Cinema Karl Marx, Luanda

29 abr 2020

Mónica de Miranda (1976), artista portuguesa de descendência angolana, vive e trabalha entre Lisboa e Luanda e debruça-se sobre temas que lhe são próximos, como a «arqueologia urbana e geografias pessoais»1 ou noções de identidade, memória e diáspora.

O Museu Calouste Gulbenkian adquiriu, em 2019, para a Coleção Moderna, duas das suas obras em fotografia da série Cinema Karl Marx: Twins e Ticket Office, datadas de 2017. Estes dois trabalhos, juntamente com uma terceira fotografia intitulada Cinema Karl Marx, do mesmo ano, constituem um núcleo de trabalho e inserem-se numa série mais alargada, o projeto Panorama (2017).

Mónica de Miranda. «Hotel Panorama», 2017. Impressão a jato de tinta sobre papel de arte

Panorama reveste-se de vários significados. O projeto empresta o nome de um conhecido hotel, outrora próspero, um edifício modernista que se encontra hoje em ruínas, situado na Ilha do Cabo, em Luanda. Mónica de Miranda fotografou este e outros edifícios de Angola em estado de degradação, nomeadamente o Cinema Karl Marx. Estas imagens evocam o passado e colocam questões incómodas, mas relevantes no presente, em torno de temas como a história social e política de Angola, o património arquitetónico, o pós-colonialismo ou a gentrificação. Assim, o espetador é convidado a refletir sobre as estruturas de poder envolvidas na construção de uma paisagem urbana, bem como sobre o atual panorama social e político que a mesma evoca.

Mónica de Miranda. «Cinema Karl Marx», 2017. Impressão a jato de tinta sobre papel de arte

Inserido nesta mesma problemática, o Cinema Karl Marx – denominado Cinema Avis antes da independência – foi uma sala de espetáculos modernista de Luanda, construída durante a época colonial e inaugurada em novembro de 1961. A obra foi projetada por dois arquitetos portugueses, Luís Garcia de Castilho e João Garcia de Castilho, que se mudaram para Angola e aí colaboraram na construção de vários edifícios emblemáticos. É relevante que se trate de um cinema/sala de espetáculos, que servia os interesses do Estado Novo e da sua «política metropolitana de ocupação das colónias»2, operando como instrumento de propaganda.

Através de um vídeo da época3, constatamos a modernidade que o cinema, em tempos, ostentou. Por outro lado, as fotografias de Mónica de Miranda oferecem-nos uma visão atual do exterior e interior deste edifício histórico e do seu pobre estado de preservação.

Mónica de Miranda. «Twins (da série Cinema Karl Marx)» (pormenor), 2017. Inv. 19FP687
Mónica de Miranda. «Ticket Office (da série Cinema Karl Marx)», 2017. Inv. 19FP686

No tríptico Cinema Karl Marx e no díptico Twins, saltam à vista duas personagens femininas gémeas, de presença intrigante. Estas personagens são recorrentes na obra da artista e aparecem lado a lado em outras séries, como Archipelago (2014), Field Work (2016) e Panorama (2017). O díptico Twins cruza um registo documental da plateia com a marcada presença teatral das duas irmãs. Na primeira fotografia, o espectador é colocado no local do ecrã – olha o público e é olhado por este, num jogo entre olhar e ser olhado, que ecoa na dicotomia eu-outro. Segundo a própria artista, as gémeas retratam «essa dualidade de pertença, do passado e do presente»4. Esta informação adquire mais importância quando atentamos na biografia da artista, filha de mãe angolana, que se pode identificar com sentimentos de pertença – não pertença, alternando entre Portugal e Angola, Europa e África. Na segunda fotografia somos levados a observar com mais detalhe a sala, numa aproximação das cadeiras, vazias e degradadas. Também elas evocam o passado e revelam o presente.

Hoje ao abandono, o edifício é uma recordação desconfortável do passado colonial, da guerra civil, da decadência de locais históricos e culturais e do processo de gentrificação de que a cidade foi palco. Mónica de Miranda fixa a imagem do lugar contra o apagamento da memória. Nas palavras da artista, «these ruins exist across Angola. They stand out of their time and resist attempts to forget or erase our history»5.

 

Texto de Laura Almeida


1 Mónica Miranda. 

2 «Luanda e suas segregações: uma análise a partir das salas de cinema (1940-1960)» in Mulemba, julho/dezembro 2017, Rio de Janeiro: URFJ, v. 9, n. 17, p. 80. 

3 «Novo cinema em Luanda», RTP Arquivos.

4 Transcrito de «Panorama by Mónica de Miranda, This is Not a White Cube».

5 «Mónica de Miranda’s best photograph: a ruined hotel in Angola», The Guardian.

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