Regressado de uma viagem marcante à América, e no ano em que conhece Andy Warhol, David Hockney apresenta Renaissance Head (Cabeça Renascentista), uma subversão imaginativa da iconografia renascentista, com o perfil sob um arco e a paisagem em profundidade pontuada por ciprestes toscanos. Uma evocação artificial e algo sardónica dos retratos executados quatro séculos antes por Piero della Francesca, importantíssimo teórico da perspectiva linear, cujas pinturas de grande rigor e minudência obedeciam a estruturas complexas da matemática e geometria. Hockney recupera a silhueta, mas reagindo ao contexto que a gerou, justificando assim: «era muito bem capaz de desenhar figuras num estilo académico, mas não era o que eu queria fazer na pintura e por isso tive de regressar a algo (…) num estilo oposto, um estilo cru, porque eu gostava da parecença com a arte infantil, que por sua vez se assemelha à arte egípcia, onde tudo é igual.»* Se o discurso lembra o de Henri Matisse, quarenta anos antes, o parentesco confirma-se no aspecto inacabado e negligente da execução, na partilha da mesma exuberância cromática e da repulsa por informação supérflua, e ao substituir a perspectiva por um plano unidimensional onde tudo coexiste, de igual para igual.
A pintura de que della Francesca se tornou símbolo, como exercício científico a partir do desenho, era em tudo contrária ao que o artista inglês pretendia. Adoptou, por isso, o caminho inverso, ao renegar o desenho e exacerbar o colorido, trocando o sistema de elevadas convenções intelectuais por uma apresentação ingénua e infantil, mais apta para chegar ao público moderno e massificado da metrópole. Se outros compunham a partir de maços de tabaco e latas de conserva, Hockney preferiu enfrentar um dos pintores mais sofisticados da tradição ocidental, e um dos seus formatos mais convencionais, o retrato. Uma audaciosa releitura da cabeça renascentista, que deu um novo ícone iconoclasta à Swinging London.**
Afonso Ramos
Maio de 2010
* In Metamorphosis: British Art of the Sixties: Works from the Collections of the British Council and the Calouste Gulbenkian Foundation, Torino, Umberto Allemandi & Co., 2005, p. 65.
** Swinging London é uma expressão usada para descrever Londres durante a segunda metade dos anos 60, devido ao ambiente de euforia cultural vivida com a recuperação económica e moral do país após a Segunda Guerra Mundial.