Nas obras posteriores a 2000, Ana Hatherly regressa aos cenários de rua, à imagética expressiva, já não dos cartazes (como nas suas colagens As Ruas de Lisboa e no filme Revolução, datados de 1977 e 1975 respetivamente), mas dos graffitis. A artista recupera um universo muitas vezes associado à subcultura, no modo como este habita a cidade e a usa como suporte de expressão e até de intervenção.

 

Os graffitis são uma marca paradoxal na medida em que se concretizam pela «calada da noite» para aparecerem de dia ruidosos, em desenhos grandes, letras cheias e cores vivas. Feito clandestinamente, o graffiti apodera-se dos muros da cidade com palavras de revolta e imagens estridentes. A sua marca autoral é difícil de definir. É certo tratar-se da «voz de alguém», mas esta mantém-se em segredo, pois só assim é possível ao gesto ser marginal e nunca institucional.

 

Mas a incursão da artista neste registo parece recuar à história paradigmática de Han-Shan, poeta chinês, que viveu no século VII, e que Ana Hatherly traduziu. Han-Shan foi um monge contestatário, asceta, que, na torrencialidade dos seus pensamentos, escrevia em todo o lado, cobrindo as paredes com a sua poesia. É curioso este poeta ressurgir no Ocidente, no século XX, pela mão dos autores da beat generation, conhecidos por uma escrita fragmentada cujos temas se relacionam com a subversão das regras sociais e experiências pessoais, da sexualidade à religião.

 

Ora, os graffitis de Ana Hatherly não são feitos sobre paredes, antes sobre papel ou tela, o que os aproxima do trabalho em ateliê. É uma escrita onde o som se amplifica de modo a ecoar palavras de ordem. Ao mesmo tempo, é de tradução difícil porque se liga a uma linguagem cifrada que atua sobretudo visualmente.

 

A escrita feita a spray envolve já não a mão, mas o corpo inteiro. Ana Hatherly passa da «escrita miudinha» para a grande escala dos graffitis, revelando, assim, todas as medidas possíveis da escrita.

 

 

JB

Setembro de 2010