O corpo fala sempre primeiro

Fernão Cruz escreve sobre a exposição «Morder o Pó» e analisa as obras que realizou para este projeto, criado de raiz para a Fundação Gulbenkian.
Fernão Cruz 15 nov 2021 7 min
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Morder o Pó é um palco para a transformação. Desde que comecei a pensar esta exposição que continuamente me recordo de passagens secretas, de túneis, de lugares seguros ou não lugares de ataque, de caixas forte que albergam personagens, vazios e pistas sobre e para o absurdo. A ideia de construir o corredor a dividir a sala homogeneamente aparece em resposta a isso mesmo: à vontade de ter uma simulação de uma passagem secreta que divide um lugar de contemplação de outro alusivo à queda num poço sem fim. Ninguém morde o pó, só já depois do seu último momento em vida. Será um momento vivido exclusivamente pelo que deixa de estar presente? Não posso deixar de associar esta queda de um corpo que crava os dentes em terra com arqueologia especulativa. A exposição é tida como três momentos, um trio, que se unifica através do exame vivido. Todos os trabalhos são irmãos que não se falam, mas que se conhecem e que sabem da sua existência.

 

Vista da exposição «Fernão Cruz. Morder o Pó». Foto: Bruno Lopes

 

Há uma quase atitude de arqueólogo entre as pinturas e as esculturas na predisposição do fazer, que as liga. A abordagem ao trabalho bidimensional ou tridimensional nada mais é do que uma materialização diferente do mesmo universo. Com vontades visceralmente idênticas, muitas vezes só compreendidas depois de serem feitas. Enquanto na pintura não existe uma imagem predefinida, até porque isso seria auto sabotar a própria experiência de pintar, nestas esculturas em bronze trabalho a partir do negativo, já que são feitas em queima direta – ou seja, não há molde.

Ao contrário de um arqueológo que escava para encontrar, que retira terra para poder ver e tocar no que quer comprovar, o núcleo de pinturas apresentado na exposição foi feito em antítese a essa ideia de subtração: a tinta é usada em adições sucessivas, como veículo para cravar, esculpir e desenhar na tela com a mesma vontade que o tal arqueólogo desvia a terra para encontrar vestígios corpóreos.

Transformar um material perecível como o cartão, que fácil e rapidamente se desintegra, num metal – o bronze – denuncia a vontade de construir uma obra que engana ao olhar, mas que se ergue firme, cinicamente, com um peso monstruoso e fatal. Deixa de ser papel para passar à tentativa de eternidade. A densidade do material é parte integrante do seu corpo, do que o define. A meio do processo de transformação, as esculturas deixam de existir, ou seja, há um sarcófago que veste o cartão, a casca cerâmica, que guarda o vazio deixado por ele, onde é injetado o bronze líquido. Depois, a escultura já fundida tem de ser escavada até ser encontrada com todos os seus erros enaltecidos. Tomando qualquer impressão um imprevisível protagonismo. Aqui há uma ligação direta ao modus operandi de quem escava.

 

Vista da exposição «Fernão Cruz. Morder o Pó». Foto: Bruno Lopes

 

Lutar contra uma tela, que se ergue verticalmente em oposição ao meu corpo, é tentar vencê-la com a consciência de que perco sempre para o melhor: a experiência em si. Tal como qualquer corpo animado, as pinturas ficam então com cicatrizes, peles e memória das várias pinturas que estão por detrás da imagem e matéria que fica petrificada na última camada. Estará uma pintura alguma vez acabada? O Bonnard achava que não, arranjando distrações nos museus para as poder continuamente retocar. Quem diz pinturas, diz trabalho, diz organismo vivo em contante mudança. Até porque a alteração da variável é a única certeza.

 

Vista da exposição «Fernão Cruz. Morder o Pó». Foto: Bruno Lopes

 

Em oposição a esta metáfora da arqueologia, todo o trabalho apresentado na exposição denuncia uma ausência ensurdecedora do corpo: daquele que se esconde ou quer ser encontrado. Nas pinturas Regresso a casa (2021) e Equilíbrio, força. Olhos fechados (2021) estão membros do corpo, estando ele em falta. Tal qual como em Olho que tudo quer ver (2021), que se esconde e espreita por detrás de um espaço ou galáxia. Estes membros, ou seja, parte de um todo, ganham aqui um lugar próprio inegável: quase como se tivessem autonomia de ação, como se fossem o cérebro.

A escultura Esqueleto para nada (2021) é feita a partir de uma corda de saltar e de um par de luvas no chão, transformadas em bronze. O corpo que usava esta corda imagino ter-se desmaterializado, desintegrado, continuando a corda hirta e a rodar com o peso destas luvas – uma segunda pele, ou um vestígio do corpo. Há um luto constante a ser evocado nestas peças. Luto pela vontade em subsistir.

 

Vista da exposição «Fernão Cruz. Morder o Pó». Foto: Bruno Lopes

 

Há também a construção de lugares seguros, esconderijos em forma de maquetas. Encontro as esculturas Esconderijo (2020) e Prisão perpétua (2021) como uma transposição do lugar que confiro à casa ou ao ateliê/espaço mental de trabalho. Nenhum personagem os habita. São como uma queda interrompida do próprio utilizador, embora haja notícia de que os espaços são vividos, como uma garrafa, um banco ou mesa, uma camisola ou um cavalete. Falo sobre este loop da transformação, um lugar físico que substitui a psicanálise por falta de hipóteses.

A divisão é subentendida a tudo o que vivemos. Aqui, a passagem de um lugar para o outro é fria, desconfortável. O relógio Começo (2019) faz parar o tempo às 13:25h, congelando-o como um codex para a compreensão de uma multiplicação. O tempo também fica parado quando em Cair em palco (2021) a figura que se assola fica a pairar no ar. Corpo este que nunca pediu para nascer e que irá inevitavelmente cair num palco sem audiência. Que opção há se não atuar na mesma? De qualquer das formas há um holofote para ninguém em Próximo passo (2021), na qual uma lanterna que flutua aponta a sua luz para o próximo passo numa autoestrada sem fim.

 

Vista da exposição «Fernão Cruz. Morder o Pó». Foto: Bruno Lopes

 

A cadeira e o banco que estão por detrás de dois muros em O eterno monólogo (2021), um de tijolos em tinta e outro de pura tinta cinza, estão em terapia infinita. Uma terapia silenciosa. Evidente que os dois ou três post-its pintados a tinta espessa amarela remetem para este ato voyeur, no qual o comandante toma anotações inúteis. Talvez haja uma relação direta com a própria passagem ou corredor na exposição. Ou pelo menos com o comprimento híbrido que ele pode assumir em diferentes contextos. Ao desembocar no final da passagem, o tapete Lápide. Pedido (2019), uma pedra tumular do desconhecido universal, provoca os pés e sapatos imundos a serem limpos na sua inscrição «LOOK DOWN AND THINK OF ME», reclamando o olhar, pensamento e mísera misericórdia de quem por ela passa.

 

Vista da exposição «Fernão Cruz. Morder o Pó». Foto: Bruno Lopes

 

Uma seta, Mártir (2019), que foi desviada da sua rota para acertar no corpo de alguém, acaba exposta numa prateleira. Encontra-se ao lado de Aceitação. Despedida (2020), que, ao contrário de Esqueleto para nada (2021), confere lugar a um corpo que está sentado a ser despido ou desprotegido por esta ave que leva um roupão para longe de si. A figura aceita que não há nada a fazer. Estes dois personagens são feitos em cartão e espuma revestidos a gesso. O roupão que foi usado por uma pessoa real, tal como o par de luvas em bronze, é um exosqueleto mole de todo o corpo evocado na exposição. Não será por acaso que uma serpente em Cofre (2021), cuja cabeça nunca vemos, está a entrar para o outro lado, perfurando um muro imaginário em si mesmo, mas real no espaço da exposição: sai da primeira para a segunda sala, perdendo e mudando a sua pele pelo meio da penumbra.

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Nesta rubrica, artistas, curadores, historiadores e investigadores convidados refletem sobre a Coleção do CAM, explorando diferentes perspetivas e criando relações por vezes inesperadas. Partindo de uma obra, de um artista ou de uma temática específica, estes textos propõem novas formas de ver e pensar a Coleção à luz do contexto histórico atual.

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