51 Avenue d’Iéna, março de 1949

O quotidiano doméstico da residência de Calouste Gulbenkian em Paris em finais da década de 1940 é-nos revelado de forma inesperada através dos registos contabilísticos da casa.
21 nov 2024 9 min
Dos Arquivos

Em março de 1949 Calouste Gulbenkian completaria 80 anos de idade. Residia em Lisboa, onde chegara, proveniente de Vichy, havia aproximadamente 7 anos. A sua casa de Paris, no número 51 da Avenue d’Iéna, mantinha-se a residência da família. À exceção do seu filho Nubar, que vivia em Londres, aí residiam: a sua mulher, Nevarte Gulbenkian (Mme. N.G.), então com 74 anos; a sua filha, Rita Essayan (Mme. K.L.E.), e o seu genro, Kevork Loris Essayan (Mr. K.L.E.), respetivamente com 48 e 51 anos.

Para além da família, o hotel particulier alojava a coleção de arte de Calouste Gulbenkian, com exceção de uma parte da coleção de pintura, que desde a década de 30 estava emprestada à National Gallery de Londres, e da coleção de arte egípcia, que desde o ano anterior se encontrava na National Gallery of Art de Washington, depois de ter estado exposta no British Museum.

Funcionava também na casa um escritório complementar ao existente em Londres, por onde eram processados todos os assuntos relativos aos negócios e às atividades diplomáticas de Calouste Gulbenkian, à sua ação filantrópica, à coleção de arte, à administração das suas propriedades e à condução dos assuntos domésticos, familiares e pessoais.

Acresce referir que, desde o início da década de 40, o número 51 da Avenue d’Iená havia passado a ser formalmente considerado sede da Chancelaria Comercial da Legação Imperial do Irão em Paris, circunstância lograda por Kevork Essayan com a ajuda da Embaixada suíça com o objetivo de evitar a ocupação da propriedade pelos alemães, designadamente por Hermann Goering.

No mês de março de 1949 trabalhavam nesta residência, como empregados de casa (gens de maison), 21 pessoas que desempenhavam diferentes funções: 1 governanta; 1 mordomo (maître d’hotel); 1 dama de companhia, de Mme. Nevarte Gulbenkian; 4 criados (valet, valets à pied, valet particulier); 3 criadas de quarto (femmes de chambre); 1 roupeira (lingére); 2 motoristas (chauffeur de maître e chauffeur); 2 cozinheiros (chef-cuisinier e cuisinier) e 2 ajudantes de cozinha (garçon de cuisine, fille de cuisine); 2 porteiros (concierges); 1 eletricista (chef-electricien) e 1 responsável pela conservação e manutenção (travaux d’entretien). Esta equipa, composta maioritariamente por pessoal interno, era, sempre que necessário, coadjuvada por tarefeiros externos.

No escritório, por outro lado, trabalhavam 5 secretárias, das quais uma, Mme. Theis, estava destacada em Lisboa, junto de Calouste Gulbenkian. Associados ao staff do escritório surgem ainda Robert Gulbenkian, sobrinho de Calouste Gulbenkian (filho de Vahan e Françoise Gulbenkian), então com 25 anos, e o seu primo Garbis Selian, regente de Les Enclos, propriedade que Gulbenkian detinha em Deauville, na Normandia.

A autoridade na casa era, naturalmente, exercida por Mme. Nevarte Gulbenkian. Esta, contudo, fazia-se coadjuvar nessas funções não só pela sua filha, Rita Essayan, como pela cunhada desta, Arax Essayan (Mlle. Essayan), como ainda pela sua dama de companhia, Mme. Marie Tsarska-Dourska. A governanta à época, Virginie Keurhadjian, era a trave-mestra da administração da casa, sendo ainda uma peça essencial na articulação da comunicação entre a dona da casa, a criadagem e o escritório.

Não obstante a responsabilidade de Nevarte, a cadeia de comando era, em última instância, controlada, a partir de Lisboa, pelo patriarca da família. Com efeito, era Calouste Gulbenkian quem regulava e decidia sobre diversas questões relativas à organização e funcionamento da casa: os horários e locais de trabalho e das refeições; as funções dos colaboradores, os seus salários e bonificações; os procedimentos relacionados com o aprovisionamento (os pontos de abastecimento, os produtos, as entregas, os pagamentos, o armazenamento); a utilização e o consumo de bens, especialmente de alimentos e combustíveis; a segurança das instalações.

A folha de caixa n.º 4.961, datada de 30-31 de março de 1949 é uma evidência de um reporte semanal de informação de qualidade, bem estruturado e de grande detalhe, produzido sob a supervisão profissional do escritório.

É interessante constatar que, do ponto de vista contabilístico, a casa estava organizada em diferentes contas, que funcionavam como centros de custos e de responsabilização individual.

A mais importante e minuciosa dessas contas era a da Governanta. De periodicidade semanal, abrangia as despesas de farmácia, os encargos diversos não incluídos noutras contas e, de forma especialmente detalhada, as despesas e os consumos de alimentação e bebidas, quer da família, quer dos colaboradores.

Além dos dados agregados por rubricas e suportados em documentos de despesa devidamente conferidos e arquivados, e de alguns indicadores especiais, como o do custo médio das refeições da família e dos colaboradores, essa conta incluía ainda, para cada refeição do dia, os menus da família e dos colaboradores e, no caso da refeição da família, também as pessoas que nela participavam (incluindo os convidados), a indicação de eventuais menus especiais e o local onde era tomada, quando não coincidente com a sala de jantar.

A este propósito, importará referir que na semana de 20 a 26 de março, período a que reporta a conta da Governanta incluída na folha de caixa em destaque, na maior parte das refeições da família tomaram lugar à mesa apenas Mme. Nevarte Gulbenkian, a sua filha e o seu genro. Ao grupo juntou-se esporadicamente a irmã deste, Arax Essayan, que trabalhava na casa em regime de part-time, e, ao fim de semana, o jovem Mikäel. Não se registaram visitas nessa semana, facto que reforça a ideia veiculada por outras fontes de que Calouste Gulbenkian não apreciaria a frequência da casa por pessoas estranhas. Já no que respeita às refeições do pessoal (incluindo o staff do escritório, que tomava as refeições em sala própria, e os empregados de casa, que utilizavam o economat), a média de pessoas à mesa por refeição foi, na semana em análise, de cerca de 19.

No caso dos menus da família havia uma distinção entre os alimentos e bebidas da “dieta base” e os considerados “extras”, sujeitos a um controlo específico por parte da Governanta e a uma contabilização própria, onde era normal referir-se qual o elemento da família que os consumiu.

Passados pouco menos de 4 anos sobre a rendição dos alemães aos Aliados, um mês após o fim do racionamento do pão em França e numa altura em que essa limitação ainda se mantinha para o café e o açúcar, é interessante notar que, no contexto da economia da casa de Calouste Gulbenkian, eram considerados “extras”, entre muitos outros, os seguintes produtos: queijos e iogurtes, presunto e bacon, frutas e sumos de fruta, tomates e limões, vinho, croissants, café, água mineral natural.

A este respeito, é ainda muito relevante o facto de até os produtos agrícolas provenientes de Les Enclos, e periodicamente remetidos a Paris (e, em certos casos, também para Lisboa), serem previamente cotados e de essa cotação ser considerada no apuramento do custo médio das refeições da família e do pessoal.

O controlo da flutuação dos preços dos bens nas lojas era, aliás, uma das funções atribuídas à Governanta, que, além disso, deveria também verificar o peso e o custo dos produtos adquiridos pelo cozinheiro no momento da sua entrega na casa, dados que seriam sucessivamente reconfirmados por duas das coadjutoras de Nevarte na administração da casa.

Um outro indício de que o controlo das despesas da cozinha era considerado um assunto-chave na administração da casa reside no facto dos anexos que suportam a conta da Governanta, designadamente a lista semanal dos menus e a lista de remessa de produtos de Les Enclos, serem invariavelmente visadas por todos os elementos da cúpula da administração da casa: Nevarte, Rita e Arax Essayan.

As restantes contas, de periodicidade mensal, eram as seguintes:

  • As contas de cada um dos 4 carros da residência (Talbot, Citroën, Buick e Rolls Royce), pelas quais respondiam os motoristas a quem o carro estivesse atribuído. Nessas contas recaíam, obviamente, todas as despesas com a manutenção, a reparação e o abastecimento dos veículos. O facto da França, até final de 1949, ter mantido o racionamento do combustível, leva a que no registo contabilístico surjam encargos com comissões pagas a intermediários do abastecimento;

  • A conta de Mme. Theis, a secretária que acompanhou Calouste Gulbenkian para Lisboa;

  • A conta de Mme. Nevarte Gulbenkian e a de Mr. Kevork Essayan, onde eram contabilizados os gastos com os salários dos empregados de casa que lhes estavam especificamente atribuídos;

  • A conta da Chancelaria Comercial, onde, curiosamente, recaíam os gastos com os salários de cerca de 81% dos empregados de casa.

Para além das despesas com pagamentos de bens e serviços, salários, taxas e contribuições, gratificações e donativos, organizadas nas contas acima referidas, surgem ainda na folha de caixa despesas com dotações para a família (allocations famille), nas quais surgem como beneficiários, no mês de março de 1949: Nevarte Gulbenkian, Rita e Kevork Essayan, Mr. E Mme Vahan Essayan, pais de Kevork, Karnig Gulbenkian, irmão de Calouste Gulbenkian e Françoise Gulbenkian, mulher de Vahan Gulbenkian, irmão de Calouste (e pai de Robert Gulbenkian). Também as despesas com o pagamento de serviços médicos e de enfermagem (consultas, acompanhamentos noturnos, tratamentos e medicamentos) respeitantes aos membros da família residentes, mas também aos pais de Kevork, constam da dita folha.

Estes documentos, para além de nos permitirem quase reconstituir o quotidiano doméstico da residência de Calouste em Paris, deixam-nos antever o alcance do controlo por ele exercidos e a intensidade da proteção e da solidariedade familiar nos mais ínfimos detalhes.

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Momentos relevantes na história de Calouste Gulbenkian e da Fundação Gulbenkian em Portugal e no resto do mundo.

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