Karita Mattila

20 mai 2017

O acaso permitiu que os lisboetas apreciassem em dias consecutivos duas das maiores cantoras deste século: Karita Mattila e Renée Fleming (esta em transmissão do Met em direto). Sopranos líricos da mesma geração — Mattila é dois anos mais nova — mas com timbres e qualidades muito diferentes, para não falar de temperamentos quase opostos. Partilharam muito repertório (Mozart, Strauss, algum Wagner), mas seguiram vias distintas: enquanto Fleming enveredou pelo bel canto e Handel, Mattila assumiu papéis mais dramáticos, vocal e teatralmente (Puccini e Janácek, por exemplo). Mais sábia a gerir a carreira, Mattila também arrisca e excita muito mais. Em fevereiro vi-a em Londres a cantar o I ato de “Die Walküre” — uma Sieglinde incandescente que apagou por completo o Siegmund de Jonas Kaufmann. De regresso para um recital, Mattila usou oito “Zigeunerlieder op. 103” (1889) de Brahms para aquecer a voz, e libertou-se nos “Wesendonck Lieder” (1862) de Richard Wagner. Saliento apenas o legato perfeito das longas linhas de ‘Im Treibhaus’, os brilhantes agudos de ‘Schmerzen’ e um ‘Träume’ sublime (sublinhado pelo poslúdio atmosférico do piano, a cargo de Ville Matvejeff). Vestida de vermelho com um xaile preto (e rico cachucho no anelar esquerdo), Mattila fez-nos sonhar com a Isolde (que nunca foi). Como sempre, a voz é complementada pela postura, pelo rosto e pelo jogo das mãos para nos transmitir a essência do que está a cantar. Para a segunda parte do recital inverteu o traje, vindo agora vestida de preto e xaile vermelho. Nos “Vier Lieder, op. 2” (1910) Alban Berg presta homenagem ao seu mestre Arnold Schoenberg; estruturados sob o signo do sono (Schlaf), quiçá da morte, marcam a transição para a atonalidade. O último, ‘Warm die Lüfte’ (‘Quente, o ar’), evoca o monodrama “Erwartung” (1909/24). Mattila foi simplesmente assombrosa. Numa única palavra, a gelada ‘Stirb!’ (‘Morre!’), a cantora demonstrou o que é o Sprechgesang. (Quem me dera vê-la cantar “Erwartung”!) Um grupo de sete canções de Strauss rematou o concerto. Confesso que depois de um ‘Der Stern’ explosivo não esperava um ‘Wiegenlied’ tão encantatório, embalado por uma voz do outro mundo. A propósito do tempo incerto que zurzia lá fora, Mattila brindou-nos em extra com duas canções tipo-cabaret a clamar pelo verão: ‘Eine kleine Sehnsucht’ de Frederick Hollander e ‘Kun päivä paistaa’ de Oskar Merikanto. Cantou, trejeitou, dançou e sapateou. Em novembro, Karita Mattila estrear-se-á na Leokadja Begbick de “Aufstieg und Fall der Stadt Mahagonny”, de Kurt Weill, em Zurique. Quem não arrisca, não petisca!

 

Jorge Calado

Expresso – 20 de maio 2017

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