença contínua das letras que materializam a face, a expressão, o retrato. Assim, o escritor aparece envolto na teia de letras e de palavras, sendo ele mesmo feito dos sinais da escrita. Dá-se assim uma espécie de metamorfose, ou melhor, uma fusão do corpo do escritor com a própria escrita.

 

O retrato que aqui vemos difere de todos os seus outros desenhos feitos sobre a figura do escritor. Aqui, surge o lado colorista de Ana Hatherly, mas também a sua relação com o género do retrato. A artista aproveita-se deste tema para traçar o rosto subjetivo e nunca o rosto do espelho, analógico, mimético.

 

Deste modo, o escritor é sempre representado com a boca hiante donde jorram letras ou então ele suga-as numa fome vertiginosa. O movimento é ambíguo porque nunca se chega a saber se as palavras saem ou entram na boca. Há apenas esse contacto, de grande intimismo, porque entrar na boca do outro é iniciar uma fusão, como no beijo, mas também na poesia, na escrita sussurrada.

 

Ao mesmo tempo, o perfil deste escritor desdobra-se em camadas auráticas coloridas, pois no ato da escrita há um empenhamento profundo e unívoco, do corpo e da alma. Ele olha, ainda, uma estrela, que não sendo aquela que guia, é símbolo do universo, do cosmos que o escritor habita e que dele extrai um mundo, o seu mundo feito de palavras-imagens.

 

 

JB

 

Setembro de 2010